Protestos, manifestações e a ação da Polícia Militar

Danilo Verpa/Folhapress
Renato Sérgio de Lima

Por Frederico de Almeida

Há poucas semanas o governador de São Paulo João Doria regulamentou por meio de decreto uma lei de 2014 que proíbe o uso de máscaras em manifestações políticas. Segundo o decreto, a Polícia Militar pode efetuar prisão em flagrante, pelo crime de desobediência, de manifestante mascarados que recusem identificação.

A lei e o decreto incluem ainda outras possibilidades, como a exigência de autorização prévia e aprovação do trajeto para a realização de protestos em vias públicas, a proibição de posse de determinados artefatos que possam causar lesões ou danos e a autorização para que a PM utilize diversos procedimentos para a identificação de manifestantes.

A lei foi aprovada em 2013, no auge dos protestos que marcaram a conjuntura política a partir daquele ano, sua sanção pelo então governador Alckmin veio quando novos protestos ocorriam por conta da Copa do Mundo e da greve dos metroviários, e sua regulamentação acontece quando o Movimento Passe Livre, que conduziu as primeiras manifestações de junho de 2013, volta às ruas contra o aumento das tarifas do transporte público.

Tal tipo de legislação não é exclusivo do estado de São Paulo e foi uma marca das reações estatais aos protestos que eclodiram a partir de junho de 2013 em todo o Brasil. Segundo a organização não-governamental Artigo 19, diversos projetos de lei no mesmo sentido foram propostos desde 2013 nos parlamentos dos três níveis federativos.

Como a competência para legislar em matéria penal é exclusiva do Congresso Nacional, legislações administrativas que buscavam restringir direta ou indiretamente o direito ao protesto foram propostas especialmente em níveis estadual e municipal como forma de fornecer aos poderes locais – mais diretamente afetados pelos protestos de 2013 – instrumentos de controle não-criminal sobre as manifestações.

Proibição do uso de máscaras, exigência de comunicação e autorização prévia para protestos e outras limitações do uso do espaço público para manifestações políticas foram as estratégias mais recorrentes dos poderes legislativos e executivos para tentar conter a avassaladora onda de protestos iniciada em 2013.

Essa tendência também não é uma exclusividade brasileira, existindo em outros países e tendo sido acentuada desde o fim dos anos 1990. Em seu livro Policing Dissent: social control and the anti-globalization movement (Rutgers University Press, 2008), o sociólogo da Universidade do Arizona Luis A. Fernandez define um gradiente das formas de controle social dos protestos, que vão do controle soft line (“linha suave”) ao controle hard line (“linha dura”). Legislações administrativas – como aquelas relativas ao uso do espaço público, exigência de autorizações e comunicações prévias – estariam entre as formas de controle “suave” dos protestos, enquanto a criminalização e a repressão policial seriam as já conhecidas formas de controle “linha dura”.

Sendo uma legislação administrativa que regulamenta o uso do espaço público, mas que também orienta o uso da coerção física pela PM, a lei de 2014 regulamentada agora por Dória se situa em algum ponto intermediário entre aqueles dois extremos do gradiente de controle social. No projeto de pesquisa Conflito político e sistema de justiça: a judicialização dos protestos urbanos em São Paulo (2013-2015) descobrimos que a regulação do direito de manifestação foi feita, na prática, pela própria PM no momento dos protestos, com alto grau de discricionariedade.

Além de pouco regulada externamente, a atuação da PM nesse sentido é pouco submetida a controles externos, judiciais ou administrativos. Por fim, também descobrimos que a atuação dos órgãos de segurança pública na repressão aos protestos no período analisado se deu com base em um discurso oficial que diferencia o “manifestante” do “cidadão” (como se o manifestante não fosse ele mesmo um cidadão titular de direitos e reivindicante de outros direitos) e do “trabalhador” (como se o manifestante não pudesse ser um trabalhador, mas sim um potencial “vagabundo”).

Com base nessa distinção, a atuação das polícias e da Secretaria de Segurança Pública, embora reconhecesse abstratamente o direito à manifestação do “manifestante”, o submeteu ao direito de ir e vir do “cidadão” e do “trabalhador” e ao imperativo de manutenção de uma “ordem pública” genericamente considerada. Apenas muito secundariamente falava-se em garantir a segurança dos próprios manifestantes.

Não negamos aqui que há um potencial conflito entre direitos quando ocorre um protesto, já que nenhum direito é absoluto. Mas é preciso reconhecer que a sensação de “transe” político e social que vivemos desde 2013 vem, em grande parte, da relativa escassez de protestos de massa na história política brasileira, e da nossa dificuldade em lidar com a oposição de interesses e com as diferenças políticas de maneira democrática.

Para superar essa situação, é necessário que se alargue o espaço de disputa e de definições sobre o que significam esses direitos que, num evento de protesto, se colocam em conflito potencial. É fundamental que o arbitramento desse potencial conflito não fique restrito a uma única organização estatal, muito menos àquela a quem se atribuiu o imperativo de manutenção da ordem pública, e que o faz com uma forte tradição autoritária e imune a controles sociais democráticos, como é o caso das polícias brasileiras.

Legislações meramente restritivas do direito ao protesto buscam simplesmente evitar esse desafio, tanto mais quando escamoteiam a questão política principal – os direitos de manifestação e de oposição, fundamentais em qualquer democracia – em questões administrativas e regulatórias menores, e diminuem a capacidade de controle social sobre políticas e forças de segurança pública.

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Frederico de Almeida é cientista político, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas e coordenador do PolCrim – Laboratório de Estudos sobre Política e Criminologia.