Se Deus é brasileiro, ele pediu para sair e a casa está abandonada.
Chega a ser chocante a sequência de fatos que tomaram o país nas últimas semanas e que revelam o abismo ético em que caímos: denúncias envolvendo a família do Presidente da República, ligações suspeitas entre as milícias e políticos, tragédia em Brumadinho, incêndio no CT do Flamengo, tempestades no Rio de Janeiro, operação policial em favelas cariocas com maior número de mortes em anos.
Ao mesmo tempo, chama atenção como a prolongada internação do Presidente Jair Bolsonaro no Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, está estressando muito rapidamente o delicado equilíbrio de forças que dão sustentação ao seu projeto de Poder.
Disputas e conflitos entre integrantes de governos formados por coalizões de interesses são comuns, mas a demora de Bolsonaro em reassumir o governo pode significar a ruptura da coalizão atual no governo, ainda mais em um momento em que estamos em permanente estado de alerta e nos perguntando quase diariamente qual a próxima crise ética, denúncia ou tragédia que acontecerá.
Contrariando todas as expectativas sobre sua capacidade individual de articulação, o Presidente Jair Bolsonaro conseguiu, ajudado pelo Zeitgeist, se posicionar como o eixo de força capaz de fazer mover as engrenagens políticas do país em direção a um projeto de reconversão reacionária da sociedade brasileira, em muito pautado no pânico moral gerado pela crise econômica, pela insegurança, pela violência e pelo sentimento de impunidade que grassam no país.
A questão, contudo, é que só quando o eixo fraqueja e os ‘guardas da esquina’ se arvoram em guardiões da ordem, percebemos os riscos postos para a institucionalidade e para a manutenção da ordem social democrática. Em pânico e acuados, vamos aceitando retrocessos e elogiando os “homens de boa vontade”.
O projeto político de Jair Bolsonaro é um projeto multicêntrico que não tem um objetivo comum e que só se mantem em contraposição e/ou antagonismo. Em torno de Jair Bolsonaro, ao menos cinco grupos interconectados, porém distintos e com objetivos diferentes, cerraram fileiras e associados estão a operar um perigoso vigilantismo moral e legal.
O primeiro destes grupos são os militares. É verdade que entre os militares não há coesão absoluta, sendo que os egressos das forças de paz das quais o Brasil integrou a partir do Governo Lula estão mais próximas do projeto político do presidente Jair Bolsonaro (General Augusto Heleno, General Santos Cruz, General Fernando Azevedo e Silva, entre outros). Nesse particular, a escolha de Hamilton Mourão como Vice-Presidente serviu ao simbolismo eleitoral e, sobretudo, serviu ao equilíbrio interno da caserna.
Para os militares, mesmo reconhecendo que os Governos do PT foram os que mais investiram na modernização tecnológica das Forças Armadas, a ressonância dos discursos de Bolsonaro frente à crise ética que assolou o país durante as gestões Lula e Dilma foi a oportunidade perfeita e democrática para a sua reinserção no centro do poder, na ideia de que a experiência acumulada e a “retidão” doutrinária de seus integrantes poderiam ser aliadas na “reconstrução moral da pátria” e armas poderosas para se evitar que traumas do Golpe de 1964 fossem reabertos.
O segundo é o grupo formado por segmentos da alta burocracia pública, do Poder Judiciário e do Ministério Público que, tomados pelo sentimento de onipotência de seus saberes e movidos pela crença na impotência frente àquilo que identificam como a leniência das leis, propugnam a adoção de ferramentas autoritárias e populistas de persecução penal. Nem que para isso signifique fazer o que for preciso para fazer valer suas teses.
O pacote “anticrime” de Sérgio Moro é uma prova forte deste processo, na medida em que propõe soluções para o drama da criminalidade a partir de uma visão nitidamente parcial do problema e não contempla, em seu escopo, medidas que visem a segurança pública como um todo; não fala da organização das polícias e não trata de saídas para o sistema prisional, fontes principais, mais que as leis, dos principais dilemas e ineficiências da área no país. O pacote chega a retomar teses que o movimento de mulheres conseguiu banir da nossa jurisprudência como “forte emoção” e legítima defesa da honra como critérios de absolvição sumária. O pacote fala de crime mas não fala de violência e medo.
O terceiro grupo é formado pelo movimento neopentecostal de evangélicos e católicos ultraconservadores, que incentiva uma agenda moral e costumes que subjuga e visa submeter qualquer visão de mundo destoante, preferencialmente neutralizando pautas multiculturais e de reconhecimento de identidades e pluralidades que não as fundadas exclusivamente na moral judaico-cristã. Para este grupo, com Damares Alves como abre-alas, o certo é apenas aquilo que seus líderes defendem e todos aqueles que discordam precisam, segundo seus porta-vozes nas redes sociais, ser ameaçados, perseguidos e punidos, não muito diferentes das Fatwas fundamentalistas dos Talebans e do Estado Islâmico.
O quarto grupo é formado pelos internacionalistas guiados por Steve Bannon e Olavo de Carvalho e que têm no clã Bolsonaro seu principal esteio de propagação, com o Chanceler Ernesto Araújo e o Ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodriguez, como ajudantes de ordens de luxo. Para este grupo, a chegada de Bolsonaro à Presidência não foi suficiente e é necessário aniquilar todos aqueles que discordam de suas teses e crenças. Este grupo advoga uma longa “guerra cultural”, a começar pela educação moral e cívica de seus valores, contra o globalismo e seus representantes, sendo que a agenda de defesa de direitos civis e humanos é assumida como a representação do mal a ser combatido. O incentivo ao ódio e ao ressentimento, bem como o culto às armas se destacam entre os adeptos deste segmento.
O quinto grupo é formado a partir da convergência do mercado financeiro e do setor privado em torno das teses ultraliberais de Paulo Guedes como aquelas únicas capazes de tirar o Brasil de uma de suas mais profundas crises econômicas da história. Sua principal aposta é a necessária e inadiável reforma da previdência, nem que, para muitos que formam este grupo, isso signifique partilhar esforços com os líderes de agendas antiliberais e autoritárias. Também defende a redução do tamanho do Estado e a desregulamentação radical dos negócios e das atividades econômicas, cujo exemplo mais nítido é a crítica à agenda ambiental e à pauta indígena e o incentivo à mineração e ao agronegócio.
No meio de todos esses grupos e tendo que fazer frente às tragédias em série, os policiais e bombeiros militares estaduais, que em sua grande maioria acreditou no projeto de Jair Bolsonaro, são diplomaticamente recebidos nos gabinetes do Poder mas poucas são suas demandas atendidas e, o mais importante, resolvidas. As Polícias e Corpos de Bombeiros militares parecem que ficarão a reboque das Forças Armadas no debate sobre previdência e as polícias civis continuam sucateadas e sem perspectivas de investimentos.
A crise na coalizão de governo é real e, associada às tragédias, à violência banalizada e às omissões éticas que nos assolam, nos lembra que não é à toa que estamos exaustos e atordoados; estamos perdidos em um eterno porvir que nunca chega e suga precocemente nossas energias, sonhos e vidas.