A influência do PCC: o exemplo das facções criminais do Rio Grande do Sul
Texto de Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo e Marcelli Cipriani, da PUC/RS, que busca mostrar a influência do modelo PCC na organização das facções criminais no Rio Grande do Sul e que serve de exemplo e alerta para pensarmos estratégias mais eficientes de repressão qualificada do crime organizado no Brasil.
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Na terceira galeria do pavilhão F, dentro da Cadeia Pública de Porto Alegre, celulares apitavam. Em mensagem recebida pelos presos dos Bala na Cara, principal facção criminal gaúcha, a foto de um indivíduo estava acompanhada da pergunta cuja resposta selaria o seu destino: alguém conhece esse cupinxa? Momentos antes, o sujeito transitava pelo bairro Bom Jesus – reduto da facção na capital – quando foi interpelado por integrantes do grupo que estranharam sua presença na região.
Levado a uma residência e mantido sob cárcere privado, seria então fotografado para que a imagem circulasse pela galeria prisional. Sua vida, dali em diante, dependia de uma identificação. Se ninguém soubesse de quem se tratava, provavelmente ele seria um contra, um inimigo que tinha de ser eliminado.
Embora as relações criminais na capital gaúcha venham sendo pautadas, a partir de meados dos anos 90, por grupos em conflito, a generalização dessas dinâmicas entre o binômio “aliados ou contras” atingiram, recentemente, níveis críticos. Em 2016, como reação à expansão forçada dos Bala na Cara – também apelidados de “toma bocas” pela violência com que se apropriam dos pontos de comércio ilícito alheios – constituiu-se o “embolamento” dos Antibala.
Em outros termos, se formou um agregado de grupos menores, capitaneados pelos V7, com o objetivo de antagonizar com os Bala, que vinham se espraiando em ritmo veloz desde a década anterior. Nos meses que se seguiram ao surgimento da aliança, um ciclo de ataques e de execuções explodiu em bairros onde, no município, esses agrupamentos estavam presentes.
Diferentemente do que ocorre com o PCC em São Paulo, as dinâmicas do tráfico de drogas em Porto Alegre – na prisão e fora dela – são essencialmente pautadas pelo controle territorial, sujeito a uma multiplicidade de grupos. Atualmente, existem sete deles, de dimensões variáveis, distribuídos entre doze galerias da Cadeia Pública: os Manos, os Bala na Cara, os Abertos, a Conceição, a Farrapos, os Unidos Pela Paz e, mais recentemente, os V7.
Cada uma das galerias, que representa o andar de um pavilhão, agrega indivíduos oriundos das áreas em que a facção tem influência. É delas que partem as determinações sobre aliados e contras no município, cada vez mais afuniladas entre três principais frentes: Manos, Balas na Cara e Antibalas.
O primeiro, em consonância com o Comando paulista, procura se distanciar da ideia da guerra, privilegiando as negociações no lugar do uso da violência física. Os dois últimos, por sua vez, estão envolvidos em incessantes ofensivas recíprocas nas periferias da capital – não só para a tomada de pontos de comércio, mas também para a demonstração de poder.
Quanto mais extenso é o domínio de um grupo nos bairros urbanos, maior será o contingente de presos a ser levado para o seu espaço na prisão. Em contrapartida, a alocação de indivíduos nas galerias dos grupos abre espaço para o estabelecimento de novas relações comerciais, com a ampliação do abastecimento das bocas que passam a estar associadas a partir dos presídios.
Em paralelo, a fim de assegurarem que, caso encarcerados, terão onde ficar, integrantes de grupos menos expressivos precisam, na rua, fazer acordos comerciais ou estratégicos com grupos maiores – que também são os que têm melhores condições de oferecer proteção através do apoio de pessoal e armamento. Com isso, seu poder é fortalecido, a partir dos fluxos recíprocos entre a prisão e a rua.
