Eleições e o faroeste caboclo

Ilustração de Emmanuel Nassar
Renato Sérgio de Lima

Em outubro de 2016 eu publiquei no Caderno Ilustríssima da Folha de S. Paulo um artigo intitulado “A violência eleitoral e o crime que vai às urnas“. Nele, na chave das eleições municipais daquele ano, eu analisava os riscos de contaminação da política pelo crime organizado e a violência política por ele gerada.

Passados quase dois anos, é trágico olhar para o texto e ver que ele permanece válido. E, na mesma semana em que a Polícia Civil do Rio de Janeiro prendeu o primeiro suspeito pelas mortes da Vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes, é preocupante notar que o debate eleitoral de 2018 continua a emular e fortalecer o sentimento da antipolítica.

O assassinato de Marielle Franco foi, tanto pela forma como foi feito quanto pela enorme repercussão do caso, um divisor de águas que coloca o Brasil em um nível mais elevado de gravidade e risco de quebra institucional. E não só pela ameaça real das organizações criminosas, mas também pelo curto-circuíto civilizatório em que se encontra o país. A violência atinge patamares estrondosos e ainda assim muitos candidatos ganham espaço defendendo a barbárie como forma de governar.

Por tudo isso, é interessante reproduzir o texto de 2016 aqui e pensar sobre as pistas por ele lançadas para a compreensão da real magnitude do problema e, o mais importante, para a mobilização de esforços para a mitigação e redução da violência, seja ela emanada de onde for.

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O saldo do primeiro turno das Eleições municipais de 2016 tem sido realçado por muitos analistas a partir da inédita derrocada do Partido dos Trabalhadores e ou em função do êxito da ideologia da antipolítica enquanto estratégia eleitoral. Sem dúvida, os dois fenômenos merecem reflexão e, em especial o segundo, diz muito sobre o tempo presente, que parece operar um forte deslocamento ideológico do pensamento médio brasileiro em direção a posições políticas conservadoras e reivindicatórias de uma concepção de ordem pública que explora o medo e não oferece uma teoria de mudança que vá além de mais do mesmo.

Não à toa, especialmente para as Câmaras Municipais, porta-vozes dessas posições tiveram expressivas votações e ficaram entre os mais bem votados em várias cidades do país, com destaque para os candidatos Conte Lopes, em São Paulo, e Carlos Bolsonaro, no Rio de Janeiro – neste caso, fortalecendo o clã familiar [sobre os candidatos que assumem a segurança como bandeira eleitoral, devo publicar um texto especial em breve].

Há um sentimento difuso e generalizado de que é preciso “pôr fim à bagunça”, seja lá o que isso de fato significa no plano da realidade. O medo e a vontade de vingança assumem o protagonismo.

Mas, para além desse deslocamento ideológico, que por sinal supera nossas fronteiras e se manifesta também na aprovação da saída da Inglaterra da Comunidade Europeia, na adesão de parcela significativa do eleitorado dos EUA às bandeiras de Donald Trump e na rejeição do acordo de paz na Colômbia, a violência mais uma vez mostrou sua face durante as Eleições e nos lembra de que ela é um dos nossos maiores e mais persistentes dilemas civilizatórios. Para se ter uma ideia deste quadro, apenas nos últimos quatro meses, 28 políticos foram assassinados.

Os números podem parecer pequenos frente aos quase 60 mil assassinatos anuais registrados no Brasil, mas eles dão pistas do quanto a violência é permeada por indícios do fortalecimento de facções criminosas e de milícias que, aos poucos, foram substituindo os coronéis da nossa história na função de controle territorial e moral de parcelas crescentes da população brasileira. Talvez como fruto da nossa modernização às avessas, que não avançou no monopólio do uso legítimo da força por parte do Estado, os casos ocorridos em 2016 nada mais sejam do que a tradução de um novo patamar na forma de organização do crime no país.

Se antes os donos dos morros e favelas, os banqueiros do jogo do bicho ou os coronéis do sertão davam bênçãos aos candidatos para que eles pudessem pedir votos nos locais por eles controlados e, agora há relatos de milicianos e traficantes de armas e drogas sendo eleitos. Eliminaram-se os intermediários. E, para conquistar tais cargos, não há problemas em também se eliminar os adversários. A lógica não é a dinâmica democrática, mas a colonização do Estado.

