As milícias, os ataques no Ceará e as fronteiras do terror no Brasil

Este começo de 2019 me fez lembrar de alguns artigos de opinião que publiquei entre 2010 e 2015 e que, de modo sintético, alertavam para o fato de que, em nome de combater o medo e a violência, estávamos vendo o crescimento de opiniões que advogavam autorização para revogar direitos e restringir liberdades; alertavam para o discurso fácil e perigoso de tipificar como terrorismo muitas das graves crises na segurança pública que recorrentemente nos atingem todo começo de ano.

Na atualidade dos argumentos daqueles textos, ressalto alguns dos dilemas que nos ajudam a compreender a sequência dos acontecimentos que contribuíram para a eleição de um governo com forte apelo populista, mimetizando processos que veem ocorrendo nos EUA, na Turquia, na Hungria, na Itália, entre outros países.

O primeiro destes dilemas é que infelizmente os números sobre a tragédia do país na segurança pública e os alertas de vários setores da sociedade não foram ouvidos e o Brasil vive estupefato e exausto o seu “eterno presente”. A história não existe para aqueles que vivem do imediatismo das redes sociais e somos dragados pelo redemoinho de ódio e ressentimento que retroalimenta posturas autoritárias e nefastas para o exercício da cidadania.

Nos textos, destaco que, em países como o Brasil, de resiliente tradição autoritária, instituições como as polícias são historicamente estimuladas a garantir a “ordem” a qualquer custo.

Em nome de um Estado “forte”, o Brasil sufocou os canais de participação existentes. A imprensa brasileira foi sendo atingida por ameaças reais à integridade física de seus profissionais e parcelas das Universidades ficaram numa confortável zona da crítica pela crítica, sem nenhum compromisso com políticas públicas mais efetivas.

Nesse movimento, a esquerda focou por demais nas macro-narrativas e se afastou do povo. Já a direita surfou no medo e na insegurança que têm dado o sentido e a direção da vida cotidiana de milhões de brasileiros e brasileiras.

Como resultado, a sociedade civil organizada foi sendo paulatinamente enfraquecida e criminalizada nas últimas duas décadas. O país acostumou-se a um pêndulo de forças que antagoniza defensores de Direitos Humanos e o clamor popular por mais segurança e justiça, muitas vezes saciado em ações policiais que envolvem violência e mortes. Mas esse é um falso antagonismo e que precisa ser superado.

Ainda mais se pensarmos que o Brasil convive com um quadro de violência institucional e com um oneroso sistema de justiça criminal e de segurança pública há muito em seu limite de atuação. E, pior, um sistema que fica paralisado por disputas de competência, fragmentação de políticas, jogos corporativos, baixos salários e precárias condições de trabalho aos mais de 700 mil policiais do país.

Cabe à sociedade civil navegar contra a corrente e investir na superação de antagonismos e aproximar diferentes segmentos envolvidos com o tema. Sem isso, corremos o risco de aceitarmos imagens de pessoas mortas nas ruas como algo natural; como cenas da pretensa vontade do povo.

Até porque a violência, mesmo vitimando proporcionalmente mais jovens, negros e pobres, é aclamada por significativos segmentos da população como uma “legítima defesa da sociedade”, na ineficiência dos mecanismos públicos de resolução pacífica de conflitos. Ela é, como propõe o sociólogo Luiz Antônio Machado da Silva, forte evidência de uma ordem social fraturada, desigual e extremamente hierarquizada.

Por certo ainda temos muitos dirigentes públicos que, quando o Estado precisa reagir às ameaças, declaram-se impotentes frente à ”frouxidão” da legislação, mas nosso problema é muito mais profundo e não circunscrito às leis.

Basta vermos o exemplo de diversas autoridades defendendo o enquadramento de movimentos sociais como grupos terroristas e, ato contínuo, desconsideram suas demandas. Também há aqueles que advogam o enquadramento dos ataques recentes no Ceará como atentados terroristas mas não percebem que ali estamos presenciando uma complexa teia de acontecimentos e atores que visa gerar pânico e enfrentar o Estado.

No Ceará, nas centenas de ataques feitos até agora, não há nenhuma vítima envolvida. Isso mostra que, ao que tudo indica, o foco dos criminosos é enfrentar o Poder Público e mostrar capacidade de mobilização. Mas este enfrentamento está sendo cuidadosamente planejado para não cruzar uma fronteira que poderia colocar a população contra as facções e/ou revelar todos os interesses em jogo. Não é tipificando tais atos como terroristas que iremos resolvê-los. Temos que rastrear a cadeia de comando, identificar e retomar o controle da situação.

O problema é que é muito mais simples [e perverso] reproduzir a lógica do pânico e oportunisticamente pegar carona nos temores e anseios da população por justiça. Se o discurso do terror fosse coerente, as milícias seriam igualmente tratadas como grupos terroristas, ao sequestrarem violentamente a liberdade de milhares de pessoas nas periferias e favelas brasileiras. Mas há quem acredite que elas sejam uma barreira ao crime organizado de base prisional.

No fundo, há quem prefira ter bandido de estimação…