O Caveirão Voador e os Zumbis à Procura de Corpos Frescos

Em mais uma sequência de confrontos e tiroteios que estão sendo banalizados por décadas de descaso com a população das comunidades cariocas, Marcos Vinícius da Silva, de 14 anos de idade, morreu nesta quarta-feira (20) após ser baleado a caminho da escola durante operação policial no Complexo da Maré, na zona norte do Rio de Janeiro.

Nesta operação, segundo várias imagens que estão circulando pela Internet, a Polícia Civil do Rio de Janeiro mobilizou o uso de um helicóptero blindado apelidado de “Caveirão Voador”. A aeronave foi usada como o que tecnicamente é chamado “plataforma de tiro”. Policiais Civis atiravam em direção ao chão em sobrevoos rasantes, indicando uma operação de neutralização e combate. É necessário uma apuração isenta para saber se a morte de Marcos Vinícius foi provocada por algum disparo originado da aeronave.

Para além da indignação que uma operação desta deveria provocar em todos nós, o episódio chama atenção para alguns procedimentos que valem ser trazidos à luz do debate nacional. Esta é uma questão nacional e precisa ser tratada enquanto tal. Em primeiro lugar, mesmo em um contexto de intervenção federal liderada por um General de Exército, a operação foi conduzida pela Polícia Civil, que, em tese, não teria prerrogativa constitucional de operações táticas como as levadas a cabo na Maré.

A lógica do confronto naturaliza a confusão de competências quando feita em territórios pobres, mas, à luz do direito, a Polícia Civil deve uma explicação sobre qual a justificativa legal para o uso desta aeronave. Que investigação esta ou estava sendo conduzida que exigiu o apoio de equipes táticas especializadas? Aliás, para que a Polícia Civil precisa de uma aeronave blindada? Quais as explicações técnicas para esta aquisição e qual o custo envolvido em sua manutenção e operação?

A ideia de confronto está tão banalizada que poucos notaram que não foi a Polícia Militar que interveio na situação. Ou seja, que a discussão sobre o fim das polícias militares como antídoto à violência institucional tem desconsiderado que o padrão de enfrentamento não é exclusivo a estas e está enraizado nas concepções de ordem e comandos de política criminal do país.

Mas, concedendo o benefício da dúvida, fui verificar como é regulada a ação de aeronaves policiais no Brasil. Para tanto, consultei o Coronel José Vicente da Silva, ex-Secretário Nacional de Segurança Pública e um dos mais renomados especialistas em segurança pública do país, com mais de 50 anos de profissão.

Segundo o que me explicou o Coronel José Vicente, as polícias podem operar aeronaves em confrontos e se utilizarem delas como plataforma de tiro atendidas duas condições, uma técnica e outra legal. A primeira destas condições é que, para poderem atirar com garantia de que estão mirando corretamente, o helicóptero precisa estar estabilizado no ar, quase sem movimentos.

Diferentemente de uma operação de guerra, um helicóptero policial precisa ter condições operacionais para atuar com o máximo de precisão. Já a segunda condição para o uso de um helicóptero policial como plataforma de tiro é legal. O uso de armamento letal só pode ser empregado se, em terra, existirem riscos à integridade de civis e/ou policiais (legítima defesa do policial ou de outrem).

Ambas as alternativas, pelas imagens disponíveis, não estavam totalmente claras ou presentes, indicando a urgência do Interventor Federal, General Braga Neto, instaurar procedimento investigatório, sem prejuízo de competência concorrente do mesmo ser feito pelo Ministério Público do Rio de Janeiro, que tem a obrigação de exercer o controle externo da atividade policial.

Ao contrário do que tem sido a regra do Interventor Federal, que tem evitado e/ou, mesmo, vetado a imprensa, a morte de Marcos Vinicius deveria provocar um choque de transparência na segurança pública carioca. É necessário dar a máxima transparência para os protocolos adotados (se é que eles existem), as filmagens disponíveis e a cadeia de comando da operação.

Afinal, em uma população apavorada, com mais de 30% declarando que ficou no meio de um tiroteio entre policiais e bandidos, o debate sobre o absurdo em torno desta situação está longe de ser ideológico ou político. É técnico e civilizatório mesmo. Não devemos dar ouvidos a determinados políticos que atuam como zumbis à procura dos corpos frescos para se manterem eleitoralmente viáveis. Segurança Pública se faz com evidências, planejamento e inteligência.

Não há justificativa para um padrão tão obsoleto e letal. Mas, para manter o mínimo de confiança, ou a Polícia Civil Carioca mostra que não errou grosseiramente ou, somados aos mais de 100 dias sem sabermos quem matou e quem mandou matar Marielle Franco e Anderson Gomes, o episódio será o atestado que faltava para a completa falência das polícias e da incapacidade de se fazer políticas públicas inteligentes de segurança no Rio de Janeiro.