Colonização esta que está na origem do que hoje podemos compreender como eixo estruturador das modernas organizações criminosas, na medida em que visa, basicamente, facilitar a corrupção, lavar dinheiro e obter influência política e social. Por esta razão, a novidade não é o recurso à violência durante as eleições, que não pode ser minimizada e precisa ser vigorosamente investigada e enfrentada. A novidade é que o crime organizado em torno do tráfico de armas e de drogas trouxe novos atores para a cena política e perdeu o pudor de mostrar força e reivindicar publicamente legitimidade para o controle que faz de territórios e populações.

Historicamente, o crime organizado não sobrevive sem vínculos com o Estado e exige investimentos em lideranças políticas capazes de ocupar espaços e garantir seus interesses. Não há Estado paralelo; há Estado compartilhado, dificultando em muito a construção plena da cidadania e a garantia de direitos civis e políticos.

De acordo com o cientista político Guaracy Mingardi, um dos mais renomados estudiosos da matéria no país, o crime organizado pressupõe, necessariamente, a existência de estruturas hierárquicas, a previsão de lucros, o planejamento de ações, a divisão do trabalho e, especialmente, a dependência de vínculos destas atividades com o Estado. E, por estas características, a grande maioria dos atentados políticos registrados durantes as eleições só ocorreu, muito provavelmente, com a anuência e com o consentimento dos líderes do crime.

Na prática, regressamos ao período entre o século XVIII e o início do XIX, que se caracterizava pela falta de liberdade dos eleitores e pela possibilidade constante de uso da violência para determinar os rumos da política. E, para completar tal retrocesso, só nos falta a dimensão da efetivação da alteração de resultados eleitorais em grande escala, agora repaginada na imposição não mais dos interesses das oligarquias do passado, mas das milícias e facções. Não só os direitos civis, mas os direitos políticos estão ameaçados hoje no Brasil.

E, no momento em que o crime organizado exibe musculatura e reforça a violência e a crueldade como linguagens, o Brasil parece alheio ao debate sobre segurança pública, delegando às polícias a gestão da vida da população, e encontra-se fragilizado por disputas por sua agenda de direitos, com muitos segmentos concebendo a restrição de garantias e a retirada de direitos sociais. Em nome da manutenção da ordem, a violência simbólica e real vai sendo tolerada e aceita.

No limite, esse movimento vai minando a crença dos brasileiros na democracia e retroalimenta nossas tradições autoritárias; retroalimenta a defesa de respostas públicas e privadas que fazem uso da violência como linguagem. Segundo pesquisa do Instituto Latinobarômetro, em 2016, apenas 32% da população brasileira concorda que a democracia é sempre a melhor forma de governo. Trata-se de uma redução de 22 pontos percentuais em relação a 2015, quando 54% dos brasileiros confiavam neste regime de governo. Em termos comparativos, a democracia é defendida como a melhor forma de governo por 71% dos Argentinos e só ficamos atrás da Guatemala, onde apenas 30% da sua população crê na democracia.

Até por ostentar tais índices, o Brasil é o país com menos confiança interpessoal do continente, com somente 3% da população declarando ter confiança nos outros, enquanto a média da América Latina é de 17%. A violência política observada nas Eleições de 2016 sugere, portanto, que o Brasil vivencia a democracia e, como consequência, a segurança pública mais como simulacros do que como realidade.
E por tudo isso, não é exagero afirmar que as reações das autoridades aos crimes políticos praticados durante o período eleitoral foram, por um lado, aquelas imediatamente disponíveis. Porém, por outro lado, a mobilização de tropas federais não atinge o cerne do problema e funciona mais como medida paliativa e midiática. As ações que efetivamente farão a diferença serão aquelas que optarem menos por pirotecnias e discursos e mais por inteligência e investigação.

E, neste caso, já que estamos falando de eleições municipais e de cidades, a violência e o crime emergem como elementos adicionais de um contexto de profundas carências estruturais e de ilegalismos. O Estado não está simplesmente ausente nos territórios, mas sua presença pode dar-se de forma ambígua e arbitrária, que, por muitas vezes, mais fortalece as facções do que as enfrenta.

Em um turbilhão de tensões e carências da paisagem urbana, abandona-se a legitimidade do Estado como o meio mais eficaz de mediação e resolução de conflitos. Um Estado que não consegue se fazer presente no espaço urbano – a não ser pelo lado muitas vezes conflituoso da ação policial-, não consegue legitimidade para habilitar-se como instrumento de pacificação social. A vida perde seu valor moral.

O Faroeste Caboclo da música da Legião Urbana ganha forma e a segurança pública mais uma vez fica dependente de um dever ser; ficamos dependentes de um xerife salvador da pátria e da nação.