Proibir o ex-presidente Lula de velar seu irmão é populismo penal

Em um momento de forte defesa da revalorização dos princípios judaico-cristãos do Ocidente, o trecho “[…] Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós pecadores, agora e na hora da nossa morte”, da “Ave Maria”, uma das orações mais conhecidas do catolicismo, nos lembra que o Brasil ainda está longe, muito longe, de uma ética pública que interdite a violência enquanto linguagem e não confunda punição com vingança.

É na hora da morte que percebemos quem somos nós e quais valores norteiam nossas posturas e posições; percebemos que país estamos construindo para os nossos entes queridos. Não basta denunciar o “errado”.

Por isso, não precisamos ser “petistas” ou “lulistas” para criticarmos as razões alegadas para a proibição para que o ex-Presidente Luís Inácio Lula da Silva participe do velório e enterro de seu irmão mais próximo, Genival Inácio da Silva, conhecido como Vavá. Elas são reveladoras do profundo mal-estar civilizatório que tomou conta do país e do papel que o Poder Judiciário está tendo na reconfiguração política e ideológica em curso.

Estamos presenciando, a meu ver, uma profunda releitura jurisprudencial da legislação brasileira e que, no limite, pode nos levar ao quadro vivido pela Turquia e pela Hungria, que são democracias formais mas foram tragadas por tsunamis autoritárias que desprezam princípios e direitos fundamentais; que travam “guerras culturais” que sequestram a cidadania e a liberdade. A própria Transparência Internacional fez tal alerta esta semana, quando da divulgação da edição 2018 do seu Índice de Percepção da Corrupção.

Dados do Infopen, relatórios estatísticos (bastante desatualizados, por sinal) do Departamento Penitenciário Nacional, órgão do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, chefiado pelo ex-juiz Sérgio Moro, indicam que, em 2015 (último ano com dados completos disponíveis), tivemos 175.325 autorizações de saídas de presos para acompanhar velórios e enterros de parentes, nos termos do Artigo 120, da Lei de Execução Penal.

Esse número é equivalente a 25% da população prisional total daquele ano e, se olharmos apenas para os presos em regime fechado, ele salta para quase 63%. Ou seja, a autorização de saída pedida pelo ex-presidente Lula não seria, em nenhuma hipótese, um privilégio. Mais do que nunca, o STF tem uma enorme responsabilidade nesta “quadra histórica”, como gostam de dizer vários de seus ministros.

Em nome da “ordem pública”, conceito por sinal muito mal definido em nossa legislação e suscetível às interpretações jurisprudenciais e institucionais, estamos escancarando opções político-ideológicas que estão a mover parcela crescente dos integrantes das instituições de Estado no Brasil.

E, no caso, quero destacar que o episódio da proibição ao ex-presidente Lula velar seu irmão, é mais um reforço ao fato de que a vida no Brasil vale muito pouco, ainda mais quando vivemos um quadro agudo de violência, que vitima e viola a integridade e a dignidade de milhares de pessoas todos os anos e parece não mais sensibilizar muitas das nossas autoridades. A proibição ao ex-presidente Lula escancara o colapso de nossa política criminal e penitenciária e parece confirmar que o antagonismo é a forma escolhida de aprofundar a reconversão reacionária da sociedade brasileira.

Porém, acreditando na urgência de medidas para a redução da impunidade e da violência e que uma ética pública mais justa e menos cruel é possível, quero explicitar que não podemos resvalar para o populismo penal, que tão somente visa aplacar a vontade de vingança diante das injustiças, da corrupção e do crime. A Justiça é para todos!