Roubos e homicídios tiveram forte crescimento durante a ditadura militar e deram início à epidemia de violência no Brasil
Em uma semana decisiva para o Brasil, em que duas fortes forças políticas e de base social parecem confluir para um embate traumático, é interessante analisar alguns dos mitos que estão por mover o debate eleitoral. E, entre eles, um ganha destaque. Ou seja, o mito de que é necessário resgatar a ordem e a moralidade impostas pelo regime militar de 1964, que a história reconhece como um golpe civil-militar mas que, de forma preocupante, começa a ser relativizada por várias autoridades da República, a começar pelo Presidente do STF, Dias Toffóli.
Para refletir sobre esta “verdade”, Alberto Liebling Kopittke Winogron, advogado, associado do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e Diretor-Executivo do Instituto Cidade Segura, faz uma detalhada análise do movimento da criminalidade ao longo das últimas décadas e conclui que não, não vivíamos com menos violência durante a ditadura.
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Uma das ideias mais fortes que impulsionam a candidatura do Capitão Reformado do Exército, Jair Bolsonaro e do seu Vice, General da Reserva, Hamilton Mourão, é a tentadora proposta que conseguirão trazer de volta para o país a paz existente durante a Ditadura Militar(1964-1985).
Segundo essa ideia, que chamamos de “Pax Militar” – em alusão a paz imposta a força pelo Império Romano dentro de suas fronteiras – o Brasil teria vivido anos de paz e baixos índices de criminalidade durante a Ditadura Militar, em razão de uma maior liberdade para as forças públicas usarem a força e da ausência de mecanismos de controle e garantias constitucionais. Para essa visão, que amealha hoje grande apoio social, a situação de violência do país se deteriorou a partir da saída dos militares do Poder e da promulgação da Constituição de 1988, que teria criado um regime de excesso de liberdades e garantias, fazendo explodir a violência no país.
No entanto, entre diversos problemas de cunho ético, moral e jurídico “menores”, esse raciocínio parte de uma premissa equivocada: a ideia que o país viveu um período de paz durante a Ditadura não passa de uma grande fakenews, produzida pelo próprio regime autoritário brasileiro e que adentrou na democracia como uma verdade. Porém, o que de fato ocorreu entre 1964 e 1984 foi justamente o inverso: foi durante a Ditadura Militar que teve início a epidemia de violência no Brasil.
Algumas pesquisadoras da saúde pública, como Vilma Pinheiro Gawryszewski e Maria Helena Prado de Mello Jorge, conseguiram resgatar os dados históricos sobre o número de homicídios e identificaram que a epidemia de violência no Brasil teve início justamente nos dois maiores estados do país, São Paulo e Rio de Janeiro, nos anos 1960 e 1970, durante a Ditadura Militar.
Em São Paulo, a taxa de homicídios subiu 390% durante a Ditadura Militar, saltando de 7,2 homicídios por cem mil habitantes, em 1965, para 35,6 em 1985.
Apesar da narrativa da mídia atribuir a violência no Rio de Janeiro aos dois governos de Leonel Brizola, os índices de violência no estado dispararam durante a Ditadura. Em 1984, segundo Julio Jacobo Waiselfisz, quando teve início o primeiro governo de Brizola, as mortes por homicídios já representavam 46% das mortes de jovens, com uma taxa de mais de 80 jovens assassinados a cada cem mil jovens naquele estado.
Foi justamente durante a Ditadura Militar que ocorreu a chamada mudança de “padrão de mortalidade violenta”, com a violência se espalhando pela juventude brasileira. Entre 1920 e 1960, a maior causa de morte de jovens no Brasil se dava em razão de doenças. No entanto, a partir da segunda metade dos anos 1960, as mortes violentam assumiram o primeiro lugar como causa da morte de jovens no Brasil. Apenas entre 1979 e 1984, o número de jovens assassinados no país subiu 22%, chegando a representar 26,6% do total de jovens entre 15 a 24 anos que morriam no país a cada ano, isso sem levar em consideração a alta taxa de corpos que eram sepultados sem registros, estimada em pelo menos 20%.
Apenas durante o Governo do General João Figueiredo, entre 1979 e 1985, os homicídios subiram 28% em todo o país, perdendo apenas para o Governo Sarney, como o Governo com o maior aumento de violência desde o início dos registros nacionais (diferença nas taxas de homicídios durante os governos: Collor, -9; Itamar, + 17,8; FHC, +22,3; Lula, -5,8; Dilma, 10,6). Se juntarmos o último governo militar e o primeiro governo civil, ainda antes da Constituição de 1988, o aumento dos homicídios chega a 76%.
Em razão de problemas na qualidade dos registros das mortes violentas no país, existem algumas diferenças na forma de mensurar os homicídios no Brasil especialmente entre 1981 e 1996, quando o Ministério da Saúde modificou e melhorou a forma de registro. Estimativas mais realistas, que consideraram que 50% de todos os crimes registrados como de intencionalidade desconhecida pelo SIM sejam considerados como intencionais e que se assuma que 96% dos intencionais sejam tomados como homicídios, de acordo com Leandro Piquet Carneiro, aponta que os Governos Militares entregaram o país em 1984 com uma taxa de 22 homicídios a cada cem mil habitante.
Se considerarmos a taxa de 2017 de 30,8 mortes violentas intencionais, apontada pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública, teremos que durante o período democrático entre 1985 e 2018 (33 anos), os homicídios subiram 40% (lembrando que o Anuário computa as Mortes Decorrentes de Intervenção Policial que à época da Ditadura não eram registradas). Porém, se levarmos em conta as taxas de São Paulo e Rio de Janeiro em 1964, como referência, é possível estimar que o número de homicídios durante a Ditadura Militar possivelmente tenha aumentado mais do que 100%, ao longo dos seus 21 anos de duração, demonstrando a falácia da Pax Militar.
Em relação aos crimes contra o patrimônio, novamente ocorre a mesma ilusão. Um estudo mostrou que a taxa de roubos em São Paulo, em 1984, já era de elevados 270 roubos por cem mil habitantes. Se considerarmos os dados da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, veremos que essa taxa foi de 303 roubos por cem mil habitantes, em 2017, ou seja apenas 12% maior do que ao final da Ditadura Militar.
Não há dúvida que os governos democráticos até o momento não enfrentaram o tema da violência no país com a prioridade necessária e a situação atual é muito grave, exigindo ações fortes e determinadas por parte da União. Vários governos estaduais, inclusive os de “esquerda”, pegam carona entusiasmada no bordão “Bandido Bom é bandido Morto” e liberam suas polícias para agirem com “rigor e em legítima defesa”. No entanto, a ideia de que o Regime Militar foi eficiente para manter o país sem violência se trata apenas de uma falácia repetida ao longo dos anos e que se transformou numa falsa e perigosa memória coletiva, muito em razão da falta de implementação de mecanismos transicionais efetivos.
Enquanto nos iludimos com a tentação autoritária, deixamos de debater diversas experiências de sucesso de países que conseguiram vencer a violência e ao mesmo tempo fortalecer suas democracias. Esses países modernizaram e valorizaram suas polícias, aumentaram a transparência, o controle de armas e do uso da força e passaram a implementar estratégias de Segurança Pública Baseadas em Evidências, exatamente o inverso do que os regimes autoritários de esquerda ou de direita fazem e do que a Pax Militar fez no Brasil.