Pesquisa reforça que o ECA funciona e não gera impunidade
Por Luis Flavio Sapori, Professor da pós-graduação em ciências sociais da Puc Minas e associado sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Muito se fala mas pouco se sabe sobre a magnitude da reincidência criminal no Brasil, seja ela de adolescentes e/ou a de adultos. É parte da narrativa corrente afirmar que a taxa de reincidência é de 80%, ou seja, de cada cem pessoas que cumprem pena de prisão, oitenta voltam a cometer crimes após retorno ao convívio social.
Entretanto, esse é um daqueles números cabalísticos que ninguém sabe de onde provém mas que dada sua citação recorrente acaba se tornando verdade inquestionável. E não há nenhum estudo científico no Brasil nas últimas décadas que sustente tal narrativa.
Ao contrário, é possível mencionar duas pesquisas recentes sobre o fenômeno que sinalizam patamares da reincidência bem abaixo dos 80%, sendo uma realizada pelo IPEA que encontrou taxa de 24% e outra realizada por mim e por Roberta Fernandes Santos, ambos da PUC Minas, que obteve a taxa de 51%.
A diferença nas magnitudes deve-se a diferenças nos procedimentos metodológicos adotados nas respectivas pesquisas, sendo que na pesquisa do IPEA a reincidência foi definida quando da sentença transitada em julgado (sem mais possibilidades de recursos) e na pesquisa da PUC Minas a reincidência foi definida quando de novo indiciamento pela Polícia Civil.
No que diz respeito à reincidência de adolescentes infratores, a qual denomino de reincidência juvenil, a lacuna de conhecimento é mais grave ainda. O Instituto Sou da Paz publicou recentemente estudo que revelou o perfil do adolescente em conflito com a lei no Estado de São Paulo, além das variáveis associadas à prática infracional e os principais fatores sociais e individuais associados à reincidência juvenil. Neste estudo, a proporção de reincidentes no sistema socioeducativo paulista foi apurada em 32,6% (1 entre cada 3 adolescentes em conflito com a lei que cumpre medida socioeducativa é reincidente).
Lembro que proporção de reincidentes que cumprem medida socioeducativa, ou mesmo pena de prisão, é indicador diferente de taxa de reincidência. A proporção de reincidentes significa a razão entre o número de indivíduos que estão cumprindo penas ou medidas socioeducativas com registro anterior de crime pela polícia e/ou pela justiça em relação ao total de indivíduos que estão cumprindo penas ou medidas socioeducativas num determinado momento do tempo.
E o mais recente estudo sobre o assunto acaba de ser divulgado, sob minha coordenação, numa parceria entre o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais e o programa de pós graduação em ciências sociais da PUC Minas. Foi definida uma coorte de adolescentes que finalizou o cumprimento das medidas de internação e de semiliberdade em todo o estado de Minas Gerais no ano de 2013, totalizando 435 adolescentes.
Nele, o novo ato delituoso eventualmente cometido pelos indivíduos que compõem a coorte, fato crucial para a confirmação da reincidência, foi estabelecido a partir de novo registro de ato infracional ou de crime pela Polícia Civil do Estado de Minas Gerais entre janeiro de 2013 e dezembro de 2017. O estudo verificou também o impacto de diversos fatores sociais e individuais na chance de ocorrência da reincidência por parte desse contingente de adolescentes egressos.
Eis alguns resultados relevantes obtidos pela pesquisa:
1. Dos 435 indivíduos acompanhados, cerca de 30,1% reincidiram no período analisado;
2. O tipo de convivência familiar influencia a chance de reincidência na medida em que adolescentes com trajetória de rua antes do cumprimento da medida socioeducativa têm chance 32% maior de reincidir do que adolescentes com convivência de família de origem;
3. Os adolescentes que cumpriram medida socioeducativa de internação tendem a reincidir menos do que os adolescentes que cumpriram medida socioeducativa de semiliberdade, no patamar de 36%;
4. Com base em um modelo estatístico de regressões múltiplas binomiais, a variável de impacto mais relevante na chance de reincidência foi “Tempo da medida socioeducativa”, sendo que adolescentes que cumpriram medida de até seis meses manifestaram chance seis vezes maior de reincidência do que adolescentes que cumpriram medida acima de dois anos;
5. A trajetória infracional precoce somada ao início também precoce no consumo de drogas ilícitas constituem fatores dos mais impactantes na reincidência, de modo que quanto menor a idade do adolescente quando do registro do primeiro ato infracional e do consumo de drogas ilícitas, maiores são as chances de reincidência.
Numa conjuntura nacional na qual se discute a redução da maioridade penal com vistas à contenção da violência, as evidências obtidas na pesquisa são importantes. Ao contrário da percepção generalizada de senso comum, a manutenção da maioridade penal no atual patamar de 18 anos não é indutora necessariamente de impunidade.
Em outras palavras, o sistema socioeducativo previsto no ECA tem claro efeito inibitório sobre a criminalidade juvenil. Não é fato que o ECA produza impunidade, mesmo com a pesquisa indicando caminhos que possam dotá-lo de maior eficácia, eficiência e efetividade.
É óbvio que as evidências obtidas em Minas Gerais não podem ser generalizadas para o país como um todo. A despeito dessa limitação, não se pode ignorar que as medidas restritivas de liberdade combinadas a um tempo mais longo de cumprimento das medidas têm claro potencial de evitar que adolescentes infratores se tornem criminosos adultos, especialmente aqueles adolescentes que não iniciaram precocemente sua trajetória infracional.