Homicídios mais do que dobram em municípios que elegeram policiais como vereadores, diz estudo de instituto de pesquisas em Tolouse, na França
Às vésperas do primeiro turno das eleições 2018, que têm sido marcadas pelo protagonismo de discursos pretensamente de reeducação moral e resgate da ordem e da autoridade, uma das questões que mais chamam atenção é o crescimento dos candidatos egressos das fileiras das instituições policiais e das Forças Armadas.
Algumas das associações profissionais do setor estão, inclusive, engajadas em campanhas para fazerem crescer a representação policial no Congresso e nas Assembleias Legislativas, na ideia de desfazer o nó do sistema de vetos perfeito que impera na área, pelo qual cada categoria tem força para impedir o avanço de pautas contrárias aos seus interesses, mas, simultaneamente, ficam capturadas por esta mesma lógica e não conseguem aprovar temas por elas considerados estratégicos.
E isso é algo não só legítimo, mas bastante compreensível. Os policiais brasileiros estão submetidos à uma enorme pressão no trabalho, como demonstraram artigos recentes de Rafael Alcadipani e Daniel Cerqueira. Nossos policiais estão sendo caçados pelo crime organizado e são postos na “frente de batalha” para matar ou morrer sem maiores preocupações com a garantia de direitos deles próprios e da população.
O Poder Público tem reproduzido com entusiasmo o modelo de confronto mesmo com diversas evidências de que o caminho tomado não funciona e que ele apenas interage com as concepções de ordem de segmentos sociais tomados pelo pânico e pela violência. Boa parte da legislação que dá suporte a este modelo é anterior à Constituição Federal de 1988 e os candidatos preferem jogar a culpa nela do que revisar a arquitetura e a forma de organização do nosso sistema de justiça criminal e de segurança pública.
Mas eleger policiais apenas pelo fato de eles serem policiais e terem, em tese, a experiência do cotidiano resolve o problema?
De acordo com o Lucas Novaes, cientista político do Instituto de Pesquisa Avançada em Toulouse, na França”, não. A atuação de policiais como políticos não garante maior eficiência na redução da violência e no controle do crime.
O pesquisador acaba de concluir um estudo, intitulado “The Violence of Law and Order Politics: The Case of Law Enforcement Candidates in Brazil“. Para ele, altos índices de insegurança tornam atrativos os candidatos que prometem combater a criminalidade. E, nesta toada, é comum, no Brasil, policiais ou militares se candidatarem justamente para aproveitar esse anseio de alguns eleitores. O estudo analisa os candidatos policiais aos cargos de vereadores.
Segundo o levantamento feito por ele, do ano 2000 pra cá, mais de seis mil policiais ou militares se candidataram a vereador fazendo campanha sobre segurança, e ao redor de seiscentos se elegeram. Porém, o que acontece com a segurança pública após a eleição de um desses candidatos é um tanto incerto.
Para Lucas Novaes, a proposta desses candidatos é, em geral, reduzir o crime através de uma polícia mais atuante e às vezes mais repressiva, mas se tomarmos o exemplo recente do México sabemos que o combate frontal ao crime pode trazer consequências graves em relação a assassinatos. Desde que o governo mexicano intensificou o combate ao crime, homicídios mais do que dobraram. De maneira similar, a eleição de um candidato policial ou militar comprometido a combater o crime pode também aumentar a violência.
O trabalho mostra que esse é o caso dos municípios no Brasil. Em geral, é difícil analisar os efeitos da eleição de um desses “vereadores-policiais” sobre crime e violência pois diversos fatores podem influenciar a eleição desses candidatos, como o cenário político local ou a taxa de homicídios antes das eleições. Assim, qualquer resultado após a a eleição desses vereadores pode ser produto desses fatores anteriores, e não da eleição. Não há como isolar uma relação de causalidade direta, mas alguns pontos podem ser associados para debate.
