Nazareth Cerqueira e o desafio da reforma da segurança pública no Brasil – Parte 3

Arquivo Agência Brasil
Renato Sérgio de Lima

Trechos da terceira e última parte do capítulo de Elizabeth Leeds no Livro “Polícia e democracia: 30 anos de estranhamentos e esperanças”, editado pela Alameda Editorial e organizado por mim e por Samira Bueno.

Prestação de contas

Se, de um lado, a resistência às ideias de Cerqueira com relação ao policiamento comunitário e aos direitos humanos no Rio de Janeiro subsistia de forma latente, por outro, a reação ao esforço de criação de uma estrutura para a prestação de contas da atuação policial, bem como de um código de conduta para orientar o trabalho dos policiais, foi bastante explícita. Ela pode ter gerado, em última instância, consequências indesejadas, como os episódios trágicos de violência policial dos anos 1990. Mantendo a coerência com a sua filosofia que propunha a abertura de um canal de comunicação entre a polícia e a sociedade, o coronel Cerqueira estabeleceu o primeiro código de conduta policial, baseado nos documentos de direitos humanos das Nações Unidas, criando ainda a primeira corregedoria para investigação dos casos de má conduta profissional dentro da própria PM.

A ideia passada ao público era de que mesmo um suspeito de cometer crimes merecia ser tratado como ser humano em um Estado de direito, em oposição clara à noção popular de que “bandido bom é bandido morto”, ainda bastante presente entre alguns setores da polícia atual. À época, a percepção do contingente policial era a de que a corregedoria representava um cerceamento às suas atividades.

Cerqueira foi implacável na punição dos membros da PM culpados de violação de direitos humanos. Por outro lado, também acreditava que a polícia – especialmente os praças, oriundos em sua maioria das classes de menor renda – era vitimizada por sua própria ideologia. Em um artigo apresentado no 7o Simpósio Internacional de Vitimologia, realizado no Rio de Janeiro em 1991, o coronel relata o caso de um jovem soldado que fora testemunha de um “auto de resistência”, em 1985. Sob custódia da polícia, um jovem acabou morrendo, após queixa de tratamento violento. Embora o espancamento fatal tenha sido conduzido por policiais de alta patente, a história oficial responsabilizava os praças pela sua morte – na verdade estes apenas haviam testemunhado o ato letal.

Disseram-lhes que “[…] precisavam aprender que o trabalho do policial era duro, e foram intimidados a permanecer calados a respeito da morte do rapaz”. Um dos praças acabou suicidando-se dentro do batalhão, onde foi encontrada uma carta em que alegava sua inocência e expressava revolta e tristeza pela morte do jovem. Invocando um de seus heróis intelectuais, o jurista argentino Eugenio Zaffaroni, Cerqueira denominou o episódio como um caso de vitimização indireta ou “policização”, no qual jovens recrutas, a maioria originária das classes mais baixas, são “[…] modelados ou condicionados pela sua cultura organizacional, que desenvolve crenças que justifica práticas violentas e abusivas, característica de nossas instituições policiais”. Cerqueira tinha consciência das condições que levam a polícia a adotar práticas violentas e reforçar as crenças de uma instituição militarizada.

Em 1993, durante o segundo mandato de Cerqueira como comandante da polícia militar, o Rio de Janeiro vivenciou duas tragédias causadas por má conduta policial: as chacinas da Candelária e de Vigário Geral. Levadas a cabo por uma facção corrupta da PM, chamada de Cavalos Corredores (um dos sete grupos de extermínio identificados pela corporação), tirou a vida de 29 cidadãos inocentes. Na Candelária o grupo de extermínio matou oito crianças em situação de rua que dormiam em frente à catedral, uma das principais da cidade, e em Vigário Geral assassinou 21 moradores inocentes.

Na visão dos policiais seguidores de Cerqueira, os dois episódios foram, acima de tudo, um boicote violento do grupo de extermínio às ideias do coronel e à sua tentativa de criar uma estrutura de prestação de contas dentro da PM. No caso específico de Vigário Geral, uma vingança pelo assassinato de policiais militares corruptos, cometido por traficantes após uma negociação malsucedida. Quando Cerqueira convocou psicólogos para entrevistar os policiais envolvidos na chacina da Candelária, o que em si já era inovador, os policiais, presos durante o processo alegaram que acreditavam estar fazendo um favor à sociedade ao matar bandidos que simplesmente voltariam a cometer crimes. O coronel agiu com celeridade no caso dos massacres. Muito antes da instauração de processo judicial contra os policiais envolvidos, expulsou-os da PM, enquanto se aguardava o lento desenrolar do processo nos tribunais.

Ao aposentar-se, após o cumprimento de seu segundo mandato como comandante, Cerqueira tornou-se vice-presidente do Instituto Carioca de Criminologia, um think tank fundado pela socióloga Vera Malaguti e pelo advogado criminalista Nilo Batista, vice-governador durante a gestão de Brizola, que assumiu o governo do Estado por um breve período, enquanto o político gaúcho concorria à presidência da República. Durante a sua passagem pelo instituto o coronel publicou artigos sobre segurança pública, editou uma série de livros sobre os novos paradigmas de policiamento, denominada “Polícia Amanhã”, utilizada amplamente pelas forças policiais brasileiras, viajando intensamente por todo o país para participar de seminários e oficinas sobre policiamento comunitário e orientação relacionada ao universo das drogas, entre outras práticas policiais inovadoras.

