A Constituição de 1988 dá direitos demais aos criminosos?

Eduardo Anizelli/Folhapress
Renato Sérgio de Lima

Muito tem se falado sobre a segurança pública ser um dos temas mais centrais do debate público de 2018. Várias tem sido as promessas para o problema do medo e da violência e, mesmo assim, as taxas de criminalidade crescem a cada ano em ritmo assustador.

E, entre estas promessas, têm se destacado aquelas que defendem que os “bandidos” têm direitos demais e que a Constituição de 1988 precisa ser ajustada para que as polícias possam “impor” a ordem e “botar medo nos criminosos” sem que sejam responsabilizadas ou criticadas. Por estas propostas, a agenda de direitos civis, sociais e humanos propugnada nas cláusulas pétreas da nossa Carta Magna é um impeditivo da eficiência policial.

O problema é que aqueles que fazem este tipo de discurso esquecem, propositalmente, que a legislação infraconstitucional, ou seja, as leis que regulam o funcionamento das polícias e do sistema de justiça criminal é anterior à Constituição Federal de 1988 e que ela forma uma verdadeira “colcha de retalhos” a prejudicar a efetividade das ações.

Para se ter uma ideia, a lei que organiza as Polícias Militares no Brasil é de 1983. Já a Lei que rege os Inquéritos das Polícias Civis e Federal é de 1871 (sim, a Lei data da época do Império). E, de igual modo, as Leis que regulam a atividade de polícia judiciária e o fluxo do sistema de justiça criminal são dos anos de 1940 (Código Penal) e 1941 (Código de Processo Penal). A Lei de Execução Penais, que regulamenta o cumprimento de penas, é de 1984.

Ou seja, a Constituição de 1988 mudou pouco a forma de atuação das nossas instituições policiais e do sistema de justiça criminal e não pode ser responsabilizada pelas ineficiências e inequidades de um modelo muito mais antigo. Ela pode ser criticada por não inovar e por herdar os vícios e falhas do passado. Mas, a bem da verdade, o Brasil tem pecado na segurança pública faz muitas décadas.

Vários são os capítulos e artigos da Constituição que precisam ser regulamentados e várias são as leis que precisariam ser modernizadas à luz do texto constitucional. Mas, ao contrário desta importante missão, os nossos congressistas optam por fomentar a legislação do pânico e atuar por espasmos, sem planejamento e/ou um projeto claro de nação.

Brandem palavras de ordem e exploram a crença da população, mas não avançam em enfrentar os reais causadores do medo e da violência. E não é por falta de avisos, evidências e/ou dados. Preferem agravar penas e jogar para a torcida amedrontada pelo cenário de criminalidade que nos assola.

E, neste movimento, só de modo residual são feitos questionamentos acerca do modelo que organiza as polícias brasileiras e que, ao invés de dotá-las de eficiência no enfrentamento ao crime organizado e à violência, as enfraquece e as torna reféns de estruturas burocráticas, ineficientes e arcaicas.

As crises de 2018, que são várias e não estão circunscritas ao Rio de Janeiro, são repetições de situações agudas vividas em quase todos os estados brasileiros nos últimos 15, 20 anos e demonstram o quão distante estamos dos padrões de civilidade de países desenvolvidos. Segurança tem se resumido à administração constante de crises, intercaladas por momentos de calmaria. Não à toa chegamos à exaustão de um modelo cruel e gerador de ainda mais conflitos e tensões.

Sergio Lima/Folhapress

Mas até onde conseguiremos postergar esforços para a reversão estrutural dessa situação? Até quando a população irá resistir às tentações do tempo social da direita que vê com bons olhos a reversão de conquistas de direitos e espaços de cidadania?

O fato é que o Estado, em seus vários poderes e instâncias, tem atuado a partir de um oneroso sistema de segurança pública, que fica recorrentemente paralisado por disputas de competência, fragmentação de políticas e jogos corporativos, mas que, paradoxalmente, demanda investimentos crescentes para se manter. Demanda sairmos da mesmice e dos jogos corporativos.

