O sequestro das polícias brasileiras
Em 2014, publiquei junto com o José Reinaldo de Lima Lopes, da Faculdade de Direito da USP, um artigo na Folha de S.Paulo sobre o que intitulamos “o sequestro das polícias brasileiras”.
De lá para cá, muitas evidências foram trazidas a público e o debate da urgência de modernização da segurança pública ganhou força. Hoje, a questão do medo e da violência é uma das principais forças motrizes do debate eleitoral que se avizinha.
E, nesse processo, os alertas feitos naquele artigo continuam atuais e, mais do que nunca, válidos. Não apenas pelas posições autoritárias que ganham fôlego no embate eleitoral, mas sobretudo pela repetição ad infinitum de padrões de policiamento obsoletos e ultrapassados que valorizam o faro policial e o confronto bélico.
Enquanto isso, a população reconhece que os nossos policiais estão sendo caçados pelo crime organizado, que nunca é vencido pois é alimentado generosamente pelo próprio Estado em razão da corrupção e de políticas criminais e penitenciárias que olham para o retrovisor e não têm um projeto de valorização da vida e de priorização de prevenção e combate à violência.
Tanto é que, nesta semana, São Paulo encontra-se mobilizada para saber o que houve com a soldado da Polícia Militar Juliane dos Santos Duarte, que foi vista baleada e sangrando próximo ao bar de onde teria sido levada por homens encapuzados, na favela de Paraisópolis (zona sul de São Paulo), entre a noite de quarta (1) e a madrugada de quinta (2).
O episódio ainda está coberto por dúvidas e demanda maiores esclarecimentos. Não se pode afirmar nada de modo peremptório sobre os acontecimentos que levaram ao desaparecimento da soldado Juliane. Porém, para além do fato em si, é inadmissível pensar que há territórios das cidades do país nos quais o crime organizado impõe sua lei impunimente e até os próprios policiais não têm a liberdade de ir e vir.
Mas, se eles existem, vale ressaltar que damos pouco valor à investigação criminal no país. As Polícias Civis estão não só sucateadas e abandonadas pelos governos, mas têm, por si só, uma enorme dificuldade de repensarem seus projetos de instituição, como fez a Polícia Federal desde 2003.
Isso não exclui que, em determinadas situações, se reconheça que estratégias de saturação e desorganização das dinâmicas socioespaciais de um local podem ajudar no trabalho policial. Mas esta é uma entre várias opções que deveriam informar a doutrina policial no Brasil.
Afinal, quando a atividade policial é reduzida a um só padrão de policiamento, como já discutido aqui no Blog sobre a ideia de elite das polícias, vamos minando a capacidade e a legitimidade das forças e serviços policiais em nome de uma vaga defesa da ordem.
É preciso deixar explícito que segurança pública é solução e que, para isso, temos que investir pesado em uma agenda inteligente e eficaz de redução e prevenção dos crimes violentos, bem como de enfraquecimento das estruturas do crime organizado. Não se faz segurança pública delegando responsabilidade para a sociedade ou bradando discursos com ameaças retóricas.
A vida de Juliane Duarte e a de milhares de policiais que se arriscam todos os dias na linha de frente de uma guerra que não é deles não pode ser apenas um registro. Independentemente do que ocorreu, este é um caso que exige respostas rápidas e transparentes.
Os policiais do país precisam ser vistos como sujeitos plenos de direito; precisam ser valorizados enquanto cidadãos. E essa valorização não é algo divino ou distante. Precisa ser decisão política e institucional de governos e dos chefes e comandantes das instituições.
Por isso é tão importante olharmos para as propostas feitas no debate eleitoral e separar o que é demagogia do que é real preocupação com a proteção da população e dos policiais.
Hoje temos polícias com acesso às mais modernas ferramentas tecnológicas e formadas por homens e mulheres altamente qualificados e com preparo intelectual, muitos com disposição para inovar e construir padrões de policiamento mais eficientes.
Porém, há uma enorme disputa pelo significado de lei, ordem e segurança pública em curso que muitas vezes trava mudanças. Há muito o que ser feito e ajustado ao primado da Constituição de 1988.
Para se ter uma ideia, a lei que organiza a Polícia Militar é de 1983; a lei que cria a figura do inquérito policial, que é a forma como a Polícia Civil e a Polícia Federal registram um crime é a da época do Império, de 1871; bem como as leis que definem o que e como o Sistema de Segurança e Justiça Criminal deve considerar é dos anos 1940 (Códigos Penal e de Processo Penal).
Desse modo, ao largo do notável aprimoramento técnico operacional dos últimos 30 anos, a ideologia do regime militar de 1964, que nestas eleições está sendo relativizado por um revisionismo histórico que tenta negar a ideia de ruptura institucional e tomada do poder, foi de tal ordem introjetada na formação das polícias do país que, no limite, os próprios policiais acabam retroalimentando posições que os colocam em risco e os desmerecem enquanto trabalhadores que precisam ter seus direitos assegurados.
Por tudo isso, o momento nos desafia a pensar em um projeto de reforma da polícia que a valorize como uma instituição central do Estado de Direito e da Cidadania.