Somos todos, sociedade e Estado, sócios do crime organizado

Jarbas Oliveira/Folhapress
Renato Sérgio de Lima

Por Raul Jungmann. Ex-titular dos ministérios da Segurança Pública e da Defesa do Brasil.

Somos todos, sociedade e Estado, sócios do crime organizado. Nós, sociedade, por interditarmos todo e qualquer debate sobre a questão prisional e, não sendo possível a eliminação pura e simples dos bandidos, exigirmos a prisão de todos, indistintamente e para sempre.

Já o Estado, ao não garantir a vida dos apenados no interior das prisões, tão pouco assegurar o que a lei determina, as condições da sua ressocialização, permite o controle do sistema prisional pelas facções criminosas e sua reprodução desde dentro do sistema, comandando daí a criminalidade nas ruas.

A construção desse paradoxo se dá, faticamente, por termos a terceira população carcerária do mundo, com mais de 720 mil apenados, que cresce na ordem de 8.3% ao ano – será uma Porto Alegre em 2025, algo como 1,5 milhão de pessoas -, constituída de jovens de 18 a 29 anos, que representam hoje 75% dos presos. Aos quais a apenas 12% se oferece educação e trabalho a 15% deles.

Esse grave quadro se deteriora ainda mais quando se verifica que o sistema prisional tem um déficit de 358 mil vagas, já que conta com apenas 368 mil vagas disponíveis, e que os mandados de prisão em aberto já somam mais de meio milhão e crescem geometricamente.

Para que se tenha ideia dos custos necessários para cobrir o déficit do sistema e seu crescimento anual mais sua manutenção, seriam necessários algo em torno de R$ 50 bilhões, o que, diga-se, é insustentável tanto econômica, quanto fiscal ou orçamentariamente.

Pois bem, nada disso é parte do debate nacional sobre a segurança pública. Neste, em todos os níveis, os atores e agentes públicos e políticos, debruçam-se sobre a violência nas ruas, com as exceções de praxe.

Sem negar a urgência e a importância de soluções para a violência cotidiana – os assaltos, homicídios, sequestros, balas perdidas etc. Tão pouco minimizar as medidas legislativas, materiais e operacionais para enfrentá-la, resta cristalino que as ruas e o sistema prisional são faces complementares de um só problema.

Porém, esse diagnóstico é interditado por dois motivos:

O primeiro deles é que uma população com crônico déficit de segurança, exposta à violência e indefesa, por um lado deseja que tirem os bandidos das ruas por quaisquer meios e, de outro, execra e mesmo se dispõe a linchar midiática e politicamente quem propuser trazer a questão prisional a debate. Quem o fizer, será sancionado duramente como associado ou defensor de bandidos.

O segundo motivo, é que o poder público, premido pela escassez de recursos e por imensas demandas sociais reprimidas, inclusive por mais e melhor segurança nas ruas, subdimensiona, quando não colapsa, o orçamento e a manutenção das prisões, ao ponto de transformá-las em depósitos de presos.

A degradação do sistema chega a tal ponto que os governos estaduais responsáveis pelo sistema, para evitar explosões e crises, fazem um pacto não escrito com o crime, entregando, na prática, as unidades prisionais às facções. Fruto dessa “aliança”, o sistema prisional, que é estatal, se aliena da sua responsabilidade pelas unidades e vida dos apenados, é ´capturado e se torna sócio do crime organizado… E aqui chegamos ao coração das trevas.

Indefesa, a sociedade cobrará do Estado que trate o criminoso como não detentor de quaisquer direitos, dignidade ou humanidade – ainda que residuais. Já o Estado, em contrapartida, se subtrairá das responsabilidades para com apenados e o sistema prisional, cedendo o seu controle ao crime organizado sob a forma das facções de base prisional.

Nesse ponto, opera-se uma transformação funcional de todo o sistema, e por extensão da própria justiça penal, dado que de parte administrativa desta e locus da ressocialização dos delituosos, o sistema prisional passa a ser parte da reprodução ampliada do crime organizado e, em decorrência, da violência e da insegurança gerais- inclusive das ruas.

Aos incrédulos, cito dois exemplos. Em 33 vistorias realizadas em sete estados pelas Forças Armadas, em 2017, foram encontradas 11 mil armas para um total de 22 mil presos, portanto, um em cada dois dispunham de armas brancas, quase sempre. Ora, como isso seria possível sem a anuência dos que controlam o sistema? Além das armas, foram encontrados rádios-base, celulares, drogas, duchas, televisores e o que mais se imaginar, evidenciando o descontrole e a corrupção existentes.

Segundo exemplo: a atual crise por que passa o Ceará. Transformado em hub ou corredor de tráfico de drogas para o Caribe por via marítima, o estado viu e permitiu crescerem as facções, tanto nacionais como locais que, como sempre, de dentro das prisões passaram a controlar o crime nas ruas. Quando o atual governo estadual decidiu iniciar a retomada do controle dos presídios, cadeias e penitenciárias, de dentro destas partiu o salve (ordem) para o confronto com o Estado, via atos de terrorismo.

