Violência cai mais em estados dos EUA mais rigorosos no controle de armas
Com Daniel Cerqueira e Alberto Kopittke*
O debate sobre armas pode ser feito de forma filosófica e ideológica, ou então com base na avaliação do resultado das experiências reais sobre o tema. E, nas políticas públicas, as evidências precisam dar o tom dos “pacotes” e/ou “planos”.
O fato é que a imensa maioria do conhecimento científico disponível no mundo indica que o aumento do número de armas de fogo em qualquer sociedade produz um aumento no número de homicídios por causas banais, de acidentes domésticos com crianças, de suicídios de adolescentes, de morte de mulheres e não reduz os crimes contra o patrimônio.
Por esse motivo, todos os grandes portais públicos de evidências da área recomendam que os governos adotem programas de restrição às armas, como o Portal Crime Solutions do Departamento de Justiça dos EUA e o Portal What Works (O Que Funciona) do governo Britânico, o maior do mundo.
Os defensores das armas baseiam-se num estudo realizado por John Lott em 1997, que já foi desmentido reiteradas vezes. Em 2004, a Academia de Ciências dos EUA convocou um grupo de especialistas para avaliar o tema e quinze deles concluíram contra o uso de armas e apenas um a favor. Uma Comissão de Especialistas formada pelo Ministério da Saúde daquele país, em 2005, recomendou que fossem aprovadas leis de restrição. A Rand, um grande centro de avaliação de políticas que presta consultoria para o Ministério da Defesa dos EUA, lançou recentemente um portal de dados recomendando leis de restrição às armas. A Associação Médica Americana, por meio do seu prestigioso periódico científico JAMA, também publicou um editorial exortando o governo a tomar necessárias medidas restritivas quanto ao acesso às armas de fogo.
A mais recente e robusta análise, publicada no final de 2018 (Donohue, Aneja e Weber), encontrou que os nove estados dos EUA que não flexibilizaram as leis de armas entre 1977 e 2014 tiveram uma queda de 42,3% nos crimes violentos; enquanto que nos demais estados que liberaram as armas, a queda foi de apenas 4,3%.
No Brasil, uma revisão sistemática que realizamos encontrou 14 estudos sobre o tema no país, dos quais 12 indicaram que reduzir armas reduz crimes. Inclui-se nessa lista três teses de doutorado em economia, em universidades como PUC, USP e FGV. Ainda, um artigo de Cerqueira e De Mello (2014) mostrou que se não fosse o Estatuto do Desarmamento (ED) as taxas de homicídios seriam 12% maiores dos que as observadas.
A imagem que abre este texto ilustra bem o ponto. Desde a década de oitenta houve uma verdadeira corrida armamentista, que fez com que a proporção de homicídios cometidos com o uso da arma de fogo saltasse de um patamar de 40%, nos anos 80, para 71% em 2003, ano que foi sancionado o ED, quando tal índice parou de crescer. O estatuto, que impôs uma legislação de controle responsável da arma de fogo, foi crucial para poupar vidas e frear a escalada dos homicídios, que cresceram 6,7% nos 13 anos posteriores, ante um crescimento de 70% no mesmo período anteriormente.
Voltando ao caso americano, é importante esclarecer que o famoso programa de Tolerância Zero de Nova York teve uma estratégia central de controle e retirada de armas de fogo das ruas, fato desconhecido no Brasil. Em países e cidades da América Latina, como Bogotá e Medelín, onde houve o enfoque de restringir o número de armas, os homicídios também caíram.
As consequências do atual decreto perdurarão por mais de cem anos, mesmo que no futuro se decida revisar o tema, uma vez que milhões de armas já estarão nas ruas. Esse agendamento da violência futura mereceria um debate mais técnico e menos ideológico. Na era das fake news e do ódio político, o conhecimento científico e as evidências por ele produzidas são mais necessárias do que nunca.
A espetacularização do liberou geral das armas de fogo, somada ao pacote Moro do endurecimento penal e da licença para matar, já chamado de kit desastre, tem outra nefasta consequência: desviar a atenção para o fato de que mais um governo se inicia no Brasil sem uma verdadeira Política Nacional de Segurança Pública que valorize nossas polícias, reforme o sistema prisional e previna a violência entre crianças e jovens, municiada com evidências científicas sobre o que realmente funciona para reduzir a violência.
Isso para não dizer que, quando olhamos apenas aquilo que queremos ver e não as evidências sobre o tema, não nos damos conta do drama que a segurança pública brasileira enfrenta. Em pesquisa do FBSP/Datafolha, publicada hoje (26), 9 mulheres com 16 anos ou mais de idade são agredidas por minuto no Brasil. Ou seja, se mesmo após o movimento de mulheres conseguir afastar da jurisprudência brasileira o conceito de forte emoção como critério prévio de legítima defesa o número de mulheres vítima é tão alto, imaginem se a ideia de amplia-lo para a população, no anseio populista de querer agradar aos policiais, entre em vigor?
Em segurança pública, as evidências mostram que mais armas, mais mortes; menos informação, significa mais tempo gasto com debates ideológicos e/ou conceituais pouco produtivos.
***
Daniel Cerqueira, economista, é membro do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Alberto Kopittke. Diretor Executivo do Instituto Cidade Segura, associado do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.