As facções prisionais no Brasil
Esta semana o Fórum Brasileiro de Segurança Pública publica uma edição especial do Anuário Brasileiro de Segurança Pública (clique aqui para ter acesso à íntegra da edição especial), com dados e análises das 27 Unidades da Federação para os últimos 4 anos. É um esforço para que a segurança pública seja objeto de uma ampla discussão e soluções sejam pensadas e propostas. E, entre os dados e análises, Camila Dias e Bruno Manso prepararam um panorama detalhado das facções criminais no país, que reproduzo abaixo.
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Tecendo redes criminais: as políticas de encarceramento e a nacionalização das facções prisionais
Por Camila Nunes Dias, Professora da UFABC, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência (NEV-USP) e associada ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública; e, Bruno Paes Manso. Jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV-USP).
Na segunda metade da década de 2000 um fenômeno “silencioso” – muitas vezes, silenciado – foi conformando o cenário de uma grave crise social e política cujos efeitos só seriam expressos de maneira mais concreta anos depois: a expansão das chamadas “facções prisionais” para além dos seus tradicionais redutos, Rio de Janeiro e São Paulo.
O número absoluto de presos, as taxas de encarceramento, o número de estabelecimentos prisionais e também o déficit de vagas não deixaram de crescer. O aumento do encarceramento e da rede de instituições carcerárias em todo o Brasil era puxada pelo “exemplo” paulista, a locomotiva carcerária do país.
Além da expansão física do sistema carcerário tradicional, o bom momento econômico e político do país, paradoxalmente, deu condições para que uma antiga reivindicação dos estados fosse atendida pelo Governo Federal: a criação do Sistema Penitenciário Federal (SPF) que em 2006 inaugurava, assim, uma “nova política prisional” capitaneada pela União. Inspiradas nas supermax norte-americanas, as unidades prisionais do SPF são caracterizadas pelo regime disciplinar rigoroso no qual o custodiado permanece em “solitárias” durante 22 horas por dia, sem possibilidade de utilização de rádio, TV e nenhum outro equipamento elétrico.
Os destinatários desta “nova e moderna” política prisional seriam os presos “perigosos”, especialmente aqueles que eram apontados pelas administrações estaduais como “lideranças” de organizações criminosas.
O policiamento militarizado e focado nos confrontos em detrimento de investigação e inteligência, a opção por priorizar gastos com a compra de viaturas e armas em detrimento de investimento em treinamento e tecnologias e meios que permitissem aumentar o esclarecimento de crimes foram opções cruciais para que as polícias continuassem enxugando gelo com as prisões em flagrante, ao mesmo tempo que mantinham o padrão historicamente violento de atuação, com altas taxas de letalidade – e também de vitimização policial -, e muitas denúncias de arbitrariedades, torturas, espancamentos, corrupção etc.
A questão é que, a despeito dos avanços em quase todos os indicadores socioeconômicos na segunda metade da década, as opções políticas no campo da segurança pública insistiam em formatar o cenário institucional propício para a nacionalização das redes criminais-prisionais que já eram bem conhecidas no Rio de Janeiro e em São Paulo. Neste cenário institucional, não é difícil compreender como ocorreu o processo de “faccionalização” do país.
Considerando a forma de atuação desses grupos, podemos identificar ao menos quatro movimentos: 1. um projeto de expansão do PCC através da rede carcerária com a criação de “Sintonias” vinculadas organicamente à estrutura paulista; 2. migração de indivíduos foragidos e vinculados ao CV ou ao PCC e, em geral, envolvidos em roubos a instituições financeiras; 3. o surgimento de grupos locais, em quase todos os estados, em aliança (ex: GDE-CE, Bonde dos 13-AC, Estados Unidos-PB, Bonde dos Malucos-BA), ou em oposição (ex: FDN-AM, PGC-SC, Okaida-PB, Sindicato do Crime-RN) ao PCC; 4. a expansão do CV através da abertura de franquias em outros estados e da coligação com grupos locais.
O crescimento do mercado consumidor de maconha, cocaína e crack em todas as regiões brasileiras, nas grandes, médias e pequenas cidades permitiu a costura das redes carcerárias às malhas urbanas em todo o país.
A despeito da grande diversidade nacional e de configurações locais muito específicas, nota-se que as taxas de homicídios são maiores e em tendência de crescimento nos locais em que há maior fragmentação e, especialmente, onde essa fragmentação está referida a grupos que se opõem entre si.
Ao mesmo tempo que a organização do mercado de drogas a partir do domínio do sistema penitenciário permitiu ao PCC lucrar com a diminuição dos conflitos e dos homicídios no mundo do crime paulista, a chegada do grupo no mercado de outros estados produziu enorme instabilidade dentro e fora dos presídios, promovendo alianças e rivalidades violentas, tendo um reflexo no aumento das taxas de homicídios, como ocorreu principalmente nos estados do Norte e do Nordeste, como Amazonas, Roraima, Acre, Pará, Rio Grande do Norte, Ceará, Sergipe e Paraíba, para citar alguns.
Neste sentido, vale ressaltar a limitação de políticas de segurança pública que não apresentam uma perspectiva que integre ações de repressão qualificada (com inteligência e investigação) com ações (de curto, médio e longo prazos) de prevenção, construídas com a oferta de serviços públicos de qualidade (saneamento básico, saúde, educação etc.) e focadas nos segmentos da população mais vulneráveis à violência das facções, da polícia e do sistema carcerário: os jovens, pobres e negros.
Nestes últimos anos, a aposta na guerra cotidiana contra o crime – mirando em grupos e territórios específicos – fortaleceu o apelo do discurso desses grupos criminosos que se articularam a partir dos presídios para bater de frente com o sistema.
Enquanto as opções políticas estiverem lastreadas no tripé repressão/punição/exclusão, cujas supostas soluções “simples e imediatas” encontram apoio popular e favorecem os discursos populistas de indivíduos que não têm qualquer compromisso com a redução da violência da sociedade; enquanto não conseguirmos recuperar nossa memória histórica e delinear o quanto a violência de estado contra os pobres e negros marcou a nossa trajetória como “Nação”; enquanto não formos capazes de perceber que os apelos por mais repressão e punição só beneficiam aqueles que angariam dividendos políticos-eleitorais com bravatas desconectadas de quaisquer evidências em experiências, dados ou políticas públicas; enfim, enquanto não conseguirmos transformar o nosso modelo de política de segurança cujos pilares são a guerra às drogas, a polícia militar e a prisão, permaneceremos presos neste labirinto esquizofrênico em que a ânsia da população por uma sociedade pacificada tem como respostas ações que aumentam a violência letal e aprofundam o nosso histórico fosso socioeconômico, a exclusão e a vulnerabilidade da democracia brasileira.
A construção de um modelo de política pública deve estar assentado nos pilares legais, na prevenção e na inteligência. Do contrário, continuaremos fadados ao retrocesso civilizatório e à fragilização da política e das instituições.