Tem sido assim pelo menos desde 2006, quando o PCC paralisou São Paulo por conta da transferência do seu comando para a penitenciária de Presidente Venceslau, sem poupar praticamente nenhum estado; seja em espasmos de violência interna, as chacinas ou atos de externos de confronto com o poder público, quando os interesses estratégicos do crime organizado de base prisional são atingidos ou ameaçados.

Este estado de coisas levou o STF, em 2015, a uma decisão inédita. A de declarar o sistema prisional brasileiro em estado de inconstitucionalidade, pelo descumprimento reiterado da Constituição, a exemplo do inciso XLIX do artigo 5o, que assegura ao preso a sua incolumidade física e moral, idem a Lei de Execução Penal.

Enfrentar e mudar esse estado de coisas exige visão estratégica, planejamento e coordenação. Entendo que, sem ser exaustivo, são quatro os eixos de uma política consequente para o sistema prisional: prevenção social dirigida a juventude, em especial na faixa dos 15 aos 24 anos; repressão qualificada; reforma do sistema prisional e da política de drogas; e mudanças na orientação para o encarceramento.

Está na juventude, sobretudo das periferias, o motor da nossa tragédia de violência e insegurança. E isso é fácil de constatar: aproximadamente três em cada quatro dos que estão nas cadeias e penitenciárias são jovens, negros ou pardos, com pouca escolaridade, baixa renda e família desestruturada. Dai que é incontornável a coordenação de ações de educação, cultura, esportes, saúde, qualificação e assistência social focadas nesse grupo social.

A repressão qualificada atua com base sobretudo com base na inteligencia policial, voltada para o crime organizado, seus líderes e circuitos financeiros, que ditam a dinâmica da criminalidade e da violência nas ruas.

A reforma do sistema prisional, passa pela revisão da legislação que rege a construção, gestão e manutenção dos presídios e penitenciárias. Qualificação do pessoal especializado na sua operação e ampliação das unidades do semiaberto, da monitoração eletrônica e das centrais de penas alternativas. Imprescindível, é a organização de atividades educativas e laborais com cobertura universal, sem o que a função ressocialização do sistema simplesmente não existe. Por fim, uma política de reinserção dos egressos, pois sem ela a taxa de recaída no crime e reincidência permanecerá alta – entre 40 e 70% segundo pesquisas acadêmicas.

Na questão das drogas, é urgente a definição de um claro limite quantitativo que estabeleça uma distinção segura entre o traficante e o usuário. Essa definição, que se encontra nas mãos do STF, irá minimizar o envio massivo de jovens usuários de drogas para o regime fechado pelos juízes das varas penais, onde, para não morrer, eles terão que jurar fidelidade as facções, tornando-se parte do seu exército.

É necessário, ainda, dar prioridade no regime fechado aos delitos de maior impacto, a exemplo dos tráfico de drogas, homicídios, outros crimes hediondos, crime organizado e similares. Já os demais, de baixo impacto, devem ser objeto de medidas cautelares, privativas de direitos, regime semiaberto, monitoramento ou domiciliar. Sem essa priorização, continuaremos prendendo muito e prendendo mal, no dizer o ministro Alexandre Moraes.

Da nossa parte, nos dez meses de existência do Ministério da Segurança Pública, colocamos em prática diversas medidas na direção das política e ações acima propostas. A exemplo de uma política nacional de trabalho e renda para egressos do sistema prisional, dos convênios com o Ministério da Educação e do Trabalho para levar o ensino de jovens e adultos e iniciação laboral às prisões. Procuramos ainda enfrentar o déficit de vagas nas penitenciárias via inovadora parceria com a ONU produtos e serviços; o lançamento de edital dirigido as ONGs, igrejas e entidades de ensino para a proposição de ações e projetos voltados para egressos e apenados; além da criação do SUSP – Sistema Único de Segurança Pública, e de uma Política e um Plano Nacional de Segurança.

Com o Conselho Nacional de Justiça e o STF, desenvolvemos três ações cruciais para retirar o sistema prisional da desordem e obscuridade em que se encontra imerso. Transferimos para o Conselho um total de 90 milhões de reais para realizar a biometria de toda a população carcerária existente, a digitalização e informatização de todos os processos de execução penal do pais – mais de 2 milhões. E a instalação, funcionamento e/ou fortalecimento das centrais de penas alternativas.

Porém há muito mais a se fazer para que o sistema prisional brasileiro, hoje nas mãos e sob o controle das facções, deixe de ser a oficina do diabo que leva medo, terror, violência e morte as ruas de nossas cidades. Uma sociedade indefesa rumo a barbárie ameaça, no limite, a própria democracia.