Populismo e segurança pública
Por Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo e Fernanda Bestetti de Vasconcellos
Durante a campanha eleitoral, o tema da segurança pública esteve no centro da preocupação dos eleitores e o Presidente eleito, embora sem participar dos debates, apresentou um conjunto de propostas caracterizadas como populistas e punitivistas, como a revisão do estatuto do desarmamento, a redução da maioridade penal e a excludente de ilicitude para mortes praticadas por policiais.
Fato é que boa parte da descrença generalizada dos brasileiros no sistema político e nas instituições se deve à pouca capacidade dos governos democráticos oferecerem respostas efetivas para o problema da criminalidade urbana violenta, que ao longo das últimas décadas alcançou proporções cada vez mais alarmantes.
Foi durante o segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso que uma agenda começou a ser assumida pelo governo federal. Naquele momento já havia sido identificada uma deterioração das condições carcerárias e a dificuldade para reestruturar as polícias de forma a garantir uma atuação mais eficaz sobre a criminalidade em crescimento, bem como um controle mais efetivo sobre as atividades desenvolvidas pelas instituições policiais, assegurando direitos e garantias constitucionalmente estabelecidos.
Nos governos de Luis Inácio Lula da Silva, diversas foram as tentativas para ampliar a participação federal no setor. A experiência mais avançada, o PRONASCI, já no segundo mandato, produziu resultados importantes, em parcerias com estados e municípios, sendo os mais destacados os alcançados em Pernambuco pelo Pacto Pela Vida.
No entanto, avanços maiores, que pudessem de fato alterar o quadro de aumento do medo e da insegurança, acabaram esbarrando em problemas como a esquizofrenia programática do PT, que nunca assumiu de fato o tema da segurança pública como parte essencial de uma agenda democrática, e acabou tensionado por demandas legítimas (porém punitivistas) de movimentos sociais, pelo peso dos interesses corporativos no setor e/ou pelas vicissitudes do próprio presidencialismo de coalizão, que subordinaram as medidas estruturantes aos acertos entre lideranças no Congresso,, que pouco a pouco foram minando as perspectivas de uma reforma estrutural.
Quando Dilma Rousseff assumiu seu primeiro mandato, descontinuou o PRONASCI, redimensionando o papel da SENASP. A presença dos militares na gestão da segurança pública foi consideravelmente ampliada, ao mesmo tempo em que problemas da criminalidade nos grandes centros urbanos foram novamente relegados aos governos estaduais, salvo a exceção de Alagoas, contemplado, pelos recordes de violência alcançados, pelo Programa Brasil Mais Seguro.
Incapaz de perceber a importância do tema da segurança pública para a consolidação da transição democrática, a experiência da esquerda no governo pouco acumulou na construção de uma perspectiva eficaz de contenção da violência, controle efetivo sobre as policiais, transparência na gestão e incorporação do debate acadêmico e das evidências científicas na elaboração, implementação e monitoramento das políticas públicas na área.
Ainda que grupos de pesquisa tenham sido contemplados com editais federais para a realização de pesquisas sobre diversos temas ligados à segurança pública (ação que, em teoria, aproximaria governo e academia), o fato é que muito pouco do que foi produzido acabou aproveitado, servindo muito mais como forma de neutralizar a crítica e incorporar novos atores ao campo, mas sem uma mudança efetiva nos mecanismos de gestão e governança.
Assim que assume a presidência, Jair Bolsonaro começa por desconstituir uma das poucas medidas adequadas adotadas pelo governo Temer: a criação de um Ministério Extraordinário da Segurança Pública. Dando a Sérgio Moro o papel de superministro, o presidente eleito coloca sobre ele a responsabilidade de efetivar o discurso e as promessas de campanha.
Se fizer isso, no entanto, adotando as medidas prometidas, a perspectiva é de caos em curto prazo, e se continuarmos dispondo de indicadores de violência e criminalidade minimamente confiáveis, os números poderão comprometer a credibilidade do governo em uma área que é uma das bases de sua narrativa de renovação política.
Isso fica evidente no debate sobre o decreto para a liberalização do acesso a armas de fogo, em que a promessa de rever o Estatuto do Desarmamento é concretizada por meio de uma medida que ficou muito aquém do esperado por seus eleitores, mas que ainda assim tem potencial para tornar ainda mais difícil a gestão da segurança pública pelos órgãos competentes, pois dá o aval do governo federal a uma verdadeira corrida armamentista, de consequências previsíveis sobre as taxas de homicídio no país.
O ministro Moro promete a modernização do processo penal, e para tanto, além de sustentar os mecanismos processuais implantados nos últimos anos (diga-se, durante os governos do PT), voltados para o combate da chamada criminalidade organizada e aos crimes de colarinho branco, como o instituto da delação premiada e a antecipação da execução da pena antes do trânsito em julgado em definitivo, propõe incorporar ao sistema brasileiro o instituto da “plea bargaining”.
Trazido do modelo processual penal americano, caracterizado como de Common Law, a transação entre o acusado e o Estado já foi introduzida no Brasil via Juizados Especiais Criminais, e se por um lado deu celeridade ao procedimento para os crimes de menor potencial ofensivo, por outro até hoje se discute sua validade do ponto de vista dos direitos e garantias do acusado, assim como da efetiva resolução do conflito em questão. De todo modo, a importação do instituto exigiria repensar toda a estrutura institucional relacionada como processo penal, como o papel das polícias militares na coleta de provas, o maior protagonismo do Ministério Público na coordenação das investigações e na negociação com o acusado.
Quanto às necessárias políticas de prevenção ao crime, a integração entre os entes federados, a qualificação e aprimoramento das forças policiais, a incorporação de evidências científicas na gestão da segurança, a revisão da política de guerra as drogas e seus resultados pífios e contraproducentes, o redimensionamento do sistema carcerário, para minar o controle das facções criminais, uma política efetiva de enfrentamento à violência contra a mulher, assim como contra grupos sociais historicamente vulneráveis à violência, como a população indígena, LGBT, sem tetos e sem terras, e militantes pelos Direitos Humanos, até agora nada se ouviu de concreto por parte do novo governo. Ao contrário, as perspectivas são muito pouco animadoras. Caso o novo governo se limite de fato a tentar colocar em prática o discurso de campanha, a lua-de-mel com seus eleitores tende a durar muito pouco, como um sonho de uma noite de verão, e se transformar rapidamente em mais um pesadelo.
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo. Sociólogo, professor titular da Escola de Direito da PUCRS e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública;
Fernanda Bestetti de Vasconcellos. Socióloga, professora adjunta do Departamento de Sociologia da UFRGS, e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.