Ser patriota no Brasil é reconhecer que a desigualdade racial mata e precisa ser superada

Em novembro são comemoradas duas datas nacionais que, separadas apenas por um dia no calendário, revelam uma imensa [e falsa] distância simbólica entre elas. A primeira, comemorada ontem (19), é uma alusão ao fato de que em 11 de novembro de 1889 foi instituída a bandeira republicana como símbolo máximo de nossa Nação.

Já a segunda, celebrada hoje (20), marca o dia da consciência negra, oficialmente instituído em 2011. A data foi escolhida por coincidir com o dia da morte de Zumbi dos Palmares, líder do quilombo dos Palmares, em Alagoas, em 1695, e tem por finalidade provocar reflexões sobre a permanência de estruturas socioeconômicas, políticas e culturais que buscam “apagar” a ideia de que a desigualdade racial/racismo exista de fato no Brasil e que precisa ser alvo de ações de reconhecimento e superação.

Pouco nos damos conta que o ponto de intersecção entre estas duas datas está em 13 de maio de 1888, data da abolição da escravidão, que libertou os escravos trazidos e mantidos à força no país, mas não ofereceu nenhum tipo de política social e/ou de reparação que os incorporassem como cidadãos na sociedade.

Os negros foram libertados em um dia e relegados como problema público apenas de polícia no outro, já que passaram a ser vistos como elementos de desestabilização social e política da ordem até então vigente e que não estavam mais sob a tutela privada [e cruel] dos seus antigos proprietários.

A violência da escravidão, simbolizada pelos castigos físicos e pela caça voraz e privada que os capitães do mato faziam aos negros fugitivos, não foi vista como um problema do Estado e até hoje gera consequências. Não à toa, os quilombos foram os espaços de refúgio e resistência encontrados pelos negros para sobreviver. Eles nunca foram espaços de “vadiagem”, como muitos tentam nos fazer crer até hoje.

A exclusão a qual os negros foram submetidos no Brasil não foi superada. Tanto é que, de acordo com estudo da Secretaria Nacional de Juventude e da Unesco, encomendando ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública, os jovens negros de 15 a 29 anos de idade correm 2,71 vezes mais chances de serem assassinados do que os jovens brancos na mesma faixa etária.

Em outras palavras, controladas as condições socioeconômicas e demográficas, ou seja, comparando jovens pobres negros e jovens pobres brancos entre si, por exemplo, os negros correm quase três vezes mais riscos de serem mortos do que os brancos. A vulnerabilidade racial não é só fruto da desigualdade social. Ela existe e mata.

De acordo com o Atlas da Violência, parceria do FBSP com o IPEA, enquanto os homicídios de negros cresceram, entre 2005 e 2015 mais de 18%, os homicídios de não negros caíram cerca de 12%. Na mesma linha, agora segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, as vítimas são, proporcionalmente, mais negras em todos os lados, já que 56% dos policiais mortos no Brasil entre 2015 e 2016 eram negros e 76% dos mortos em intervenções policiais também.

Por onde olharmos os números disponíveis, veremos que o problema é real, imediato e exige políticas públicas focalizadas. Se lembrarmos que a nossa bandeira contem os elementos positivistas de ordem e progresso, romper com a ordem social escravocrata que até hoje gera violência contra os negros no Brasil deveria ser preocupação de qualquer patriota; deveria mobilizar todos os brasileiros que acreditam na cidadania brasileira como marca de identidade nacional.

Reconhecer a violência racial não divide o país, muito pelo contrário. Contudo, na força da ideia de apagamento das desigualdades raciais em nome de um projeto de Nação que tem suas origens muito antes da proclamação da República e que não foi por ela totalmente abalado até aqui, o Brasil vai jogando para debaixo do tapete da sua história muitos dos seus traumas e tabus.

E, como consequência, a violência contra a população negra permanece como um dos nossos maiores exemplos de leniência moral e cívica.