Inimigo sem cara esconde incompetência em ações de segurança pública

Sem diminuir a importância e a urgência da repressão qualificada de organizações criminosas que hoje dispõem de forte poder bélico e são uma ameaça ao país, o debate que tem sido feito por várias autoridades eleitas e por nomes por elas escolhidos para chefiarem a área da segurança pública está longe de jogar luz aos reais desafios postos pelo medo, pela violência e pelo crime no Brasil.

Um exemplo dessa dissociação é a discussão sobre fuzis, armas de guerra utilizadas por várias facções criminais e que agora as polícias estão adotando. Falar exclusivamente sobre os perigos associados aos fuzis está tendo apelo popular, mas no fundo é uma tática poderosa para isentar as autoridades eleitas de falar sobre como irão gerir um sistema sobrecarregado e engessado por diversos gargalos de gestão e governança.

Ontem (14), por exemplo, o General da Reserva João Camilo Pires de Campos, escolhido pelo Governador Eleito de São Paulo, João Dória, para chefiar a pasta da segurança pública em sua gestão, deu entrevista ao Estadão e, talvez querendo entrar no “espírito do tempo” que marcou as eleições, destacou que “bandido com fuzil precisa ser considerado uma ameaça”.

No fundo, o General poderia ter falado mais sobre o que pensa acerca dos problemas que de fato afetam a segurança pública paulista, e explicado como o novo desenho organizacional da pasta que ele irá assumir foi estruturado. Mas, infelizmente, ele preferiu discutir uma agenda ideológica construída durante as Eleições e que teve em Jair Bolsonaro e Wilson Witzel, governador eleito do Rio de Janeiro, seus expoentes.

Se ele assim o fizesse, talvez soubéssemos mais sobre como a sua experiência de Oficial do Exército poderia ajudar São Paulo a aperfeiçoar a logística e a coordenação de operações que precisaram dar conta de, só em 2017, 34.151.273 atendimentos feitos pela Polícia Militar e pelo Corpo de Bombeiros do estado. A segurança pública precisa, atualmente, muito mais da mão amiga do Exército do que o braço forte, parafraseando o lema da força terrestre e a reconhecida capacidade que o Exército tem na área de engenharia e logística.

Afinal, desse volume imenso de atendimentos, “só” 1.817.524 foram transformados em Boletins de Ocorrência da PM. Ou seja, 5,4% destas ocorrências foram consideradas como de natureza criminal e exigirão encaminhamentos processuais por parte da PM e das demais instituições que compõem o sistema de justiça criminal do país.

Os demais atendimentos exigem outro tipo de tratamento por parte do Estado e que, se utilizados como fonte de informação e conhecimento (uso que exige um controle rigoroso e constante sobre os bancos de dados das polícias para que não sejam aproveitados politicamente ou para fins não ligados à segurança), podem ser um manancial gigantesco para a melhoria de eficiência da atividade policial e das estratégias de prevenção e redução do medo e da violência, bem como insumos para a repressão qualificada do crime.

Dito de outro modo, damos muito pouca atenção aos atendimentos feitos pelas polícias militares e bombeiros à população e perdemos a chance de fortalecer vínculos públicos que contribuam na conquista da confiança, fundamental para a prevenção dos crimes e para a redução do sentimento de medo e de insegurança. Ficamos preocupados demais com o “criminoso” e não valorizamos estratégias de prevenção e redução da violência e desigualdades. Optamos por sufocar a capacidade de trabalho das polícias e não investimos na coordenação de esforços e na maior efetividade de investigações policiais.

E se tomarmos São Paulo como parâmetro, mesmo reconhecendo as diferenças de eficiência e estrutura entre as várias polícias brasileiras e corpos de bombeiros, chegaremos a um número revelador do tamanho da crise institucional que vivemos na segurança. Temos números inimagináveis de conflitos que são ignorados pelo Poder Público e que, na hora das eleições, são minimizados em nome de um “inimigo” que não tem cara porém é um álibi que esconde a incompetência das políticas públicas em fazer do Brasil um mais seguro e menos violento.

Temos muitas frentes de trabalho abertas que exigem coordenação e diálogo, mas apostamos no confronto e no discurso populista. Pressionamos nossas instituições de segurança com um volume imenso de demandas sem refletirmos sobre e avaliarmos os impactos de tais opções político e institucionais.

Isso é o que revela uma rápida projeção do tamanho da conflitualidade brasileira atendida pelas polícias. Para esta projeção, assumindo que os atendimentos das PM estão ligados a um padrão social de conflitualidade e litigiosidade homogêneo no país e que o número de casos de SP seria proporcional à sua população em relação ao total Brasil, é possível estimar que, em 2017, as polícias militares e corpos de bombeiros brasileiros registraram quase 158 milhões de atendimentos (157.598.890).

E, desses atendimentos de 2017, cerca de 8,4 milhões de delitos (8.367.137) chegaram ao conhecimento de tais corporações e pressionam por respostas mais articuladas. Se tínhamos dúvida de que segurança é um problema, estes números nos mostram que a área não é só um problema, mas é o principal problema da atualidade.

Por certo estes números devem estar superestimados, pois nem todas as polícias do país têm a mesma capacidade logística e efetivo do que a Polícia Militar de São Paulo, mas conferindo dados disponíveis de outros estados com as estimativas alcançadas nesta projeção, as proporções são muito próximas, o que nos permite a presente análise e nos autoriza a fazer os questionamentos deste texto.

E, para além da estimativa, números fornecidos pelos estados reforçam que o problema da segurança pública no Brasil não se resume aos fuzis e armas de guerra, por mais que estes de fato preocupem e demandem estratégias de investigação específicas. Mas os problemas são muitos e não dá para ficar no discurso reducionista que se apoia no pânico e no medo.

Alguns exemplos: o que estamos fazendo para lidar com os quase 350 mil despachos de viaturas feitos pelo 190 da PMERJ na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, em 2017? Ou com os 59.852 flagrantes feitos pela Polícia do Ceará, que representam mais de 50% do volume de flagrantes feitos em São Paulo e, proporcionalmente, são indicativos do padrão de criminalidade daquele estado? E o que os governos estaduais estão fazendo para registrarem as mais de 150 mil armas de fogo no SINARM, da Polícia Federal? Haverá dinheiro para manter essa estrutura?

Mais do que isso, fundamental sabermos como todo esse volume de registros está sendo processado pelas Polícias Civis, muitas das quais sucateadas, e como o Poder Executivo está dialogando com o Ministério Público, com as Defensorias ou com o Poder Judiciário nas várias Unidades da Federação. Afinal, o SUSP (sistema único de segurança pública), será assumido como prioridade no governo de Jair Bolsonaro?

A impunidade não é só fruto da leniência das leis, mas da completa falta de coordenação e de governança democrática de um sistema que, no dia-a-dia, faz milagres para continuar operando.

Em síntese, falar de fuzil dá manchete e tem apelo popular, mas o que os próximos dirigentes da segurança pública falarão sobre as enormes dificuldades que enfrentamos para tornar as respostas públicas mais efetivas/articuladas é que, ao fim e ao cabo, nos dirá sobre o impacto imediato no vida da população. Enquanto isso, quase nada ouvimos sobre o que está sendo feito para processar e esclarecer essa montanha de casos e punir os responsáveis por cometer aqueles considerados crimes. Até agora, apenas um ruidoso silêncio obsequioso ecoa no ar.