No Brasil, mata-se muito e agora há quem queira matar o mensageiro.
Na última sexta feira, dia 15, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Ipea divulgaram o volume final do Atlas da Violência – 2018, com dados para todos os municípios do país com mais de 100 mil habitantes. Os números desagregados deram ainda mais dramaticidade àquele divulgado na semana anterior, que dava conta de explicitar o tamanho da tragédia das 62.517 mortes violentas intencionais registradas em 2016 no país.
Já faz muito tempo que temos reiterado que somos uma sociedade cruel e violenta e nos acostumamos com cenas de barbárie e com políticas públicas ineficientes. A violência faz parte do cotidiano brasileiro. Ela nos anestesia. E quando, em um retrocesso típico de pensamentos arcaicos sobre transparência e responsabilidades públicas, a sociedade civil e órgãos de pesquisa trazem o problema para debate, são atacados na tática de se evitar discutir o que se está por trás dos números.
Aliás, sobre este fato, é sempre importante dizer que o Brasil passa a vergonha de não dispor, na segurança pública, de um sistema nacional oficial de estatísticas policiais. E não é por falta de dinheiro ou condições tecnológicas. É por falta de coordenação federativa e pela omissão de gestores públicos estaduais e federais.
É mais fácil tentar matar o mensageiro, como na Idade Média (O FBSP, por exemplo, tem enfrentado fortes resistências para produzir e publicar dados). Por sinal, se fôssemos um país civilizado na segurança pública, já teríamos feito uma ampla e transparente auditoria nos dados sobre registros policiais no país e não teríamos que, em plena segunda década do Século 21, discutir uma agenda do final do 19, começo do 20, nos EUA e na Europa.
Não passaríamos a vergonha de os nossos gestores confundirem os sistemas de dados da saúde e o da segurança e acharem que um dia, em um futuro distante, teremos apenas uma informação (isso não existe em nenhum lugar do mundo, pois cada sistema é feito para um propósito).
Se os secretários de segurança pública contratassem uma auditoria independente dos seus dados, talvez assim poderíamos abrir a caixa preta dos dados da Bahia e de São Paulo, que são as Unidades da Federação que apresentam as maiores taxas de subnotificações de registros da saúde e que, na segurança pública, alegam ter metodologias diferentes para criticarem comparações.
Nesta briga sobre como classificar e o que contar como violência, a sociedade é a maior vítima. Se um homicídio ou latrocínio; ou se legítima defesa ou não, corpos estão estirados no chão e o Estado precisa oferecer um mínimo de dignidade para que sejam enterrados (lembremos que até o corpo de Osama Bin Laden teve, por parte dos EUA, o tratamento que os muçulmanos dedicam aos seus mortos). Sem dados não há planejamento e sem planejamento há grande chance de carência ou de desperdício de recursos.
O grau de civilidade de um país e da estatura moral de sua sociedade pode ser medido pela forma e pelo destino que são dados aos corpos de seus mortos, independentes de quem eles sejam. Ao negarmos transparência e ficarmos no debate ideológico sobre as estatísticas de mortes violentas intencionais (por sinal nada mais ideológico do que acusar a estatística que contraria sua visão de mundo de ideológica), estamos dando provas de que vivemos a degradação moral e política em sua intensidade máxima.
E, sempre é bom lembrar, isso não é exclusividade da direita, do centro e/ou da esquerda. É a vida como ela é. Ou melhor, é a morte como covardia e como omissão. Mas tragicamente criticar os dados é sinônimo de não reconhecer a completa falência das políticas de prevenção e enfrentamento ao crime e à violência.
Se evidências bastassem, o Atlas da Violência 2018 reforçou que a violência letal é endêmica no país e, ao estar associada com cidades com maior número de jovens que não estudam e não trabalham, explicitou que a prisão é a praticamente a única política pública reservada aos nossos jovens pobres e negros e que algo precisa ser feito urgente.
Não há quase ações de prevenção secundária (com grupos vulneráveis) ou de prevenção terciária (com egressos dos sistemas socioeducativo ou prisional) e nada oferecemos como oportunidade de vida para milhões de jovens.
E, ao fazermos isso, estamos fornecendo mão de obra às organizações criminosas tanto ao prender muito em função de uma política de drogas estúpida, quanto pelo fato de que, ao não termos políticas de prevenção, a vida no crime torna-se o caminho natural pelos abandonados pelo Estado e pela sociedade.