A metodologia do estudo, chamada de regressão descontínua, tenta solucionar esse problema seguindo uma ideia simples: comparar municípios que elegem um vereador-policial por uma pequena margem de votos, e outros onde esse tipo de candidato chegou próximo a vitória, mas perdeu por poucos votos. Assim, um município receber ou não o tratamento, isto é, eleger ou não um vereador-policial, é quase um processo aleatório, assegurando que além da “sorte” de eleger um vereador os dois grupos de municípios são estatisticamente semelhantes.
Os resultados do estudo mostram que municípios que elegem um vereador-policial gastam mais em segurança, diminuem modestamente crime (especificamente roubos a carro), mas praticamente dobram o número de homicídios. A taxa média de homicídios nos municípios sobe de 20 para 43 assassinatos para cada 100 mil habitantes, tornando a taxa próxima de países que sofrem conflitos civis abertos e guerras.
O estudo também identifica que esse aumento de homicídio atinge com mais força homens pobres pretos ou pardos. Para Novaes, como não há informação sobre a condição social das vítimas de homicídios, e a relação entre cor da pele e renda é muito acentuada, é muito provável que os homicídios recaiam naquele grupo não porque não são negros, mas porque são pobres. Esta é uma longa discussão sobre a existência e os efeitos do que é definido como “racismo estrutural” do Estado brasileiro.
Por fim, o autor frisa que os resultados da pesquisa mostram que o aumento da violência não é ocasionado pela ação direta dos policiais contra a população. Ou seja, não há um aumento na letalidade policial, medida com base nos dados da saúde, já que os dados da segurança não são desagregados por municípios. Em outras palavras, os dados de Lucas Novaes reforçam muitos dos levantamentos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública que indicam que a questão da violência no Brasil não é derivada de apenas um ator ou instituição, sejam eles o crime organizado, a sociedade ou o Estado.
Vivemos um cenário de naturalização desta violência e, aterrorizados pelo medo, acreditamos e/ou ficamos reféns de propostas salvacionistas radicais, que só tendem a agravar o quadro de insegurança e de desconstrução da cidadania brasileira. Nos deixamos levar pelas emoções e esquecemos que as estruturas desiguais e perversas que regulam a ação pública são centenárias e não foram ainda completamente modernizadas à luz das cláusulas pétreas da nossa Constituição.
Não há direitos demais e obrigações de menos, como querem nos fazer crer muitos dos políticos que agora se colocam como paladinos da moralidade. Há, sim, um paradoxo que provoca impunidade quase que generalizada para crimes violentos e punição rigorosa e seletiva para determinados perfis sociais e/ou delitos, em geral aqueles passíveis de serem combatidos pelo enfrentamento direto e pela prisão em flagrante. Pouco avançamos para aumentar a eficiência da investigação e vamos reproduzindo, à direita e à esquerda, estereótipos, iniquidades e preconceitos.
Em suma, o trabalho de Lucas Novaes nos aponta um problema grave sobre a intersecção de políticas de segurança e política. Como o grupo que paga com a vida é também aquele que menos têm voz na política, o político que implementa más medidas de segurança dificilmente irá pagar eleitoralmente pelos mortes ocasionadas pelas suas ações.
Estão certas as associações policiais em quererem que sejam diretamente representadas por seus membros. Não vejo nenhum problema nisso. É mais do que justa a pauta. Porém, e isso se aplica a qualquer segmento profissional, a política não pode ser reduzida a interesses corporativos e, não à toa, boas políticas de segurança pública podem ser formuladas por policiais ou por não policiais, até porque esta é uma área que depende de diversos atores sociais e carreiras.
Não é a profissão ou a carreira que irá determinar a “qualidade” e o “efeito” da atuação legislativa dos policiais candidatos. Há nomes entre os policiais brasileiros altamente qualificados e que merecem o voto da população e há, como em outras áreas, quem queira apenas fazer valer seus valores e visão de mundo, independente do real impacto na população. Mas, o ponto mais importante, é que mais do que nunca precisamos defender a vida como valor absoluto a ser tutelado pelo Estado e garantido pelas políticas públicas. Reduzir a violência e reprimir o crime organizado de forma eficiente e nos marcos da Lei é uma tarefa coletiva e que precisa mobilizar a todos e a todas.