Faces da Violência https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br O que está por trás dos números da segurança pública Tue, 23 Nov 2021 18:56:47 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Demonização dos povos tradicionais no caso Lázaro não surpreende https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/07/02/demonizacao-dos-povos-tradicionais-no-caso-lazaro-nao-surpreende/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/07/02/demonizacao-dos-povos-tradicionais-no-caso-lazaro-nao-surpreende/#respond Fri, 02 Jul 2021 19:51:28 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/terreiros-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1810 Em nome da luta contra o mal, mesmo com recursos tecnológicos à disposição, a polícia seguiu invadindo os terreiros e violando direitos constitucionais

Ana Paula Mendes de Miranda*, Rosiane Rodrigues de Almeida** e Leonardo Vieira Silva***

A pressa em rotular Lázaro Barbosa de Souza fez com que ele fosse apresentado de muitas formas. Uma dessas classificações resultou em violações de direitos dos povos tradicionais por parte das polícias. Ao retratá-lo como um “fanático religioso”, as forças de segurança se tornaram os cruzados contemporâneos. As operações se transformaram em ações cristãs de “libertação do mal”, numa espécie de “batalha religiosa” acompanhada em tempo real pelas redes sociais.

Tudo começou com narrativas oficiais. O “boato” de que Lázaro estaria possuído por um “demônio” ou “espírito” foi veiculada pelo tenente Gérson de Paula, da PM de Goiás, através do site Metrópoles, no dia 15 de junho. O policial teria afirmado que o criminoso andaria com um “livro místico” que lhe garantiria “proteção espiritual”, razão pela qual “só poderia ser pego com auxílio de cães ou cavalos”. Na sequência, a entrevista do major Rio Branco, subchefe do Centro de Comunicação Social da Polícia Militar do Distrito Federal, ao UOL, que, ao analisar as dificuldades de prender o criminoso, afirmou: “se ele [Lázaro] é a força satânica, as forças de segurança são os anjos de Deus”.

A imprensa mordeu a isca e reconduziu a cobertura, deixando de lado o “perfil psicológico” e investindo na suposta prática demoníaca, mesmo com a ex-mulher e um amigo do suspeito afirmando que Lázaro era evangélico. O G1 reproduziu fotos, que teriam sido divulgadas pela polícia civil, de alguns assentamentos de Exu e pentagramas. Na reportagem, o delegado Raphael Barboza afirmou que os objetos foram encontrados na “casa” de Lázaro, sendo “indicativos de práticas de bruxaria e rituais”. Impressiona que, em pleno século XXI, o jornalismo brasileiro não saiba lidar com a diversidade religiosa. Mas o problema não parou aí.

A ação se voltou para investigar as suspeitas de acobertamento de Lázaro pelos terreiros da região. Diferentes grupos de policiais passaram a invadir, sem mandado judicial, cerca de 12 terreiros. Vídeos disponíveis nas redes sociais demonstram que antes do “combate” aos terreiros, os policiais oravam.

A “neoinquisição” utilizou-se de técnicas tradicionais de interrogatório e pressão dirigida aos suspeitos – os povos tradicionais de matrizes africanas. Em nome da luta contra o mal, com os meios tecnológicos mais modernos, seguiram invadindo os terreiros e violando direitos constitucionais.

As invasões, agressões físicas e verbais só cessaram quando as lideranças religiosas se mobilizaram, por meio das redes sociais, denunciando que as fotos não eram da “casa” de Lázaro, mas do babalorixá André de Oxum, que, após uma peregrinação, conseguiu registrar ocorrência policial sobre os abusos sofridos. Os afrorreligiosos buscaram os meios legais e parceiros que os apoiassem nas suas reivindicações: mandado de segurança para proteção das casas; apuração de responsabilidades das forças policiais pelas agressões; reparação dos danos/agressões; retratação dos meios de comunicação, e garantia do Estado para o direito à liberdade e integridade dos territórios tradicionais.

A pressão serviu ao menos para que o G1 e o UOL se retratassem, pedindo desculpas pelos “erros no processo de produção” das reportagens. O Metrópoles nada fez até o momento da redação deste texto. As instituições policiais seguiram caladas diante da violação que produziram.

Há mais de 30 anos se discute no Brasil que as instituições de segurança pública não têm o direito de dispor de forma ilimitada do uso da força. Há que se respeitar os limites legais que estabelecem que o mandato de uso da força, conferido aos agentes de segurança, não pode violar os direitos fundamentais.

Analisando os relatos e reportagens fica evidente que o início das agressões se deu pelas forças do Estado, difundindo a ideia de que se tratava de uma missão religiosa de libertação do mal. O que vimos é o desrespeito aos preceitos fundamentais basilares, com a invasão ilegal dos terreiros e a espetacularização midiática das operações. O episódio lembra “A Quebra de Xangô”, ocorrida em Alagoas, em 1912, quando terreiros foram invadidos e destruídos com a mesma intenção.

Inaceitável que as operações policiais funcionem como dispositivo publicitário de produção de medo e violação de direitos. Quem ganha com a encenação e espetacularização da insegurança? Trata-se de um fenômeno antigo que explora a violência como mercadoria – notícia – e transforma o público em mero espectador.

