Nazareth Cerqueira e o desafio da reforma da segurança pública no Brasil – Parte 1

Na semana em que o SUSP, Sistema Único de Segurança Pública, entrou em vigor, várias foram as iniciativas anunciadas para modernizar a área: novos sistemas tecnológicos para integração de banco de dados policiais; pedido de informações do MPF sobre a implementação do SUSP e a inclusão de mecanismos de fortalecimento dos sistemas de controle de armas e explosivos; bem como disputas pelas verbas das loterias entre as pastas da segurança, cultura e esporte.

Todas são temas importantes e que mostram uma sociedade em movimento. Elas estão dentro das regras do jogo democrático e das disputas por prioridades governamentais. O que mais chamou atenção, contudo, foi que, em paralelo à agenda de modernização das políticas públicas, vários retrocessos têm sido defendidos abertamente por representantes do atraso e, pior, estão ganhando ouvidos qualificados, independente desse modelo fazer vítimas de todos os lados.

Um destes retrocessos é o reforço, à direita sobretudo mas também à esquerda, do clima policiais x sociedade civil, como se fossem dois lados opostos e antagônicos. Isso para não falar do quão difícil está falar de transparência e prestação de contas pelas instituições de segurança pública e justiça criminal.

Mas, se olharmos em perspectiva, veremos que esse antagonismo responde à lógica política e não é um fato consolidado. Muitos policiais batalharam para substituir desconfianças mútuas e estranhamentos em uma agenda moderna e cidadã de reformas institucionais ao longo dos últimos 30 anos.

E, neste sentido, recupero capítulo do Livro “Polícia e Democracia: 30 anos de estranhamentos e esperanças”, publicado pela Alameda Editorial. O texto foi escrito por Elizabeth Leeds sobre a trajetória do Coronel Carlos Magno Nazareth Cerqueira, cujo trabalho encontra paralelos com o de Robert Peel, que reformou a polícia inglesa no século XIX.

Cerqueira foi comandante da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro de 1983 a 1987 e de 1991 a 1994. Foi um dos primeiros comandantes das polícias militares brasileiras oriundos da própria polícia, e não das Forças Armadas. O Coronel Nazareth Cerqueira foi assassinado em 1999, em circunstâncias até hoje pouco esclarecidas.

Nesta e nas próximas postagens, vou reproduzir trechos do capítulo de Elizabeth Leeds, pois, no texto, muitas das questões que hoje parecem novidade ou inevitáveis, já estavam postas nos anos 1980 e 1990. De forma engajada e polêmica, Elizabeth Leeds nos provoca a uma reflexão sobre a força de discursos que louvam a violência como política pública e mostram que as resistências ao Estado de Direito são muito maiores do que os que acreditaram na redemocratização poderiam imaginar.

Serve de alerta para pensarmos como construir pontes de diálogo efetivas e para refletirmos os desafios cidadania em um país assolado pelo medo e pela violência – e, até as eleições, de polarizações extremadas.

Agentes de mudança em instituições resistentes: Nazareth Cerqueira e o desafio da reforma da segurança pública no Brasil – Parte 1

Elizabeth Leeds

Desde 1985, o avanço da democratização e o crescimento de uma sociedade civil robusta e organizada equiparam o Brasil com ferramentas que lhe permitiu fazer pressão em prol de uma agenda de justiça social. No entanto, o setor que menos progrediu nesse período foi justamente o da justiça criminal e, mais especificamente, o da polícia. A Constituição Democrática de 1988 mudou, pelo menos no papel, praticamente todo o governo, mas deixou intactas, do ponto de vista formal, as instituições policiais.

Com exceção da mudança nominal e simbólica do papel da polícia, não mais a garantidora da “segurança nacional” e sim da “segurança pública” – o que significou que evoluiu da função de proteger o Estado à de proteção de cada um dos cidadãos –, o novo ordenamento constitucional não alterou as instituições policiais, que mantiveram o modelo implantado em 1964, no início do regime militar. Além disso, a Constituição de 1988 impôs restrições às oportunidades formais de envolvimento da sociedade civil na reforma da segurança pública.

Ao longo da década de 1980 e início dos anos 1990, o avanço da democratização e o fortalecimento de uma sociedade civil organizada deram ao Brasil mecanismos para exercer pressão em prol de uma agenda de justiça social. Porém, tanto as organizações da sociedade civil quanto os acadêmicos relutavam, de modo geral, a envolver-se em questões de segurança pública e reforma policial, pois ambos os grupos haviam sido alvo do regime militar e vítima da repressão policial.

Ao longo desse período as organizações de direitos humanos assumiram o papel mais do que necessário de denunciar casos de violação de direitos humanos por parte da polícia. Mas a questão da mudança institucional, de maior amplitude e complexidade, e que exigia justamente interação com os elementos progressistas da polícia, foi um processo bem mais complicado. Até bem recentemente, a colaboração com os policiais progressistas, influenciando a mudança institucional, era tida como uma verdadeira traição aos princípios e prioridades daqueles que lutavam pelos direitos humanos.

De fato, a nova geração de organizações de direitos humanos, disposta a formar parcerias com a polícia e batalhar pela mudança, foi considerada “vendida”, demasiado próxima do governo, rotulada de “chapa branca”. Ou seja: as resistências eram de duas naturezas: em primeiro lugar, havia uma estrutura militarizada com rígida ideologia e práticas refratárias ao pensamento estratégico de prevenção do crime e da violência e, segundo, havia a dificuldade em envolver os atores da sociedade civil e os acadêmicos em parcerias com a polícia. E foram esses os dois focos de atuação do coronel Cerqueira nos seus dois mandatos e mesmo nos anos seguintes.