Enquanto o impacto do coronel Cerqueira nas políticas de segurança pública do Rio de Janeiro tenha se limitado a alguns segmentos da PM, fora do Estado sua influência foi significativa. Seja por meio de seus artigos, pela tradução e divulgação de literatura internacional importante sobre o tema, seja por sua participação em seminários e oficinas em todo o Brasil, a noção de policiamento comunitário e os novos paradigmas da formação policial permanecerão indissoluvelmente associados ao nome de Cerqueira. Atualmente não existe nenhum curso de formação policial em todo o país que não inclua pelo menos um de seus trabalhos ou um artigo estrangeiro por ele traduzido. Sua influência é sentida especialmente no Paraná, Minas Gerais, São Paulo, Rio Grande do Sul, Mato Grosso, Espírito Santo, Pernambuco e Paraíba, entre outros.

O coronel foi assassinado em 1999, ao sair do edifício que abrigava o Instituto Carioca de Criminologia, com um tiro disparado por um policial de baixo escalão, que por sua vez morto imediatamente pelos seguranças de um edifício vizinho. A explicação oficial declarou o assassino portador de problemas mentais. Mas há alusões, feitas por diversos policiais e autoridades de governos anteriores que entrevistei, ao fato de que Cerqueira teria sido assassinado porque não se mostrava disposto a perdoar os atos de corrupção e má conduta policial, especialmente aqueles levados a cabo pelos grupos de extermínio.

O quanto a liderança, a filosofia e a coragem de um indivíduo podem influenciar políticas tensas como as de segurança pública depende do momento político e de uma série de fatores externos, sobre os quais ele terá provavelmente pouco controle. Demonizado pela batalha ideológica que se desenrolou dentro da polícia militar nos anos 1980 e 1990, Cerqueira foi homenageado e enaltecido pela mesma instituição em 2010, quando a PM comemorava seu ducentésimo aniversário e os partidários do coronel haviam galgado posições de responsabilidade na hierarquia policial. […]

A questão inevitável para aqueles que hoje desenham políticas de segurança pública é: qual o significado e extensão potencial da liderança de um indivíduo para promover mudanças de longo prazo de modo geral e no Rio de Janeiro, especificamente? Deve-se esperar o tempo necessário para que novas gerações assumam o poder e, mais uma vez, se sensibilizem com as questões da segurança cidadã? Ou será que os atores da sociedade civil devem fazer pressão sobre as autoridades governamentais? Seriam as variáveis históricas e políticas específicas do Rio de Janeiro que tornaram essa mudança tão passageira?

Ficou claro a partir de um exame dos diversos esforços de implantação de políticas moldadas nas crenças de Cerqueira nos últimos trinta anos – incluindo, por exemplo, os novos paradigmas de formação policial e o policiamento comunitário – que a memória institucional não desaparece por completo, apesar das dificuldades; e aquilo que tiver valor em um determinado momento histórico acabará reaparecendo quando o próximo contexto político permitir.

Apesar das mudanças que o coronel Cerqueira tentou implantar na PM do Rio de Janeiro, reformando-a para convertê-la em um órgão a serviço da sociedade, afastando-a da ideologia da militarização, ele nunca tentou mudar a estrutura básica, hierarquicamente militarizada, da instituição, devido às limitações políticas e constitucionais da época. A pergunta que permanece em aberto é se esforços como os de Cerqueira, em prol de uma reforma ampla, poderiam ser adotados de forma permanente sem qualquer mudança estrutural […].

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SUMÁRIO “Polícia e democracia: 30 anos de estranhamentos e esperanças

Apresentação
Renato Sérgio de Lima e Samira Bueno

Agentes de mudança em instituições resistentes: Nazareth Cerqueira e o desafio da reforma da segurança pública no Brasil
Elizabeth Leeds

Por uma polícia digna: entrevista com José Oswaldo Pereira Vieira
Por Renato Sérgio de Lima

A virtude está no meio: entrevista com Paulo Celso Pinheiro Sette Câmara
Por Jésus Trindade Barreto Júnior

Decifrando o enigma da segurança pública: entrevista com Coronel Carlos Alberto de Camargo
Por Samira Bueno e David Marques

Políticas de Segurança Pública: entrevista com José Mariano Beltrame
Por Luciane Patrício

A Brigada Militar no pós-democracia
Luiz Antônio Brenner Guimarães

Os policiais civis de linha de frente na nova ordem democrática
Ludmila Mendonça Lopes Ribeiro, David Marques, Samira Bueno e Sara Prado

O pós-redemocratização (1985-2015) na visão de praças da polícia militar: avanços, rupturas e permanências políticas na segurança pública
Alan Fernandes

Diálogos sobre mulheres policiais
Barbara Musumeci Mourão