Na segurança pública, Lula e Bolsonaro são mais parecidos do que gostariam
Os sinais de que os governos Lula 1 (2003-2006) e Bolsonaro serão, para desgosto geral, parecidos na Segurança Pública são vários nesta fase final de montagem da nova estrutura no Ministério da Justiça e da Segurança Pública, a começar pela presença, em ambas as gestões, de dois nomes que ajudaram a moldar a cara da segurança pública brasileira: Márcio Thomaz Bastos e Sérgio Moro.
No caso da gestão do ex-Presidente Luís Inácio Lula da Silva, entre 2003 e 2007, o Ministério da Justiça foi chefiado por Márcio Thomaz Bastos (1935-2014), um dos mais influentes advogados criminalistas desde a redemocratização e, por muitos, considerado um mago da negociação política nos bastidores da justiça e do Poder.
Para se ter uma ideia da influência de Márcio Thomaz Bastos, de acordo com os registros taquigráficos do Congresso, em 1987, o então Presidente da OAB foi um dos únicos não integrantes das forças policiais do país a fazer parte das discussões da Assembleia Nacional Constituinte que resultaram no artigo 144 da Constituição Federal, que regula parcialmente o engajamento do Estado na segurança pública.
Márcio Thomaz Bastos foi, com apoio de nomes como Nelson Jobim e Cezar Peluso, ex-ministros do STF, o arquiteto do amplo projeto de Reforma do Judiciário conhecido como Emenda 45 e que teve como ápice a criação do Conselho Nacional de Justiça, em 2004. Esta foi a sua grande prioridade à frente da pasta da Justiça e que mais o motivava no cargo.
Não à toa, a indicação de Cézar Peluso para o STF foi estratégica para o projeto de Reforma do Judiciário e foi tida como ponto de honra e compromisso pessoal do ex-Ministro da Justiça, que batalhou ativamente por ela junto ao ex-Presidente Lula, que também sofria pressão de outros grupos, em especial o liderado pelo ex-Ministro José Dirceu, que queriam outros nomes.
Foi também na gestão do ex-ministro da Justiça que a Polícia Federal teve o seu melhor momento, com investimentos pesados na contratação de novos policiais (um dos últimos grandes concursos para novos policiais federais, incluídos os delegados, é de 2004) e em tecnologias de rastreamento e intercepção (o sistema Guardião, por exemplo, que adota tecnologia nacional).
Para tanto, Márcio Thomaz Bastos, chamou de volta, logo quando assumiu, o Delegado Federal Paulo Lacerda, que tinha recém se aposentado, e deu ampla liberdade e condições para que a Polícia Federal se reestruturasse a partir de um projeto político-institucional por ela própria engendrado. A ideia de forças-tarefas contra a corrupção, com nomes midiáticos, nasceu deste processo, renovando e fortalecendo a imagem da corporação.
A Polícia Federal também foi beneficiada por Acordos de Cooperação entre Brasil e EUA, pelos quais o governo norte-americano, ajudou a financiar atividades de combate ao tráfico de drogas em território nacional. Várias foram as comitivas de promoção comercial e tecnológica na área de segurança e inteligência organizadas, incluindo algumas para Israel, nação-referência na área de equipamentos portáteis de monitoramento e vigilância e que ganha destaque na futura gestão de Jair Bolsonaro.
Não bastassem tais movimentos, diante da crise que derrubou o antropólogo Luiz Eduardo Soares do cargo de Secretário Nacional de Segurança Pública, em 2003, e enterrou a primeira tentativa de criação do SUSP (Sistema Único de Segurança Pública), Márcio Thomaz Bastos levou para a SENASP o Delegado Federal Luiz Fernando Corrêa, que depois assumiu a Direção Geral da Polícia Federal, em 2007. Ele foi o responsável, direta ou indiretamente, pelo fato de que o Brasil ter, naquela época, cerca de 17, das 27 Unidades da Federação com Delegados Federais como titulares da pasta da segurança pública.
Luiz Fernando Corrêa ficou responsável, na SENASP, pelo planejamento e integração das ações federais e estaduais para a segurança dos jogos Pan-Americanos de 2007, primeiro dos megaeventos esportivos organizados no Brasil. Na ideia de modernizar as polícias, vários equipamentos, armas e sistemas foram adquiridos e/ou desenvolvidos no período que antecedeu os jogos Pan-Americanos.
Além de tudo isso, algumas medidas não obtiveram total êxito, mas também revelam como a gestão Márcio Thomaz Bastos estava sendo conduzida. Lembro da proposta do Instituto Nacional de Identificação, da Polícia Federal, ser “vendido” para as Unidades da Federação como o órgão com tecnologia e condições de colocar em prática o RIC (Registro de Identificação Civil), integrando os cadastros de identificação civil do país e ajudando no combate ao crime (uma pessoa pode ter, em tese, 27 RGs).
