A democracia sob eventual governo de Jair Bolsonaro
Com Mario Schapiro, professor da FGV Direito SP
O pânico moral e a violência transformaram-se em fortes cabos eleitorais do candidato Jair Bolsonaro, em 2018.
Porém, diante dos dados apresentados pelas pesquisas de intenção de voto, o ofício de analista político já foi deslocado para o futuro. A questão mais suscitada é sobre o que seria um eventual governo de Jair Bolsonaro. Os mais cautelosos apontam para variações de uma democracia iliberal, com restrições de direitos e a fragilização dos freios e contrapesos – um endurecimento autoritário por dentro da institucionalidade formalmente democrática.
A biografia do candidato e os discursos de sua campanha justificam a avaliação e corroboram apostas de um destino similar ao de outros países, como a Turquia, Hungria e as Filipinas, onde as liberdades públicas e os direitos humanos sucumbiram ante o autoritarismo do regime político.
Há, no entanto, um registro que merece ser feito sobre os danos já sofridos pela democracia brasileira no curso desta corrida eleitoral. É por estes rasgos que o iliberalismo do candidato líder nas pesquisas tende a vicejar, mais cedo do que se espera. Neste balanço, os rasgos mais profundos são a desorganização da esfera pública e a disseminação do pânico e da violência privada.
A democracia, para funcionar como um regime que organiza o poder e oferece oportunidades de participação política, requer protocolos. O debate público requer alteridade e racionalidade. Alteridade significa reconhecer o outro, o dissidente, como igualmente legitimo, como sujeito de direitos, com cujas ideias se deve dialogar e discutir.
E é isso que Jair Bolsonaro está afrontando ao propor prender, perseguir a banir a imprensa livre ou quem pensa diferente.
A racionalidade representa os parâmetros que devem organizar esse debate. Não vale tudo na disputa política. A contraposição de ideias comporta interpretações diferentes sobre um mesmo fato, mas exige fidelidade aos fatos. A eleição na democracia demanda, portanto, debate e linguagem adequada.
Em 2018, no entanto, não tivemos nem um e nem outro. Os debates foram substituídos pela câmaras de eco do subterrâneo das redes sociais. Ali, sem a mediação institucional da imprensa, sem a cobrança de fontes e a consistência das informações, a linguagem da democracia foi atropelada pela comunicação de guerra. O adversário foi estigmatizado como inimigo e como inimigo deve não apenas ser derrotado, mas abatido.
Para isso vale tudo. Começa-se por negar a legitimidade do postulante contrário, em uma espécie de argumento “contra hominem”: se eles quem falam, não está correto. Deriva disso, a eliminação de qualquer possibilidade de discussão.
As fontes, os dados, os argumentos, as evidências não valem, porquanto estão contaminadas pela sua origem. As consequências são óbvias. Sem um escrutínio público consistente, o eleito adquire um mandato com menos constrangimentos do que seria prudente esperar. Quem terá legitimidade para dizer sobre seus equívocos no governo? Mais grave: o que serão equívocos, se não há contrapontos, mas posições inimigas, nas quais não se deve confiar?
Foi-se além. A desorganização da esfera pública ultrapassou seus limites e alcançou a vida privada, aqui como violência física. Já são inúmeros os casos de agressão e até de homicídio, ocorridos entre os turnos eleitorais. Os casos deixam claro que a linguagem de guerra de fato comunica a sua mensagem.
Se a democracia é uma opção de conflito procedimentalizado, em que as disputas entre os diferentes deve ocorrer dentro das regras, parece evidente que a Turquia de amanhã já é o Brasil de hoje. Como costuma acontecer nas viradas autoritárias, existe cumplicidade entre o público e o privado.
O caso dos policiais de Goiás que, durante treinamento, cantavam palavras em defesa da candidatura do presidenciável Jair Bolsonaro (PSL) é o exemplo didático deste compadrio. Este e outros casos estão acomodados na omissão/conivência das autoridades, das instituições e na senha da linguagem de guerra.
Em seu discurso de posse na presidência do STF, o Ministro Dias Tofolli lembrou da trilha sonora da democratização, o que para alguns soou mais como aviso do que como memória da abertura.
Citou o verso de Renato Russo, “o futuro não é mais como era antigamente”. Dias depois, deixou claro parte de sua inspiração, quando se voltou ao passado para chamar o golpe de 64, de movimento. O elo entre um passado a ser reescrito e um futuro com apostas iliberais é este presente, em que parte das referências foram perdidas sem que a agenda de direitos civis, sociais e humanos tenha sido plenamente implementada no Brasil.
A democracia essa sim já não é mais como era antigamente. E, em muito, porque a violência nunca foi interditada, moral e politicamente, no Brasil, seja ela oriunda das relações privadas (violência contra mulheres, crianças, assédios), do crime organizado e/ou do Estado (uso excessivo da força letal pelas polícias ou caos prisional, entre outras manifestações).
A violência permanece e o pânico continua à espreita. Se nada fizermos para contê-los, o Brasil pode caminhar aceleradamente para a sua “noite dos cristais“. Que saibamos evitá-la!