O PCC tem como característica conferir autonomia aos indivíduos no estabelecimento de negócios no crime, dado que as atividades do grupo são de outra ordem, estando associadas a um pertencimento coletivo. Nesse sentido, suas relações também são pautadas por um discurso de união contra a opressão do Estado, e pela organização para o seu enfrentamento. Nos grupos de Porto Alegre, por sua vez, essa dimensão discursiva não foi mobilizada em torno de um ideal de emancipação, enfrentamento ou de uma tomada de consciência coletiva.
Ainda, a conjunção entre diferentes pontos de comércio que conforma os grupos está, em regra, associada com a fidelidade quanto ao fornecimento dos produtos comercializados: ou seja, a droga vendida em bocas dos Manos ou de seus aliados não pode ter sido provida pelos Bala, e vice-versa. Assim, a pluralidade de agrupamentos em disputa corrobora com a intensificação da violência, e a imposição de alinhamento interno para a compra de mercadorias acelera a corrida por controle de bocas.
Por fim, o teor da identidade partilhada entre seus membros – que, em parte relevante, está marcado pela oposição aos rivais – afasta qualquer perspectiva de pacificação das relações criminais ou de associação em nome de um inimigo comum.
Em reportagem recente, o jornalista Humberto Trezzi, do Jornal Zero Hora, apresenta documento do Ministério Público paulista, em que consta a informação de que o PCC já teria 729 “simpatizantes” no estado do Rio Grande do Sul. Segundo a matéria, que também utiliza como fonte o jornalista Bruno Paes Manso, do Núcleo de Estudos da Violência da USP, o grupo paulista teria firmado alianças com grupos gaúchos adversários dos Bala na Cara. Eles assumiriam a posição de “primos” e não de “irmãos” – aliados, mas não necessariamente batizados.
Com a transferência, no ano passado, de 27 presos para presídios federais localizados em outros estados – muitos deles, em posição de liderança nas facções gaúchas – é possível que essas aproximações tenham sido aprofundadas, também vindo a trazer novos contornos aos negócios ilícitos locais. De acordo com Camila Dias e Bruno Manso, em livro recentemente publicado, um membro do PCC caracterizou o sistema penitenciário federal de “comitê central do crime” – dado que reúne indivíduos oriundos de diferentes estados e grupos criminais, abrindo espaço para o estabelecimento de alianças e rupturas.
O domínio de facções criminais no mundo do crime é efeito da política criminal adotada no Brasil nas últimas décadas. Com a superlotação carcerária, motivada pela cada vez maior criminalização de pequenos traficantes e assaltantes, que se dá pelo predomínio das prisões em flagrante, em detrimento da investigação criminal, que poderia trazer resultados mais direcionados, por exemplo, para a responsabilização criminal dos autores de homicídio, o ambiente prisional se tornou um espaço privilegiado para as articulações entre grupos ligados aos mercados ilegais.
Para manter a ordem em presídios superlotados, o Estado abre mão de exercer um controle mais rígido, e autoriza a organização interna de grupos que atuam foram das prisões. A Cadeia Pública de Porto Alegre é o exemplo extremo, dentro da qual as alas estão há muito tempo sob o domínio das facções.
Embora a influência do PCC ainda seja pequena no Rio Grande do Sul, seu modelo já é replicado: se o Estado não atua de forma lícita, impondo uma dinâmica de violência policial nas periferias urbanas e de descontrole no cárcere, o mundo do crime se mobiliza para assegurar um mínimo de previsibilidade e segurança para seus integrantes, garantindo renda e proteção, mesmo que nas precárias condições de bandos criminais em disputa.
Violência policial, encarceramento duro e abusos praticados por agentes do Estado são o solo fértil no qual eles se disseminaram. Reverter esse quadro implicaria evidentemente adotar um outro modelo de segurança pública, com mais inteligência, foco na violência letal, profissionalismo e tratamento igualitário pelo Estado. Este o desafio colocado para os governantes eleitos em outubro. Ou o aprofundamento da barbárie.