Rotas da insegurança e da violência no Brasil – parte 1
Faz 30 anos que o Brasil acordou um contrato social democrático, traduzido em nossa Constituição de 1988, que buscava selar as pazes entre Estado e sociedade e propor um pacto social pautado na garantia de direitos civis e humanos. Após décadas de regime ditatorial, o país emergia disposto a construir um projeto de reformas modernizantes que o colocaria em linha com as nações mais desenvolvidas do mundo e que incorporasse milhões de brasileiros a um novo modelo de desenvolvimento mais digno e justo.
Infelizmente, essa energia de mudança não enfrentou todos os nossos fantasmas e há temas quase que intocados até hoje. E, como consequência, em meio a um profundo quadro de desalento em relação às políticas públicas, “mitos” são criados e venerados, sem que as pessoas se atentem para o fato de que as instituições brasileiras são refratárias a quaisquer movimentos de mudança brusca que lhe retirem poderes e/ou privilégios.
Ninguém, absolutamente ninguém que vier a ser eleito Presidente ou Governador nas próximas eleições de outubro, terá plenos poderes para impor democraticamente sua agenda de reformas, ainda mais no campo da ordem e da segurança públicas. O resultado das eleições de outubro não significará, nem mesmo com a eventual escolha de Jair Bolsonaro e suas propostas ultra-raivosas, em uma carta branca para a revogação do Estado de Direito no Brasil.
Quem for eleito chefiará o Poder Executivo, mas terá que compor e negociar com órgãos de Estado como os Ministérios Públicos e com o Poder Judiciário. Há limites que não podem ser transpostos; há cláusulas pétreas da Constituição que precisam ser observadas, implementadas e respeitadas.
Dito isso, é importante analisarmos que algumas de nossas mais graves mazelas e dramas sociais mostram-se como persistentes marcas históricas de nossa cultura política e da nossa identidade nacional. E, entre elas, com certeza está a violência, seja ela emanada do Estado, do crime organizado ou aquela presente no cotidiano das nossas relações sociais. Só em assassinatos, por exemplo, a violência alcança faz quase uma década o patamar de 60 mil mortes anuais.
Somos uma sociedade profundamente fraturada e violenta, que aceita ser dividida entre “cidadãos de bem” e “bandidos” e, consequentemente, aceita que alguns tenham seus direitos garantidos e acesso à segurança pública e, outros, sejam vistos como inimigos a serem eliminados, na lógica da “segurança interna”. Não interditamos a violência nem moral, nem politicamente no Brasil.
Como resultado, as políticas públicas e criminais vigentes, ao longo dos anos, preferem focar mais no “criminoso” do que no “crime”; preferem incentivar um modelo de segurança pública baseado no enfrentamento e que, na prática, faz vítimas de todos os lados e nos faz ter a polícia que mais mata no mundo e uma das que mais tem seus profissionais mortos. A ênfase não está na investigação eficaz de crimes e punição dos seus responsáveis, mas na identificação e neutralização de delinquentes.
Temos um modelo de segurança pública com baixíssima eficácia organizacional, que apresenta taxas de esclarecimentos de crimes e tempos de processamento de casos muito ruins. E, para completar, a violência assume novas feições com o crescimento das facções criminosas, sobretudo do PCC (Primeiro Comando da Capital).
Surgido no início dos anos 1990, o PCC nasceu da organização de um grupo de presos por roubo a bancos, que no mundo da delinquência tem características próprias e identidade “profissional” muito definidas. Só a partir da sua segunda geração de líderes, em meados da década de 2000, é que o PCC vai caminhar para o modelo de negócios lastreado no tráfico de drogas – digno de nota, modelo que privilegia o médio atacado da droga, por sinal.
E, ao contrário do que a fama que foi sendo construída em torno do PCC, o controle por ele exercido da atividade criminosa vai se dando menos pelo rígido controle territorial de determinadas localidades, a exemplo das comunidades cariocas dominadas pelo Comando Vermelho, pelo Terceiro Comando, e/ou pelas milícias compostas por policiais e guardas municipais. A força do PCC está no domínio dos presídios, pois, por seu intermédio, há o controle do fluxo das atividades criminosas em uma determinada região e há a cooptação moral da população de presos e familiares.
O PCC, ao contrário de boa parte das demais facções do país, tem o seu modelo de negócios pautado pelo controle do atacado e não do varejo da droga. Isso significa que ele não vai influenciar necessariamente no comércio da droga na ponta, na “biqueira”, desde que todos os responsáveis pelo varejo comprem dele o que for definido pela cúpula. Não há exclusividade, mas redes de dependência. O traficante local até pode adquirir drogas de outros fornecedores, porém terá uma quota de drogas que precisará comprar do PCC. E, por esta dependência, há o entendimento que polícia perto gera problemas para os negócios e isso impacta nos lucros, disso derivando a opção por manter a “paz” nas biqueiras.
O PCC adota um rígido controle de condutas, com um modelo hierárquico de tomada de decisões. Uma vez dominados um presidio e sua área de influência, todos os presos, mesmo os não “batizados” (os que não integram formalmente o PCC) e toda a população próxima aos pontos de tráfico estão sujeitos às regras impostas pela cúpula da organização. Isso exige capilaridade, uma forte estrutura organizacional e um poderio bélico e de dissuasão cada vez maior. Já as demais facções não necessariamente trabalham na lógica do batismo e atuam como franquias de facções famosas; atuam sem estruturas hierárquicas tão rígidas e permitem maior autonomia local na tomada de decisões.
Em outras palavras, o PCC endereça suas atividades e adota a dissuasão e o domínio moral como ferramentas de manutenção do poder. Trata-se de uma estratégia sofisticada e que não pressupõe tão somente disputas por rotas, áreas e pontos de comércio e distribuição de drogas.
A tática é a de ocupação de posições e a de substituição do confronto com o Estado por uma pax monopolista que, se num primeiro momento mostra-se como violenta na tomada do poder, na sequência “pacifica” e “coopta” população e autoridades para o seu modelo de negócios, que busca administrar os conflitos locais e regular o mercado da morte por meio dos tribunais, afastando a polícia e maximizando ganhos. Este modelo de negócios é completamente diferente (e aqui não cabe avaliar qual é melhor ou pior) do carioca, por exemplo, cuja briga por territórios tem sido uma constante desde a década de 1970.
Mas é inegável que o PCC, e muitas outras facções, surgiu e cresceu como subproduto perverso das precárias condições de aprisionamento dos mais de 720 mil presos em regime fechado no Brasil. O crime organizado cresceu nas franjas da atual política de drogas e da política criminal de superencarceramento vigentes no país, oferecendo apoio e organizando a população carcerária e suas famílias diante da incompetência do poder público em cumprir a legislação – e aqui reside a contradição das propostas que advogam maior “rigor” como sinônimo do que já temos, sem inovar em propostas baseadas em soluções efetivas de problemas.
Ou seja, o poder do PCC ou das Milícias não seria tão intenso se o Estado cumprisse com os requisitos mínimos previstos na Lei de Execuções Penais, de 1984. O risco maior está menos nas porosas fronteiras do país, mas na forma pouco eficaz e efetiva com que as políticas públicas são pensadas e implementadas. Não que as fronteiras não sejam um problema, muito pelo contrário, mas elas conectam-se com a forma como administração segurança e justiça no país.
E, por esta forma, vamos construindo antagonismos e inimigos que nos afastam de um ideal de convivência cidadã. Na ânsia de sermos resgatados do julgo do medo e da violência, estamos prestes a chocar o Ovo da Serpente que engolirá nossa já pequena liberdade.
(continua na próxima postagem)