E, infelizmente, no meio dessas disputas, ficam a população, sem força política suficiente para influenciar novas agendas, e os mais de 600 mil policiais brasileiros, que na ausência de regras claras de valorização profissional, só são lembrados como heróis quando são mortos ou como garotos-propaganda de candidatos que se dizem defensores da categoria mas que nunca, enquanto exerceram seus mandatos, fizeram muito mais do que reclamar.

Na brecha e no cotidiano das periferias das regiões metropolitanas, o medo e a insegurança acabam fortalecendo o crime e pautando a relação entre polícia e comunidade; entre Estado e Sociedade. O crime organiza cresce no país pela incapacidade de se coordenar esforços por parte das várias instituições que compõem o sistema de segurança e justiça criminal.

Não é possível pedir civilidade e dignidade ao crime (que precisa ser investigado e punido), mas é, sim, possível exigir racionalidade e eficiência democrática dos gestores públicos responsáveis por fazer frente à violência, ao medo e à criminalidade.

No lugar da cultura de ódio que tanto marca manifestações públicas sobre o tema, temos que defender a garantia de direitos como o que diferencia o Estado da barbárie. Uma polícia forte não é sinônimo de violência, de obtenção de provas por meio de coações e/ou grampos indiscriminados.

O Brasil que queremos precisa de uma polícia forte e valorizada e que seja conhecida da comunidade. Polícias distantes dificultam não só a prevenção da violência mas também a investigação de crimes. Sabendo a quem recorrer, fica muito mais fácil confiar na polícia e ajuda-la a cumprir sua missão.

A polícia não pode trabalhar sozinha e criar vínculos públicos com a comunidade tem sido uma das estratégias mais bem sucedidas no mundo. Ações de reorientação das práticas policiais em direção à participação da comunidade na formulação e execução de ações (conselhos, bases de polícia comunitária, entre outros) mostraram-se muito mais eficazes na reconquista da legitimidade e de espaços.

A história recente das políticas de segurança nos ensina que, entre as ações que mais tiveram êxito em reverter as taxas de violência, o envolvimento com a comunidade tem sido mais eficiente se associado a práticas integradas de gestão, pelas quais há uma irredutível aliança entre técnica e política.

E nessa aliança, as melhores práticas concentraram suas energias no tripé aproximação com a população, uso intensivo de informações e aperfeiçoamento da inteligência.

Por uso intensivo de informações compreendemos a adoção de técnicas de produção de indicadores e análise de dados para planejamento, monitoramento e avaliação de operações policiais. Elas foram fundamentais para otimizar recursos humanos e materiais no dia-a-dia das polícias. Não se trata apenas de tecnologia, mas de mudança nas opacas práticas das instituições da área.

Já no aperfeiçoamento da inteligência, queremos destacar os esforços de coordenação dos fluxos de informações para a investigação criminal com vistas a reduzir ruídos e produzir provas mais robustas e que permitam punir quem comente um delito.

No entanto, por melhores que sejam essas práticas de gestão, sem uma mudança substantiva na estrutura normativa das polícias, o quadro de insegurança hoje existente tenderá a ganhar contornos dramáticos. O SUSP sinaliza para este caminho de coordenação mas ele precisa ser posto em prática. O Congresso que for eleito este ano terá a responsabilidade de fazer o que não foi feito nos últimos 30 anos.

Uma das lições de países que conseguiram reformar suas polícias, como Irlanda e África do Sul, é que quando a atividade policial deixa de ser autônoma e passa a responder à lógica das políticas públicas muito se ganha.

Para além de soluções puramente técnicas, percebe-se que os problemas da área podem ser mitigados quando a política está efetivamente comprometida na construção de uma nova postura do Estado em relação à sociedade. Não precisamos de salvadores da pátria e/ou demolidores; precisamos perseverar para implementar as premissas da Constituição Federal de 1988.

As críticas à agenda de direitos civis, humanos e sociais são, portanto, críticas ideológicas e desprovidas de evidências e de base de realidade. Vamos colocar em prática o que foi previsto? Talvez nos surpreendamos e consigamos resultados muito mais robustos do que receitar violência como antídoto para a própria violência.

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versão atualizada e revista de artigo publicado em 2012, por mim e por Samira Bueno, intitulado “É hora de reformar as polícias