Violência: o atestado de óbito da Democracia
O Ipea e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgaram hoje a edição de 2018 do Atlas da Violência, publicação que sistematiza e analisa dados fornecidos pelo sistema de saúde do país. Os números, mais uma vez, são de uma tragédia mais do que anunciada. Em 2016, 62.517 pessoas foram assassinadas no Brasil, em um aumento de 5,8% em relação ao ano anterior.
E as más notícias não param neste total. Os 62.517 homicídios representam uma taxa de 30,3 mortes para cada 100 mil habitantes, maior patamar da história desde que os dados do sistema de saúde são contabilizados. E, se focarmos apenas nos jovens entre 15 e 29 anos de idade, a taxa salta para 65,5 mortes para cada 100 mil jovens. Trata-se de uma taxa mais do que o dobro maior do que a média nacional e que revela que estamos boicotando o nosso futuro.
Estudos do economista Daniel Cerqueira, do Ipea, estimam que o Brasil perde 1,5% de seu PIB todos os anos (Produto Interno bruto) ao aceitar que os assassinatos de jovens se mantenham nestes patamares obscenos. E, em 6 estados brasileiros, as taxas de mortes de jovens superam as inacreditáveis 100 mortes por 100 mil, com destaque para Bahia (114,3) e Pernambuco (105,4), dois grandes estados do Nordeste.
Além disso, os dados demonstram que entre 2006 e 2016, a taxa de homicídios de negros cresceu 23,1% e está em 40,2 mortes para cada 100 mil habitantes, a taxa de não negros teve redução de 6,8%e está em 16 mortes para cada 100 mil habitantes.
Temos que ter a dignidade de abrirmos um debate transparente sobre o significado destes dados e sobre as razões da questão racial ser tão predominante na explicação da violência.
No entanto, ao invés de enfrentarmos o problema, o discurso bélico de autoridades é o atalho mais curto para o fracasso do Estado de Direito no Brasil. Nada se fala em prevenção, repressão qualificada e aperfeiçoamento das instituições; nada se fala de quão obtusa é a cruzada de “guerra às drogas” vivida por nós e de como o mata-mata que vige nas periferias das grandes cidades é a face mais perversa de opções político-institucionais sobre como lidar com os nossos conflitos sociais mais candentes. Somos uma sociedade atemorizada e autoritária, onde as promessas que valorizam a violência como resposta são uma poderosa arma eleitoral.
Basta vermos que no dia em que o Atlas da Violência vai mostrar um recorde histórico de assassinatos, a pesquisa do site jornalístico Poder360 mostra o defensor de mais violência como solução para os problemas da segurança pública, Jair Bolsonaro, como líder das pesquisas. Chega a ser imoral a aceitação que a violência tem no Brasil.
Imoral e completamente desprovida de racionalidade, já que a violência é parte da história do país e não é fruto exclusiva de “perigosos criminosos de fuzis”. Por certo a nova dinâmica do crime organizado exige respostas mais eficientes do que as o Estado brasileiro tem dado por meio da ação de suas esferas e poderes.
Porém, se olharmos para o indecente dado que mostra que 50,9% das vítimas de estupros no país é composta por crianças com até 13 anos de idade e, ainda mais angustiante, que 30% dos casos de estupro contra crianças são perpetrados por familiares próximos, veremos que a violência atinge a todos nós e que a melhor saída para o país seria uma grande coalização política para bani-la do nosso cotidiano.
Sim, a solução passa pela construção de um projeto político que seja capaz de modernizar a segurança pública brasileira e pacificar a sociedade. Mas sem ideias toscas e salvacionistas, mas com trabalho, evidências e esforços articulados e coordenados. Um projeto que valorize o profissional da área e, ao mesmo tempo, esteja motivado pelo cumprimento da lei, que tem nas cláusulas pétreas da Constituição Federal a sua maior guia.
Enquanto olharmos a segurança pública sob o prisma do terror que toma conta do brasileiro, soluções efetivas dificilmente terão êxito.
Estamos correndo um enorme risco civilizatório e é importante que saibamos explicita-los para não haver margem de dúvidas: ou o Brasil interdita politicamente a violência ou estaremos preenchendo o atestado de óbito da democracia no país.