A investigação das mortes decorrentes de intervenções das Polícias Militares

Rodrigo Capote/Folhapress
Renato Sérgio de Lima

Versão ampliada do artigo publicado hoje na página 3, da Folha de S.Paulo, em coautoria com a Subprocuradora Geral da República
Luiza Cristina Fonseca Frischeisen

A recente divulgação do Atlas da Violência pelo IPEA e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, trouxe novamente à tona um debate que tem ganhado força no Brasil e que está sendo travado sem que os aspectos jurídicos e constitucionais sejam devidamente tratados.

Estamos nos referindo à pressão de vários segmentos ligados às polícias militares em ampliar a competência da Justiça Militar para os casos envolvendo homicídios cometidos por policiais. Há, inclusive, aqueles que defendem que as Mortes Decorrentes de Intervenção Policial não são homicídios e que trata-las desta forma seria atentar contra a dignidade do profissional de polícia.

Este é um falso argumento; um sofisma. Em termos jurídicos, o ato de uma pessoa matar a outra, independente da causa, é tipificado no nosso Código Penal como homicídio. No caso, o Código de Processo Penal prevê que em situações em que esta morte for cometida em legítima defesa de si próprio ou de outrem, o autor não será punido. A legislação brasileira é clara ao prever que esses casos, após investigação isenta, poderão ter a “ilicitude” afastada e, por conseguinte, não existir a punição prevista.

Este afastamento não muda o tipo penal, apenas retira os efeitos punitivos da legislação. Não adianta querermos esconder tais situações em malabarismos estatísticos e/ou contabilidades apartadas das demais mortes violentas. A melhor forma de construir a confiança e a legitimidade é a transparência.

E, para que isso possa acontecer, é fundamental que a decisão do Poder Judiciário, que é quem deve decidir se a punição será afastada pela excludente de ilicitude, seja precedida de um isento trabalho de investigação. Casos com resultado morte são possíveis na atividade policial. O que não podemos concordar é com os argumentos que querem autorizar as polícias a investigarem a si próprias e definirem quando um caso é legítimo ou não.

E, por isso, a expansão da jurisdição da Justiça Militar da União vai na direção oposta da construção de um sistema de freios e contrapesos institucionais que permita investigações isentas e reconhecimento dos riscos da profissão ou de eventuais abusos. Nos últimos anos, caminhamos na contramão e estabelecemos que crimes praticados por integrantes das Forças Armadas quando em exercício de atividade policial (como quando estão em Garantia da Lei da Ordem – GLO) seriam sempre militares.

E, mais, a Lei 13491/2017 praticamente universalizou a competência da Justiça Militar da União quando o crime for praticado por integrante das Forças Armadas (relacionado com a função militar típica ou não) e excepcionou o Juri para integrantes das Policias Militares e teve o “efeito colateral” do envio de crimes como o de tortura para o sistema de justiça militar estadual.

Não à toa, essa legislação enfrenta novas ações diretas de inconstitucionalidade propostas perante o Supremo Tribunal Federal, com manifestação favorável da Procuradoria Geral da República pela a sua anulação no que tange ao afastamento de crimes dolosos contra a vida da competência do tribunal do Juri, prevista explicitamente em nossa Constituição no seu artigo 5º.

Para nós, a questão não é a existência da Justiça Militar em si, já que a Constituição prevê a sua existência para julgar crimes militares praticados por militares, que deveriam se resumir àqueles relacionados com atividades que não envolvem civis.

Entretanto, ao se pretender ampliar o alcance da Justiça Militar, em muitas Unidades da Federação a investigação de crimes cometidos por integrantes das policiais militares contra civis está sendo feita em inquéritos policiais militares e não mais em inquéritos policiais conduzidos pela Polícia Civil.

E, ao fazerem isso, temos que a situação afronta a Constituição e condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Favela Nova Brasília (RJ), que nos obrigou a estabelecer mecanismos normativos para que, em casos de apuração de mortes, tortura ou violência sexual supostamente praticadas em caso de intervenção policial, a investigação aconteça por órgão diferente e independente da força pública envolvida.

Temos que ter coragem de explicitar que a investigação isenta dos crimes é direito da vítima, dos seus familiares mas, porém, do próprio investigado, que precisa ter o apoio jurídico do Estado enquanto não se chega à conclusão da sua culpabilidade ou do afastamento da punição por ter sido um ato legítimo e legal. Durante a investigação dos fatos, os policiais envolvidos podem, inclusive, se for o caso, contar com o apoio jurídico do Estado enquanto não se chega à conclusão da sua culpabilidade ou do afastamento da punição por ter sido um ato legítimo e legal em defesa de si mesmo ou de terceiros.

Uma investigação isenta não significa desconfiar das instituições, mas implica em reestabelecer a dignidade da investidura do cargo. Aqueles que defendem carta branca estão pensando só em seus projetos de poder e não estão efetivamente valorizando a atividade policial enquanto tarefa central do Estado de Direito Democrático.

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A morte da soldado Juliane dos Santos Duarte, após ter ficado mais de 24 horas em poder de criminosos, é um fato que merece toda a indignação da sociedade e o máximo rigor na apuração dos seus responsáveis. Juliane morreu por ser policial e não podemos ficar alheios aos riscos e perigos da profissão. Cobrar eficiência das políticas de segurança implica, por coerência, cobrar que todas as vidas importam e que a morte de Juliane não seja esquecida. A violência e a crueldade precisam ser condenadas, sempre! Os responsáveis por este crime bárbaro, cruel e vil precisam ser identificados e levados rapidamente ao Poder Judiciário.