A ‘espada de Dâmocles’ da segurança pública
Por Eduardo Pazinato, Advogado, Professor Universitário, Conselheiro do Instituto Fidedigna e Associado Pleno do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
O Brasil vive mais um momento de fronteira na sua trajetória pendular de avanços pontuais e recuos sistemáticos em prol da construção de uma agenda verdadeiramente republicana e democrática no campo da segurança pública. Talvez, em nenhum outro período da sua história contemporânea, o país tenha-se deparado com riscos tão flagrantes de perpetuar e normalizar a prática desmedida de crimes violentos, como os homicídios, os feminicídios e os roubos.
O agigantamento do poder do crime organizado ante a inação e os reiterados equívocos estatais, em conjunto com a propagação e a convivência deletérias de um medo difuso que grassa na representação social da população como uma epidemia, provocando a emergência de saídas autoritárias como supostas respostas para as incertezas e os descaminhos da (não) política nacional de segurança pública.
A falta de uma arquitetura institucional estruturada com base em evidências, preconizando metas claras e indicadores consistentes de monitoramento e avaliação de desempenho dos órgãos brasileiros de segurança pública e justiça criminal e, sobretudo, de resultados concretos na proteção da vida humana, obstaculiza a superação de uma gestão por espasmos dependentes da pressão social.
Note-se que, somente no final do primeiro semestre de 2018, o há muito acalentado Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) ganhou forma, ao ser amalgamado em uma estrutura própria de gestão, como o Ministério da Segurança Pública (MSP), hoje em fase de extinção, assim como, em termos formais, pela edição da Lei Federal nº 13.675/2018 (“Lei do SUSP”), diga-se de passagem, em um contexto extremamente adverso.
Mesmo com os meritórios esforços do atual Ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, à frente do novo e, agora, moribundo MSP, com a proposição de uma governança integrada como ideia-força orientada por um Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social, o qual, apesar dos pesares, e dos já declarados limites, começava a ganhar estofo pela realização de uma consulta pública virtual a respeito , mesmo que parcamente divulgada, como também pela chancela do reformulado Conselho Nacional de Segurança Pública (CONASP). Em cerca de 8 meses avançou-se bastante na agenda da segurança pública brasileira e isso, em muito, é devido ao fato de o MSP ter dado um olhar mais sistêmico para a área.
Desta feita, ao que parece, vislumbra-se a possibilidade de essa jovem política ser fulminada pela crônica de uma tragédia anunciada da descontinuidade das políticas de segurança, seja pela incorporação de outras agendas públicas, seja pela mudança de prioridades institucionais, patrocinadas por velhas novidades da correlação de forças políticas entrantes na cena pública nacional.
A anedota moral atribuída a Cícero de uma espada suspensa sobre a cabeça de Dâmocles, adulador de Dionísio, como parte do exercício de sua fortuna, descreve, de forma alegórica, a insegurança daqueles que, com grande poder, confrontam-se com a possibilidade iminente de esse atributo de autoridade lhes ser retirado, in casu, pela irracional naturalização de discursos belicistas e protofascistas, defendidos como política de Estado.
Como a linguagem constrói realidades, o pseudo-argumento do imperativo de uma “guerra” contra o “mal”, fabricada discursiva e digitalmente com o aporte dos mais modernos e pouco transparentes recursos tecnológicos, em que vale(ria) tudo, inclusive “eliminar” adversários e as diferenças que nos constituem como humanidade, configura sinais evidentes de que o ódio está vencendo a paz; o medo, a segurança; a violência, o diálogo; o desrespeito, a urbanidade; a barbárie, a civilização, a começar pelos seus aspectos simbólicos.
Para exemplificar, o programa de governo do Presidente eleito, registrado no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), tanto o do primeiro quanto o do segundo turno , ao escolher, a contrario sensu do propalado, o discurso fácil da ideologização e da lógica binária, sempre reducionista, da “guerra contra o inimigo” não oferece balizas técnicas para se projetar um efetivo controle, prevenção e redução do flagelo da criminalidade e da violência no Brasil, agora convertido em bandeira eleitoral.
Ao se respaldar em afirmações fragmentadas e esparsas, apenas reifica o sentimento de medo e insegurança, sempre os piores conselheiros, já que dispensam o necessário rigor de critérios técnicos e científicos para ancorar uma política nacional de segurança para além de meros apelos emocionais ou frases de efeito.
É sabido que em um regime presidencialista de coalizão, como o brasileiro, a dispersão de atores e pautas corporativas pode sufocar qualquer boa intenção eventualmente existente, abrindo espaço para um sistema policêntrico de demandas e negociações em torno de um populismo punitivo que se retroalimenta do estado de pavor e ceticismo generalizado da sociedade, impulsionando o uso arbitrário da violência institucional.
A redução da maioridade penal e a dilapidação do Estatuto do Desarmamento são apenas algumas das vindouras pautas-bomba desse novo arco de aliança política do Congresso Nacional, também endossadas, mesmo que de modo mitigado, pelo novo Ministro da Justiça e da Segurança em recente entrevista coletiva.
Nesse contexto, impõe-se compreender a democracia como um valor, em cuja ambiência se possa (re)fundar um Estado Democrático de Direito substantivo no campo da segurança pública. Por isso, há que se estar atento ao fato de que aquilo que se traveste de novo, na prática pode significar o velho mais do mesmo das políticas tradicionais e conservadoras que se deveria querer transformar.
Passado o processo eleitoral, exige-se uma política de segurança pública comprometida com a superação da violência e do crime para toda a cidadania brasileira, sem distinção de qualquer natureza. Do contrário, podemos todos(as) perder a cabeça!