Brasil, terra devastada pela violência?
Os números da 12ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgados na semana que passou, e a repercussão por eles gerados trazem à mente texto que publiquei na coletânea “O Brasil no Contexto: 1987-2017”, organizada por Jaime Pinsky, da Editora Contexto.
Nele, eu analiso como a permanência da violência enquanto uma das características mais marcantes da sociedade brasileira está associada, nos planos sociocultural, econômico e geopolítico, à forma como o Brasil fez a síntese entre sua história, seu projeto de nação e as transformações vividas pelo mundo nos últimos 30 anos.
Com o fim da empolgação com o fim da Guerra Fria, em 1989, vários acontecimentos passaram a fazer parte do cotidiano do mundo e acabaram com todas as antigas certezas; resultaram, inclusive, no resgate dos nacionalismos, cuja maior emblema será por anos a saída inglesa da União Europeia (Brexit) e a eleição de Donald Trump para a Presidência dos EUA.
E, como era de se esperar, o Brasil não ficou imune a esses processos históricos e geopolíticos. Ao final da década de 1980, o país emergia disposto a repactuar regras de convivência entre seus cidadãos e, em 1988, promulga a “Constituição Cidadã”, cuja centralidade na vida do país parecia que iria selar as pazes do Estado com a sociedade, reforçar direitos sociais e políticos e incluir milhões de brasileiros e brasileiras em um novo e mais justo modelo democrático de desenvolvimento.
Entretanto, com o passar dos anos, múltiplos acontecimentos e narrativas cruzadas foram se sobrepondo e o Brasil foi se dando conta, ainda que tardiamente, de vários dos seus erros, omissões e tragédias.
A utopia da paz foi cedendo espaço para um cenário distópico de devastação moral e política; um cenário de medo e violência que tornou o país suscetível aos discursos autoritários e que coloca em risco o próprio ideal de democracia, como bem narraram os cientistas políticos Steven Levitsky e Daniel Ziblat no livro “Como as democracias morrem”.
E, um dos principais ingredientes deste novo tempo social é o medo, que no Brasil atual é em muito traduzido pelo medo da violência do crime organizado, mas que em realidade é fruto de inúmeros processos culturais e políticos que fazem com que a violência seja cultuada por segmentos expressivos da população como resposta possível do Estado frente ao crime ou, até mesmo, como recurso legítimo frente às estruturas desiguais da sociedade brasileira.
E, em meio a essa complexa teia social e no cotidiano das cidades, as ameaças do crime, as altas taxas de violência contra as mulheres, bem como a baixíssima capacidade dos órgãos de segurança e justiça em evitar a impunidade mostram que, no que diz respeito às políticas públicas de segurança, o Estado opera um oneroso sistema e um forte paradoxo que erode a confiança nas leis e nas instituições, de um lado, e abre, por outro, margens para medidas de extremo rigor e para a desconsideração de garantias e direitos civis. Muito se trabalha, mas pouco se faz para mudar a realidade. Não temos garantido o monopólio legítimo da violência nas mãos do Estado.
A vida vale muito pouco no país.
O caso recente registrado em Guarapuava, no Paraná, pelo qual o professor Luis Carlos Manvailer está sendo acusado de ser o responsável por atirar e matar a advogada Tatiane Spitzner, sua esposa, da sacada do apartamento do casal, lembra-nos que as reações à violência, no cotidiano, são seletivas. Isso porque o episódio foi amplamente acompanhado pelo sistema de segurança do edifício onde o casal morava, mas, neste caso, parece que as câmeras estavam lá para monitorar o motoboy que entrega a pizza e não para intervir em casos como este; para que as autoridades policiais fossem acionadas.
Em outras palavras, vivemos numa guerra muda e que parece não mais provocar indignação social desde que circunscrita às periferias e favelas. E, em meio à exploração do medo e deste traço de identidade do brasileiro, mercadores misóginos e intolerantes da morte, travestidos de justiceiros e defensores da moral e dos bons costumes; dos “indefesos” e “desarmados” cidadãos, vão ganhando eleições e espaço no debate público da década de 2010.
Na crítica aos governos de esquerda que marcaram a década de 2000 na América Latina – que na segurança pública não se mostraram em nada diferentes de governos conservadores ou de direita –, o país está vendo crescer um movimento sectário perigoso, que eleitoralmente se assemelha ao que também estamos vendo nos EUA e na Europa, com a diferença básica de que, aqui, o inimigo é interno.
Fantasmas da Guerra Fria são ressuscitados, como o medo do “Comunismo” (a URSAL do candidato Cabo Daciolo é um exemplo.), bem como novas bandeiras são levantadas, como a da “escola sem partido”, a denúncia da ideologia de gênero, resgate dos valores da religião ou a negação do racismo.
E, para combater esse inimigo, surgem propostas para que conquistas da Constituição de 1988 sejam revistas, como o fim da universalidade das políticas sociais ou a limitação de direitos. A população parece hipnotizada e correndo o risco de acreditar em novos candidatos a Jim Jones, pastor da seita “O Templo do Povo”, que em 1978 levou 900 pessoas ao suicídio coletivo em Jonestown, na Guiana.
Diante de tantas tragédias, os números e os episódios de violência narrados esta semana nos fazem pensar se iremos conseguir nos mobilizar em torno da vida ou se, ao contrário, continuaremos embarcados em uma nau perdida no Rio Tibre, primeira e longa travessia que leva as almas até o Purgatório, tão bem descrito na Divina Comédia, de Dante Alighieri.