Foi nos primeiros anos da redemocratização, em 1983, que o governador Leonel Brizola, recém-eleito, nomeou pela primeira vez o coronel Cerqueira comandante da PM do Rio de Janeiro. As polícias militar e civil refletem, de modo geral, a longa história e cultura específicas de seus Estados, uma variável com implicações consideráveis quando se trata de estimular a mudança institucional.

Apesar de seus dois séculos de existência, a polícia que Cerqueira passou a comandar era fruto da mudança do papel político do Rio de Janeiro no cenário nacional e era, na verdade, um amálgama de quatro forças policiais diferentes: a Polícia Militar do Distrito Federal, da época em que o Rio era a capital do país, até 1960; a Polícia Militar do Estado da Guanabara, criada em 1960, quando a administração federal mudou-se para Brasília; a Polícia Militar do antigo estado do Rio de Janeiro; e a Polícia Militar do atual estado do Rio de Janeiro, após a fusão dos Estados da Guanabara e do Rio de Janeiro, em 1975.

A unificação das forças estaduais de ambos significou um realinhamento total, organizacional, da burocracia e da administração. Mais complicada ainda foi a fusão de duas culturas, com história, mentalidade, tradição e papéis diversos. Na qualidade de polícia da antiga capital do país, o Distrito Federal, a PM da Guanabara herdara o legado histórico do “gendarme”, que Portugal havia copiado da França e trazido ao Brasil em 1809. Era tida como uma força policial de elite, próxima à sede do governo nacional, com melhores salários e formação. Já a Polícia Militar do antigo Estado do Rio de Janeiro era considerada mais provinciana, com menores salários e pior treinamento. O impacto foi significativo em termos de rixas profissionais e dificuldades de ajuste entre as diversas culturas institucionais.

No que tange a questões de promoções, por exemplo, muitos dos que, em condições normais, poderiam contar com uma ascensão certeira após trabalharem o número de anos exigidos, descobriram que não havia vagas suficientes na nova organização. Em 1983, Cerqueira enfrentava os conflitos internos decorrentes desse amálgama institucional, que teve lugar em 1975. Esse conflito e essa diferença de mentalidade e identidade existem ainda hoje.

A escolha de Cerqueira para o posto de comandante foi atípica, do ponto de vista tradicional. Negro, de uma família humilde do bairro de Olaria, no subúrbio industrial capital fluminense, ele graduou-se na Escola de Formação de Oficiais como o primeiro da turma. No entanto, sofreu discriminação racial ao longo de sua carreira. Em entrevista realizada em 1988, no Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, em comemoração ao centésimo aniversário da abolição da escravatura, Cerqueira falou dos insultos e menosprezo que sofreu, desde a escola primária, proferidos pelos próprios professores, até a educação superior, na Academia de Polícia, incluindo os oficiais superiores.

Apesar da percepção generalizada de que a PM era um canal de mobilidade social para os negros, havia um racismo velado sempre que algum negro entrava na competição, junto com os brancos, por um cargo de alto escalão. Na verdade, o fato de um negro conquistar o cargo de comandante era considerado acintoso pela maioria dos membros brancos da corporação. Mesmo depois de assumir o cargo, Cerqueira teve de enfrentar casos de insubordinação com insinuações racistas.

Quando foi escolhido por Brizola, opositor contumaz do regime militar e autodenominado socialista, a elite branca, a mídia e os militares reagiram com surpresa e mesmo desprezo, enquanto os membros do então nascente movimento negro brasileiro, bem como os residentes das favelas cariocas, majoritariamente negros e pardos, alvo frequente da violência crônica policial, receberam-no com alegria.

Embora Cerqueira nunca tenha se identificado publicamente com o movimento negro, sua experiência como jovem e, posteriormente, como profissional negro influenciou sua filosofia e práticas de modo significativo. Sempre um intelectual, com graduação em filosofia e psicologia, acreditava na luta contra o racismo pela via teórica, combatendo os conceitos que gerassem atitudes racistas. Em lugar do confronto direto, dizia:

[…] defendo outro tipo de luta, que é o do enfrentamento das concepções teóricas que estariam por trás das crenças que impulsionam o sistema de justiça criminal para punir os negros, os mais pobres e todas as categorias marginalizadas.

O coronel Celso Guimarães, que trabalhava próximo a Cerqueira, colocando em prática aquilo que este concebia intelectualmente, lembrou-se de um incidente de 1982 que teve impacto visceral na sua determinação em mudar práticas policiais racistas. Em uma blitz na Favela da Cachoeirinha a polícia colocou residentes negros em uma fila, com cordas em volta do pescoço, evocando a época da escravidão. Cerqueira imaginou o impacto dessas imagens na cabeça das crianças que vissem seus pais naquela situação e jurou que nunca mais permitiria que a cena se repetisse.

Nos seus dois mandatos, o coronel chamou atenção para a questão do racismo, encomendando estudos sobre a violência contra a comunidade negra e realizando seminários para divulgar os seus resultados, entre os quais o Encontro com a Comunidade Negra. Reformulou políticas de modo a eliminar o conceito do “inimigo interno” dirigido, de modo geral, aos residentes das favelas. Essas novas visões foram incorporadas à formação tanto de oficiais quanto dos policiais menos graduados, os praças. No seu segundo mandato, organizou seminários sobre a cultura negra para discutir a influência do funk e a expressão cultural promovida por esse movimento no ambiente das favelas.

[na próxima postagem, a parte do texto de Elizabeth Leeds que fala de resistências e policiamento comunitário]