Violência, anti-intelectualismo e ética na esfera pública
Com Sérgio Adorno. Professor Titular do Departamento de Sociologia da USP. Coordenador do Núcleo de Estudos da Violência.
Ao acompanharmos as recentes declarações dos novos governantes, amplamente veiculadas pela mídia, somos levados a crer que o ano começa sob a égide de flagrante anti-intelectualismo. Trata-se de um comportamento político que revela desconfianças em argumentos racionais, despreza evidências empíricas, coloca sob suspeição quaisquer afirmações de natureza científica capazes de questionar fé e crenças.
Toda uma série de outros corolários associam-se a tal comportamento político, como sejam a recusa a aceitar a pluralidade das formas de organização social da vida, consagradas em nossa Constituição bem como a construção social dos “inimigos da pátria”, considerados assim todos os que manifestam visões de mundo distintas daqueles que hoje ocupam as posições de comando e decisão política no país.
Como toda visão de mundo e comportamento político que advogam a unidade e a homogeneidade, contra a diferença e a diversidade, as contradições vão se sucedendo e se tornando explícitas. Tome-se, por exemplo, o caso da segurança pública e da defesa pessoal. Os motivos apresentados para sustentar a pertinência da posse e uso de armas remetem à defesa inconteste dos direitos individuais.
No entanto, não há qualquer contestação séria e consistente dos argumentos científicos, disseminados em copiosos estudos, que demonstram relação de causalidade entre acesso individual às armas de fogo e a maior prevalência de homicídios. Portanto, para garantir a ordem pública, una, indivisível, homogênea, propõe-se justamente a predominância dos interesses individuais em segurança pessoal contra a segurança pública de maior número.
As reações à crise na segurança pública do Ceará são um outro exemplo, na medida em que a cobrança histórica de envolvimento do governo federal na área passa a ser vista, por vários segmentos conservadores, como uma conspiração contra o atual governo – os vários textos do Faces da Violência em 2018 já indicavam esta questão, muito antes das eleições. A dimensão histórica parece ser deixada de lado e só valer os argumentos do imediato.
E as contradições não param. Na fala dos governantes, o nacionalismo deve prevalecer sobre o “globalismo”. Como sugerem, “o Brasil acima de tudo”. Mas não parece estranho que, em nome da defesa desse nacionalismo, pretenda-se justamente apoiar a instalação de uma base militar americana em território nacional? Tal decisão sinaliza em sentido contrário, isto é o país não estaria em condições de assegurar seu território e de manter a soberania nacional. Por certo, tal pressuposto está em confronto com as tradições das Forças Armadas no Brasil e desconectado com as reais ameaças existentes. Diante da repercussão, em aparente gesto de bom senso e racionalidade política, o governo parece estar abandonando esse propósito.
Mais do que isso, se olharmos os dados disponíveis, a maior e mais imediata ameaça não é externa. Trata-se da normalização da violência letal, que mesmo apresentando uma queda significativa nos primeiros nove meses de 2018, em relação a igual período de 2017, ainda nos faz ser um dos países em que mais se mata no mundo.
Bradando contra ideologias e declarando guerra a todos que não se subjugam à sua visão de mundo, o governo Bolsonaro é reflexo de um problema bem mais profundo que afeta o Ocidente: a conturbada relação entre ética, moral e violência na esfera pública.
Ética e moral representam dois universos interligados, porém distintos. A ética diz respeito às normas que devem orientar a conduta de uns em relação aos outros, no sentido de respeitar as diferenças e os direitos adquiridos, promover a solidariedade e cooperação, evitar desfechos violentos nos conflitos interpessoais, reconhecer a justiça.
Já a moral está relacionada ao universo de valores que tornam certos hábitos reconhecidos como legítimos e imperativos. Abrange os comportamentos julgados desejáveis e esperados de uns em relação aos outros.
No âmbito da ética, deve-se considerar tantos os códigos quanto o modo como eles são aplicados segundo interpretações subjetivas dos atores. As políticas públicas, em essência, dependem de uma ética pública baseada no respeito às leis, ao jogo democrático e ao diferente. É nela que as polícias devem basear suas condutas e protocolos de ação.
No caso da moral, trata-se de ajustar princípios gerais de conduta (não matar, não humilhar terceiros, etc.) aos costumes e hábitos vigentes em uma sociedade em momento determinado de sua história. Se a moral pode ser pensada tanto em termos de particularismos (dos clãs, dos grupos sociais, de grupos religiosos) com a emergência do mundo moderno, ela se afirma mais em mais em termos universais. Não sem razão, a centralidade dos direitos humanos na agenda política dos organismos internacionais.
Bem, o problema que queremos ressaltar é como pensar todas essas questões relativamente à violência. Parece-nos que, do ponto de vista ético, não é difícil encontrar justificativas para condenar o uso indiscriminado da violência. No entanto, do ponto de vista da moralidade privada e pública, os problemas aparecem. E, diante deles, a ponte entre os dois universos fica turva e a violência, não raro e para alguns segmentos da sociedade brasileira, passa a ser defendida moralmente como legítima mesmo sob contexto democrático.
Basta ver as promessas no campo da segurança defendidas pelo atual Presidente da República. Seu símbolo – a mão em formato de arma de fogo – parece traduzir sentimentos, ao que parece com grande repercussão social, de que o uso da violência para garantir ordem e autoridade é moralmente desejável e válido.
E isso ocorre em um ambiente em que mudanças sociais alteraram as relações entre classes sociais, entre gêneros, entre gerações, entre raças e etnias. Nele, a ordem social surge como esgarçada e o pânico moral ganha contornos ao redor das múltiplas configurações e demandas identitárias e de reconhecimento de direitos.
Diante das incertezas, trinca-se o imaginário social do Brasil como uma sociedade única, uniforme, integrada, internamente solidária. E, para resgatá-lo, só haveria duas alternativas contra esse mundo em fragmentação e sob permanente guerra cultural: a) a difusão de um pensamento conservador, até mesmo reacionário, do tipo do defendido por Olavo de Carvalho, que remete seus argumentos ao universo moral, como se este fosse a fonte mesma da verdade; b) e/ou a valorização do senso comum, este espaço carente de mediações entre o pensar e a ação; este espaço no qual prevalece a fake news em detrimento da informação e da evidência.
Evidências científicas e uma ética pública baseada no direito e nas leis são deslegitimadas como fonte de autoridade: tudo é tosco, instantâneo, colado no osso das coisas, sem pele ou veias de circulação. Nesse movimento, como diria acertadamente Hanna Arendt, o poder definha e, em seu lugar, emerge a violência, não apenas como desejo de ordem, mas também como substituição do poder; emerge a postura de guerra contra os pecadores e os inimigos da moral.