Direito à cidade e novos papéis dos municípios na Segurança Pública

*Coautoria de Flávia Carbonari, jornalista e consultora do Banco Mundial.

A América Latina é hoje a região mais violenta do planeta. Apesar de abrigar apenas 8% da população global, a região é responsável por 33% dos homicídios que ocorrem no mundo. Sozinho, o Brasil responde por mais de 12% desse total.

Os Estados Unidos, por sua vez, também se destacam entre os países industrializados com a maior taxa de mortes por armas de fogo. Quando combinado, o continente americano abriga 47 das 50 cidades mais violentas do mundo, segundo ranking anual da ONG mexicana Seguridad, Justicia y Paz; entre elas, 17 são brasileiras.

Processos de urbanização rápidos e desordenados e sem planejamento, fácil acesso a armas, a presença do narcotráfico, altos índices de exclusão social e aspectos culturais, com normas sociais machistas e que valorizam a violência como forma de resolução de conflito, são alguns do inúmeros fatores comuns que explicam as altas taxas de crime e violência do continente.

É claro que as altas taxas de crime não são homogêneas pela região ou nem mesmo dentro dos próprios países. A criminalidade se concentra em lugares específicos – municípios mais vulneráveis, como mostrou recentemente o Atlas da Violência 2018; bairros mais vulneráveis; e até segmentos de ruas específicos– e faz da maioria de suas vítimas populações mais excluídas.

É por isso que, apesar dos contextos diferentes, podemos encontrar semelhanças nos problemas de segurança enfrentados por diferentes cidades do continente. Em 2014, o bairro de Englewood, em Chicago, com uma taxa de homicídios de 65,5 para cada 100,000 habitantes, teve mais mortes do que a Ciudad Juárez, no México, com 55,9, por exemplo, como mostrou estudo da economista Laura Chioda.

Se os fatores de risco que levam às altas taxas de criminalidade violenta na região são parecidos, muitas das soluções podem também ser adaptadas de uma cidade à outra. Mas o que as cidades das Américas podem aprender umas com as outras? Que estratégias que funcionam em uma cidade podem ser aplicadas a outros contextos?

Uma agenda transnacional para abordar a violência urbana na região seria sustentável? Essas foram algumas das questões que levaram cerca de 30 pesquisadores, funcionários públicos, representantes de organismos multilaterais e da sociedade civil do Brasil, México, Colômbia e dos Estados Unidos para um encontro em Chicago na semana passada (dias 14 e 15/06).

O objetivo da reunião, organizada pelo think tank Chicago Council on Global Affairs, em parceria com o Chicago Crime Lab da Universidade de Chicago, era estabelecer uma rede de intercâmbio entre as diferentes cidades em busca de soluções eficazes para a redução da violência.

No Brasil, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Instituto Cidade Segura fazem parte desta iniciativa na ideia de fomentar fortes investimentos no desenho e na avaliação de estratégias de prevenção secundária (com grupos vulneráveis à violência) e terciária (com egressos dos sistemas socieducativo e prisional) que possam ser aplicadas à nossa realidade. Só a polícia e/ou a repressão não darão conta do tamanho do nosso problema.

Para que isso seja possível, é preciso uma discussão sobre o direito à cidade e o papel dos municípios na prevenção da violência. Afinal, a segurança é um direito em si (Artigos 5º e 6º da CF) e seus impactos são muito maiores do que apenas os da esfera criminal ou da atividade policial. O SUSP (Sistema Único de Segurança Pública) é uma grande oportunidade para viabilizar novos cenários e ações.

O município é o grande articulador no nível local dos diversos atores sociais responsáveis pela segurança pública. A interseção entre o desenvolvimento urbano e a redução da violência deve, portanto, enfatizar o papel fundamental das cidades em sua prevenção através da promoção da coexistência e da inclusão social; a revitalização, uso e ocupação de espaços públicos; a participação no planejamento e monitoramento de políticas públicas; e a coordenação com os governos estadual e federal.

No estudo “Aprendendo da América Latina: tendências de políticas que levaram à redução do crime em dez cidades da região” que fizemos para o relatório global Know Violence in Childhood, olhando cidades do Brasil, Colômbia, México, Guatemala e El Salvador vimos que ter um sistema de informações forte que mostra um quadro composto de onde a violência está ocorrendo, quem é afetado e o risco fatores que o impulsionam, é essencial para direcionar recursos escassos para onde eles possam ser mais eficazes em abordagens territoriais abrangentes.

Em segundo lugar, melhorar o sistema de governança e gestão do setor de segurança, construindo a estrutura institucional e os mecanismos de coordenação que estabelecem uma divisão clara de trabalho entre os diferentes níveis e setores do governo e os canais de recursos contribui para uma resposta mais coerente à violência.

A combinação de intervenções direcionadas de “ganhos rápidos”, como a recuperação de espaços públicos ou o controle de álcool ou armas de fogo, com mais programas de longo prazo e direcionados, como emprego juvenil ou reintegração, parece ter sido fundamental nesses locais. E, finalmente, envolver uma ampla gama de partes interessadas, incluindo comunidades, academia, sociedade civil e setor privado, também se mostrou necessário nesses lugares.

Segurança não combina com o pânico promovido por alguns segmentos; segurança combina com cidades mais seguras e cidadãs.