Rotas da insegurança e da violência no Brasil – Parte 2
A primeira parte deste texto, publicada em 01/07, pode ser resumida no fato de que a forma que implementamos políticas públicas de segurança no país é ainda regida por pressupostos ideológicos e distantes do que seria um ciclo virtuoso de políticas públicas orientadas a resolver problemas e reduzir a violência.
E, até como a soma de todos os nossos erros históricos, temos um quadro pelo qual o país ostenta uma das maiores populações prisionais do planeta, sem que os crimes sejam reduzidos.
Por esta opção, relega-se a um segundo plano de prioridades, paradoxalmente, os presos por crimes violentos como homicídios e estupros, que seriam aqueles que deveriam merecer as penas mais severas – a conta nunca fecha, pois, com um volume maior de crimes envolvendo tráfico, mais presos teremos por este tipo penal e não teremos espaço nas prisões para priorizar, proporcionalmente, a prisão de homicidas e estupradores. E, enquanto crescem os presos por tráfico, os dados disponíveis mostram que, no mesmo período, o número de presos por tais crimes tem se mantido estável e responde, em média, por 11% dos presos brasileiros.
Não é à toa que se diz que prendemos muito mas prendemos muito mal. Com isso, a centralidade que o PCC e seus congêneres ocupam hoje é resultado direto da ação, ou, se preferirmos, da omissão do Estado em lidar com a questão prisional e da segurança pública como um problema de política pública essencial para o modelo democrático de desenvolvimento do país. Fizemos opções que se mostram equivocadas em várias partes do mundo, mas não temos coragem política de enfrentar a derrota da guerra contra às drogas e propor novos caminhos. E, em meio à esta leniência, abandonamos os presos à própria sorte e ao recrutamento pelas facções e agora nos chocamos quando vemos eclodir episódios de extrema crueldade e violência.
O fato é que, historicamente, a forma como a segurança pública é operada no Brasil teve seus contornos fundamentais fortalecidos pela matriz ideológica nacional desenvolvimentista e consolidou-se, a partir dos anos 50 e 60, sobretudo pela atuação da Escola Superior de Guerra (ESG), criada em 1949. Foi a partir da doutrina engendrada pela ESG que foi sendo amalgamada a síntese entre a seletividade penal (tratamento diferenciado para segmentos diferentes da sociedade pelo qual alguns serão submetidos ao máximo rigor da lei e, outros, terão acesso à integralidade das garantias individuais previstas na Constituição), a construção de inimigos internos e a ideia de um modelo de desenvolvimento que aceita as profundas inequidades no acesso à justiça.
O modelo segurança nacional e desenvolvimento pautou-se pelos valores forjados na guerra fria, de dois polos opostos em disputa, e não nasceu pronto, foi fruto de desdobramentos institucionais e de articulações entre militares e civis; de razões econômicas e razões políticas; e da combinação de razões políticas e de cultura jurídica que atribuem papel ambíguo às instituições policiais.
O principal viés doutrinário dessa ideologia é fazer crer que em torno do desenvolvimento econômico circulam conflitos e disputas pela hegemonia política da nação tanto por concorrentes externos como por interesses de opositores internos, exigindo o controle e o monitoramento da sociedade. A sociedade precisa ser tutelada e a ordem, entendida enquanto ausência de conflitos e questionamentos ao status quo, deve ser preservada acima de qualquer coisa. Os discursos que sequestram a agenda da ordem estão, habilmente, explorando esse fato e vociferando ódios, preconceitos e propostas que, se transformadas em voto, colidirão frontalmente com a ordem constitucional. Estamos vendo o prelúdio de tensões ainda maiores entre as instituições e o consequente aumento dos riscos de rupturas democráticas.
Se, na sua origem, o inimigo eram os “comunistas”, agora o crime organizado parece operar como freio às mudanças na arquitetura institucional do sistema de justiça criminal e de segurança que foram sendo formuladas e, mais residualmente, implementadas desde a Constituinte e que tiveram seu ápice simbólico no lançamento do primeiro Plano Nacional de Segurança Pública, pelo Governo FHC, quando pela primeira vez a União chama para si a agenda da segurança pública de forma mais explícita.
Não é de se estranhar, portanto, que setores ultraconservadores da máquina estatal aproveitem a crise atual nos presídios e na segurança pública para associarem a ação do PCC a roteiros que o ligam à lógica da defesa nacional, independentemente de uma avaliação mais rigorosa e técnica das condições que permitiram que as facções criminais crescessem e se proliferassem no Brasil. Um novo velho inimigo está sendo moldado para que as práticas institucionais continuem influenciadas pela lógica da defesa nacional e subordinação da sociedade ao Estado.
Os interesses postos são diversos e este é um movimento que não se circunscreve ao Brasil e responde ao tempo social pautado pelo medo e pela insegurança. Falar de segurança é falar de identificar e neutralizar o inimigo, seja ele interno ou externo. E, para tanto, recomendações que hipermilitarizam a área ganham terreno e conquistam mentalidades. É isso que faz o Governo Temer com a Intervenção Militar na Segurança Pública do Rio de Janeiro, por exemplo.
Porém, não obstante reconhecer o aumento do poder e da influência do PCC no cenário do crime e da violência do país, vale explicitar que este é apenas um dos eixos em disputa. Pesquisas recentes sobre fronteiras mostram um quadro generalizado de violências e ilegalismos que não se resume à ação das facções criminosas responsáveis pelo tráfico, no qual o comércio de armas e drogas se associa à corrupção policial; ao comércio de madeira; ao contrabando de produtos como cigarros; aos homicídios e mortes por encomenda; à violência contra mulheres, crianças e população indígena; ao tráfico de pessoas e de órgãos.
(continua..)