Policiais brasileiros morrem 3 vezes mais por suicídio e 19 mais por assassinatos do que os policiais dos EUA; e matam 7 vezes mais.

Por Daniel Cerqueira, Doutor em economia, pesquisador do Ipea e conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

O medo é um estado afetivo suscitado por ansiedade irracional ou fundamentada e funciona como um mecanismo de autopreservação das espécies. Trata-se, portanto, de uma das forças mais poderosas de mobilização da ação humana, posto que se liga diretamente aos instintos atávicos. Contudo, nas complexas sociedades modernas, o medo pode ser um péssimo conselheiro. Como nos ensinam os economistas e matemáticos, que desenvolveram a “teoria dos jogos”, em processos de interação social não cooperativos, cada indivíduo ao buscar o melhor para si, muitas vezes, leva a um equilíbrio social que engendra a pior situação para todos.

A segurança pública nos dá um exemplo muito claro, em que o temor e a angústia desenfreada de uma população, aturdida com décadas de violência extrema, faz com que cada um procure caminhos individuais para a sua autopreservação, não, necessariamente, os melhores. Assim as pessoas se segregam em condomínios ou atrás dos blindados; abandonam espaços públicos; se armam; e votam nos mercadores do medo que, com seu ilusionismo, vociferam contra a encarnação idealizada do mal – o vagabundo, o criminoso – sem, contudo, propor ou se comprometer com ações efetivas para a diminuição do crime.

Pior, muitas vezes as proposições que seduzem inúmeras almas contribuem para jogar mais lenha na fogueira da violência, conforme nos mostra a nossa história recente. A corrida armamentista desde os anos 80, a política de execução extrajudicial por inúmeros grupos de extermínio (muitas vezes apoiada por políticos e pelo próprio aparelho do Estado) e o crescimento da brutalidade policial pelo Brasil afora, nos mostram o principal resultado (documentados em inúmeros artigos científicos) da retórica dos mercadores do medo: um espiral de mais e mais violência.

Nesta linguagem das sombras na caverna nasce o mito, que faz apologia a torturadores em pleno Congresso Nacional e que supostamente defende os policiais, ao propor a licença para “matar vagabundo” e ao exortarem-nos a candidatos a heróis e salvadores da pátria. Etimologicamente – talvez em um incrível caso de ato falho coletivo – não há qualificativo mais apropriado, uma vez que mito, que vem do grego “mythós”, significa “invenção, lenda, relato imaginário ou fantástico”, ou algo distante da realidade.

A sinalização da licença para matar, ao contrário de atuar na solução do problema, que consiste em diminuir a violência e garantir paz para a população, pelo contrário, gera quatro efeitos extremamente perniciosas, em que o principal perdedor é o próprio policial Primeiro contribui para um espiral de violência e para o aumento da demanda por armas, pelos criminosos, que se envolverão num processo de vinganças recíprocas, assim como acontece nas guerras entre as facções criminosas.

Em segundo lugar, ao propor um acirramento do pertencimento, do “nós contra eles”, coloca no meio de uma guerra as comunidades pobres, que se nutrirão de ódio contra os policiais e assim inviabilizarão qualquer processo de colaboração e coprodução da segurança pública entre polícia e comunidade.

Em terceiro lugar, potencializa o mercado das propinas, uma vez que a falta de controle quanto ao uso da força (que deveria seguir critérios técnicos do gradiente da força: de legalidade, necessidade, oportunidade e proporcionalidade) faculta livremente ao policial na ponta a capacidade de matar ou não e, portanto, de cobrar propina ou não, o que utilizado pelos maus policiais faz com que o trabalho dos bons profissionais seja perdido e não efetivo.

Por fim, a licença para matar, ainda que desperte os brios dos policiais, que são colocados como heróis e salvadores da pátria, termina contribuindo para a vitimização e morbidade física e mental deles mesmos, que veem reiteradamente seus direitos profissionais e humanos desrespeitados. Afinal, a figura do herói é a de um ser humano que não é comum, que precisa ter as condições de trabalho operacional e tático respeitadas. O herói pode trabalhar sem o equipamento adequado de proteção. O herói é forjado na ação e no campo de batalha. O herói não tem direito a dispensa médica, mesmo quando com transtornos emocionais graves atestado por médicos.

Nesta situação, o policial brasileiro opera sem as condições mínimas de segurança própria, exorbita no uso da força e termina sendo ele mesmo a principal vítima, ao ter uma maior prevalência de vitimização fatal; ao desenvolver graves problemas de morbidade mental/emocional; e, no desespero, encontrar no suicídio uma saída. O que, quase sempre, é um tema tabu, acaba sendo uma questão de saúde pública e que tem ligação direta com as condições de vida e trabalho destes profissionais. Não é um fenômeno individual apenas.

De fato, a prevalência de suicídios entre policiais no Brasil é cerca de três vezes maior do que na população em geral, ao contrário do que ocorre nos EUA, onde para cada civil que se mata, na média 0,9 policial comete suicídio. Enquanto que nos EUA, a taxa de suicídio entre policiais é de 12,0 suicídios por 100 mil policiais e a da população é de 13,3 para cada 100 mil habitantes (relação de 0,09 entre as duas), no Brasil, estas taxas são, respectivamente de 15,3 e 5,5 (relação de 2,8 entre as duas).

Agora, se compararmos as taxas de letalidade policial dos dois países, verifica-se que o policial brasileiro mata cerca de 7 vezes mais do que o norte-americano (que já é um país extremamente violento para o padrão dos países desenvolvidos). Porém, o policial brasileiro é assassinado numa taxa 19 vezes maior do que aqueles. Um policial que atua sem as condições de autoproteção adequada é portanto um policial que mata mais, que adoece mais e que não tem condições de garantir nem a sua segurança e de sua família, quanto mais a da sociedade.

Valorizar o policial passa, portanto, por dar fim a este quadro gravíssimo de retroalimentação da violência. No entanto, os mercadores do medo continuam em suas retóricas irresponsáveis na sanha por votos, sem se importar com a vidas das pessoas e do policial, que precisam ser preservadas.