E é aqui a síntese do argumento deste texto. Ou seja, se o foco do então ministro foi reformar o Judiciário e fortalecer a Polícia Federal, a segurança pública pensada como redução do medo e da violência foi de certa forma negligenciada ou tratada como “problema dos governadores”, cabendo à União apenas aportar recursos financeiros e tecnológicos (quando eles ainda existiam) e, em situações extremas, assumir o gerenciamento e o planejamento de ações integradas.
O governo federal muitas vezes tentou impor programas, sistemas e ações aos estados e Distrito Federal e deu pouca atenção às demandas específicas de cada localidade. Nas dificuldades de execução financeira, priorizou as compras diretas e as doações, enfraquecendo medidas que não estivessem focadas em equipamentos, como estratégias de prevenção e coordenação entre diferentes níveis e esferas de governo. As ações de valorização profissional vieram na segunda gestão Lula e foram abandonadas pela Presidente Dilma Roussef, a exemplo do bolsa formação, do Pronasci, em 2010.
A gestão de Márcio Thomaz Bastos sempre apostou na ideia de centralização da segurança pública, desconsiderando arranjos federativos e a história da organização do território nacional. Sistemas operativos, como os cadastros e banco de dados, têm funções operacionais relevantes de interesse das polícias.
Todavia, tais sistemas esbarram no fato da história mostrar que o pacto federativo brasileiro sempre funcionou como um eixo de equilíbrio (falho) e de anteparo à concentração de Poder da União, de um lado, e a excessiva autonomia dos estados, por outro lado – o Exército jamais vai permitir que as PM possam utilizar armas de guerra sem supervisão, já que elas rivalizaram com a força terrestre em não poucas revoltas e revoluções contra o Poder Central.
Simultaneamente, nos Governo do PT, as demandas da sociedade civil foram amortecidas pelo discurso simpático à causa dos direitos humanos, mas, na prática, foram tratadas de modo leniente com a permanência e reprodução dos padrões de confronto que vitimizam jovens negros, sejam eles policiais ou não policiais, em patamares obscenos. Em nome do “combate ao crime”, alguns governos do PT são líderes até hoje em números de mortes decorrentes de intervenções policiais e não se diferenciam em nada do discurso do “bandido bom é bandido morto”.
Por fim, a gestão de Márcio Thomaz Bastos não deu atenção às demandas por participação social e focou suas energias nas mudanças incrementais “por dentro”, na ideia de que a segurança pública é uma atribuição de Estado e que sociedade civil mais dá trabalho do que traz soluções. O “saber” seria exclusivo das corporações e elas é que devem ser valorizadas – não os profissionais, já que as condições de vida e trabalho dos policiais brasileiros são e sempre foram péssimas.
Prova disso é que, se tivesse ouvido a sociedade civil, não teria deixado avançar a aprovação da Lei de Drogas (Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006), que ao não estabelecer critérios objetivos para a distinção entre usuários e traficantes, pode ser considerada uma das principais responsáveis pela atual crise carcerária do país e pelo efeito perverso de fortalecimento das facções prisionais.
A gestão do PT, com Márcio Thomaz Bastos à frente do Ministério da Justiça, teve poder e legitimidade para executar reformas profundas no sistema de justiça e segurança do Brasil. Mas, ao se fundar em concepções de política criminal e penitenciárias ensimesmadas e pouco afeitas ao monitoramento e à prestação de contas para a sociedade, perdeu a chance de se conectar com a realidade de milhões de brasileiros vítimas da violência e do medo.
E este parece ser o mesmo rumo da futura gestão de Jair Bolsonaro. Os sinais dados até aqui indicam a força que terá o ex-juiz Sérgio Moro e as tentações que estão sendo postas para a área ser conduzida como sempre foi, com mudanças tópicas de prioridade, personalidade e discurso. Isso porque, com poucas diferenças como generais no lugar dos delegados como a nova tendência para titulares das pastas estaduais da segurança, os anúncios até aqui feitos mostram uma impressionante similitude com o longo histórico acima traçado.
Tanto Márcio Thomaz Bastos quanto Sérgio Moro, tal como na estrutura do Vaticano que empodera os altos burocratas da Cúria Romana, se notabilizaram por serem nomes do sistema de justiça que acumularam, com graus distintos, poder e influência previamente à função ministerial e, por isso, seus projetos e visões de mundo tiveram e terão muito mais chances de serem efetivados.
Sérgio Moro, que além da Lava Jato teve papel estratégico no escândalo do Banestado, em 2003, terá condições ímpares de implementar sua visão de mundo na área da segurança pública e, desse modo, para além da sua correta prioridade de combate ao crime organizado por intermédio de estratégias de combate à corrupção e asfixia do poder financeiro dos criminosos, é importante que vários segmentos sejam por ele ouvidos e, sobretudo, que o Caput do Artigo 144 da Constituição seja assegurado. Ou seja, que as políticas formuladas e implementadas considerem que segurança pública “é dever e responsabilidade de todos”.