A hora de descer dos palanques chegou
Dedico este texto à memória do soldado da Polícia Militar do Rio Grande do Norte, João Maria Figueiredo da Silva, assassinado em uma emboscada ainda não esclarecida, no último dia 21, em São Gonçalo do Amarante, na Grande Natal.
João Maria era associado do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e entusiasta de transformações radicais no modelo de segurança pública brasileira. Sua morte é uma daquelas mortes que, a exemplo de Marielle Franco, nos revelam o grau de crueldade e violência que fomos aceitando conviver no campo da segurança pública nas últimas décadas.
Não à toa, é muito difícil não ser repetitivo quando falamos dos problemas e das soluções na segurança pública brasileira.
Assim, começo citando afirmação feita em outro artigo recente, na qual reiteramos que, quando falamos dos dados sobre segurança pública e violência no Brasil, acostumamo-nos com números assustadores e crescentes da nossa guerra particular. O país, nos últimos anos, foi se dando conta de que estava deitado não em berço esplêndido, mas, sobretudo, em um leito de sangue de milhares de jovens pobres e negros dizimados pela violência letal.
Com suporte das informações compiladas pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e por outras organizações da sociedade civil, não foram poucas as contribuições ao debate em 2018 que nos alertam para a ineficiência fática das políticas criminais e penitenciárias hoje vigentes.
Na segurança, trabalha-se muito, porém cada instituição que compõe o chamado sistema de justiça criminal e segurança pública atua em uma direção e de acordo com diretrizes pouco articuladas. Quase não há coordenação ou integração e, diante disso, quem acaba dando o rumo da área são as emergências e os flagrantes cotidianos. Vivemos sob a égide do medo e, pior, do pânico, que abre margem para discursos salvacionistas e/ou mirabolantes.
Para superar este cenário, é necessário estimular que a União atue tanto por meio da indução de políticas em Estados e municípios, tanto para garantir a coordenação e integração de informações, afinal, o crime não tem fronteiras e não fica contido pelas muralhas das prisões. Se o crime comum é afeito às polícias estaduais, a regulamentação e fiscalização de inúmeras normas e atividades da área é responsabilidade federal, algo pouco assumido pela União até então.
Já faz algum tempo que temos sido enfáticos de que a falta de coordenação federativa e entre Poderes e Órgãos de Estado na prevenção da violência e no combate ao crime organizado é uma das principais deficiências na melhoria da segurança pública no Brasil. E, para mitigar esta falta de coordenação, também temos incentivado a criação de espaços de coordenação e de integração de esforços.
Ficamos positivamente surpresos quando, este ano, o Brasil conseguiu superar algumas de suas históricas dificuldades na segurança pública e avançou na aprovação e regulamentação do SUSP (Sistema Único de Segurança Pública).
O SUSP, que ficou em tramitação por quase duas décadas, parte exatamente da tentativa de coordenar esforços e aumentar a capacidade do Poder Público de fazer frente ao crime, à violência e à necessidade de reduzir o medo e garantir direitos. Trata-se de uma ideia que já é praticada em várias outras áreas da administração pública, como saúde, educação e assistência social, mas que, na segurança pública, enfrentava, por incrível que pareça, enormes resistências.
A segurança fica perdida em disputas corporativistas e em torno de competências legais e mandatos policiais. A bem da verdade, o Susp é um fruto que quase caiu de maduro do amadurecimento institucional da segurança.
Os dados divulgados esta semana pelo Monitor da Violência com o monitoramento da violência letal nos nove primeiros meses de 2018 em todo o país nos dão, no entanto, um sopro de esperança: a comparação com o mesmo período de 2017 indica redução de cerca de 12% nos crimes de homicídio doloso, latrocínio e lesão corporal seguida de morte.
Nada disso é permanente e depende do que será feito daqui para a frente. Além disso, os dados contabilizados não incluíram ainda as mortes provocadas pelas Polícias, que ao fim de 2018 tendem a apresentar crescimento tal como no Rio de Janeiro sob Intervenção Federal.
Se o SUSP ainda não rendeu frutos objetivos, é possível afirmar que o clima de cooperação que o fez ser aprovado e que tomou conta das organizações da área nos últimos meses talvez seja a evidência maior de que o país parece ter se dado conta para a importância da coordenação federativa e republicana na segurança pública.
Governo Federal, Unidades da Federação e Poder Judiciário passaram, enfim, a organizar forças-tarefa e a conversar sobre a integração e compatibilização de seus cadastros sobre presos e sistemas de dados.
Também é importante destacar que o tema da violência contra a mulher foi a alçado à prioridade e várias iniciativas começaram a ser estruturadas. Diversas iniciativas muitas vezes diluídas na imensidão do cotidiano do funcionamento do sistema de justiça criminal e de segurança pública puderam ser conhecidas e fortalecidas.
Por tudo isso, o Governo de Jair Bolsonaro herdará um esboço de novo modelo de governança que busca dar caráter sistêmico para a atuação da União na Segurança Pública, assim como uma Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social pautada na eficiência democrática e na valorização profissional.
Bolsonaro e Sérgio Moro podem, se continuarem na perspectiva de implementar o SUSP, ter sucesso na redução da violência e da criminalidade. Isso também se aplica aos novos governadores.
Para isso, a questão de fundo está posta, ou seja, os futuros governos têm a oportunidade de descerem dos palanques e fazerem um trabalho sério, técnico e muito potente, que, independentemente de preferências políticas, é o que precisa ser feito. Mas, se surfarem no pânico e optarem por ficar na retórica ideológica, a perversa guerra de todos contra todos explodirá de forma ainda mais intensa…