A lei é para todos

A forma como o Brasil está enfrentando a crise no transporte rodoviário de cargas, que em muito já ultrapassou as demandas dos caminhoneiros autônomos do país, é evidência cabal da fragilidade das instituições democráticas no Brasil, com ruidosos e agressivos grupos a favor da intervenção militar ganhando um perigoso protagonismo e revelando muito sobre o tempo social em que vivemos.

As tentações autoritárias se multiplicam e, infelizmente, confirmam os achados antecipados em artigo publicado em junho do ano passado na Ilustríssima (Violência e Medo Insuflam Defesa de Autoritarismo-no-brasil).

Nesse artigo, dados de pesquisa realizada pelo Datafolha e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública indicam que o país é terreno fértil para ideias e líderes autoritários. Diante do medo provocado pela violência urbana, propostas salvacionistas dão o tom do debate eleitoral: enquanto se valorizam líderes pretensamente capazes de restaurar a ordem e recolocar a sociedade nos trilhos, a democracia perde espaço.

Porém, o paradão dos caminhões, que conseguiu aglutinar demandas legítimas de um segmento profissional com toda sorte de interesses político-ideológicos e insatisfações difusas com o governo de Michel Temer e a classe política, trouxe um elemento adicional que ganhou pouco destaque e que pretendo refletir aqui com todos os leitores e leitoras.

Refiro-me à forma como as polícias e as Forças Armadas lidaram até aqui com a situação. Em paralelo ao crescente esfarelamento da autoridade do governo federal, as instituições mostraram-se bastante reticentes em conter e reprimir atos de quebra da ordem, como bloqueios de pistas, ameaças a quem queria trabalhar e crimes. Mesmo após a decisão do Ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal), ter autorizado, se necessário, o uso da força e, sobretudo, multas de R$ 100 mil, essas instituições não quiseram assumir o ônus envolvido na dispersão de um movimento visto como legítimo por parcela significativa da população (pesquisa Datafolha de hoje mostra que os caminhoneiros, face mais visível desta crise, contam com 87% de apoio entre a população).

E, como resultado, a Polícia Rodoviária Federal, por exemplo, não quis colocar automaticamente em prática a decisão do STF e escudou-se no argumento da necessidade de uma posição da AGU (Advocacia Geral da União). A Polícia Federal, contrariando sua estratégia de comunicação de máxima exposição midiática, está sendo muito cautelosa e evitando dar detalhes de sua atuação. O mesmo estamos vendo nas Forças Armadas e nas Polícias Militares, que foram incumbidas de escoltar cargas vitais e desobstruir pistas, mas evitaram confrontos e estão sendo super-diplomáticas no trato com os manifestantes.

As forças de segurança deveriam ter agido de outra forma? É cedo para fazermos afirmações peremptórias. Mesmo após 10 dias de paralisação, falta-nos dados mais amplos sobre o que de fato está em jogo nesta semana de crise. A princípio, gerenciar crises é sempre mais saudável do que reprimi-las. Mas, como instituições republicanas, é essencial que sejam guiadas por métricas públicas e que prestem contas do que foi e do que está sendo feito. Não há margem para dois pesos e duas medidas. A mesma lei vale para todos.

E porque eu digo isso? Se olharmos para os padrões recentes de atuação dessas instituições, o movimento mostra uma inflexão em relação à narrativa que vem dominando o país e que defende confrontos abertos com “bandidos” e a criminalização de movimentos sociais. Se os grupos políticos fossem outros e a narrativa da criminalização das reivindicações sociais estivesse em pauta, a atitude das polícias teria sido diferente?

Afinal, como relata reportagem do UOL publicada na segunda (28), alguns caminhoneiros estavam se apropriando das cargas para poderem se alimentar nos acostamentos das estradas. E, no limite, se o uso de cargas pelos caminhoneiros foi consentido pelos donos das cargas, teríamos neste ato provas do locaute, que é quando empresários incentivam seus trabalhadores a fazerem greve e é um crime no país. Se eles não pediram, temos um furto qualificado, que também é crime. Em ambos os casos, estamos presenciando situações que autorizariam investigações celeres, detenções e, se fosse o caso, flagrantes. Mas a empatia com a causa dos caminhoneiros modulou até aqui a ação pública e torna o quadro bastante opaco e incerto.

E, por trás dessa aparente mudança de narrativa e de postura, esconde-se uma complexa teia de gargalos e dilemas de governança e coordenação do sistema de segurança pública e justiça criminal que, muitas vezes, funciona em uma lógica fragmentada, pouco transparente e demasiadamente autônoma em relação à ordem social inaugurada pela Constituição de 1988. Teia esta que nos motiva a debater os rumos e sentidos das respostas públicas frente ao crime, à violência, ao medo e à manutenção da ordem social democrática do Brasil contemporâneo.

O blog Faces da Violência pretende, exatamente, ser um espaço que buscará analisar o que está por trás dos números da tragédia de medo e violência que nos assola e, com isso, pensar soluções mais efetivas para todos estes movimentos. Violência, segurança e ordem serão, portanto, debatidas a partir de uma perspectiva que valoriza a vida e a cidadania e que acredita no Brasil.