Mais uma vez negou-se a humanidade aos povos afroameríndios, para em seguida negar-lhes os direitos. A demonização dos terreiros pelas igrejas cristãs, pela mídia, pelas agências estatais, vem da colonização. Ela serve para generalizar o medo, para organizar moralmente a sociedade em torno de um modelo excludente da diversidade, que trata o mundo de modo dual (bem versus mal), no qual se inventam os “demônios” para que sejam sempre os culpados. Não se trata apenas de uma questão religiosa, mas sim de uma ética, um modo de pensar, sentir e agir que orienta práticas institucionais. Neste caso a demonização serviu para ocultar os interesses financeiros de um fazendeiro, que teria escondido o criminoso. Ele não permitiu a entrada das polícias em sua fazenda, mas não houve uma invasão tal como nos terreiros, pois ele foi preso mediante outro tipo de ação. Nada de novo na política e na polícia brasileiras.

 

*Professora de Antropologia (UFF); Pesquisadora do INCT-INEAC (UFF); Bolsista de Produtividade do CNPQ 2.

**Bolsista de Pós-Doutorado em Antropologia (FAPERJ); Pesquisadora do INCT-INEAC (UFF).

***Doutorando em Antropologia (UFF); Pesquisador do INCT-INEAC (UFF)

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Na edição desta semana, leia também “Vinte anos da criminalização do assédio sexual” e “Casos DG e Floyd, duas mortes e a mesma causa: a letalidade policial“.

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O papel da perícia no caso Henry Borel https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/04/23/o-papel-da-pericia-no-caso-henry-borel/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/04/23/o-papel-da-pericia-no-caso-henry-borel/#respond Fri, 23 Apr 2021 17:20:00 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/faces-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1726 Discussão que envolve o estabelecimento a estimativa do momento da morte de Henry será um ponto crucial na investigação. O caso aponta para um provável indiciamento dos dois envolvidos e certamente ainda vai ocupar o noticiário

Cássio Thyone Almeida de Rosa*

 

No último dia 09 de abril, a mãe de Henry Borel Medeiros e o seu então namorado, o vereador da cidade do Rio de Janeiro conhecido como Dr. Jairinho, foram presos e o caso da morte do garoto, que já vinha movimentando a mídia, ganhou ainda mais repercussão. Novos detalhes surgiram e laudos foram divulgados. Agora pretendemos avançar nas análises de alguns aspectos desse quebra-cabeças, em especial no que se refere a questões de ordem pericial.

Entre as novas informações divulgadas, consta a perícia das câmeras do circuito interno do condomínio onde o fato aconteceu. A imagem obtida junto à câmera do interior do elevador que mostra o casal deixando o apartamento para levar Henry ao hospital foi importante em diversas análises. Na imagem, a mãe carrega a criança no colo, tendo o seu namorado ao lado. O laudo indica o horário de 4h09min do dia 08 de março. O documento, segundo revelaram os veículos de comunicação, afirma que as lesões foram cometidas entre as 23h30min do dia 7 e as 3h30min do dia 8, momento em que o casal diz ter encontrado o menino morto. O casal teria, portanto, aguardado 39 minutos antes de tomar a atitude de transportar o menino até um hospital.

Com o resultado dos exames de reprodução simulada – que em verdade tecnicamente acabaram não ocorrendo, já que a mãe e o padrasto simplesmente decidiram não colaborar, e, consequentemente, não apresentaram versões a serem confrontadas, princípio básico de uma reprodução simulada de fatos – a polícia optou por realizar diversos exames complementares (simulações). Ao confrontar dados dos depoimentos apresentados e checá-los in loco, os elementos passíveis de serem analisados, como por exemplo a busca por detalhes, acabaram por demonstrar o quanto é remota a possibilidade de que a criança tenha sofrido qualquer queda no interior do quarto onde estivera nos momentos que antecederam a sua morte. Dentre outros, segundo divulgado, havia no quarto móveis que incluíam uma cama, uma poltrona e uma estante, esta última aquela com a maior altura, da ordem de 1,20m.

O novo laudo apresentou ainda uma discussão que foi referenciada como “Evolução da Cronotanatognose”. Para esclarecer esse ponto, começamos pela própria definição da palavra Cronotanatognose, cuja etimologia nos remete a radicais gregos: crono (kronos) = tempo, tanato (thanatos) = morte e gnose (gnosis) = conhecimento.

Desta forma a Cronotanatognose nada mais é que o estudo (conhecimento) do tempo de morte. Fundamenta-se nos chamados fenômenos cadavéricos, os quais implantam-se após o evento morte. A análise serve para conhecermos todos os fenômenos (divididos entre imediatos, consecutivos e tardios). Constituem exemplos de fenômenos cadavéricos imediatos: a perda da consciência, a imobilidade, o relaxamento muscular, o relaxamento dos esfíncteres, a parada cardíaca, a ausência de pulso, a parada respiratória e a insensibilidade. Como exemplos de fenômenos cadavéricos consecutivos, podemos citar o resfriamento do corpo (Algidez Cadavérica); a rigidez cadavérica (Rigor Mortis); livores hipostáticos e desidratação cadavérica. Já como fenômenos cadavéricos tardios, podemos relacionar a mancha verde abdominal, a circulação póstuma de Brouardel e os demais processos que se instalam na putrefação em seus diversos estágios (fase gasosa ou colorimétrica, fase enfisematosa, fase coliquativa e fase de esqueletização).

No caso do menino Henry, a análise das imagens dele sendo carregado dentro do elevador permitiu observar indícios pela cor da pele, cor dos lábios, rigidez do corpo, detalhes nos olhos, dentre outros, que sugerem que a criança poderia já estar morta quando a imagem foi captada.

Conforme se noticiou na mídia, a certa altura, no laudo, assim teriam os perito se expressado sobre a questão das lesões encontradas na criança e a possibilidade de que elas estivessem relacionadas a uma queda: “A quantidade de lesões externas não pode ser proveniente de uma queda livre”.

Em termos periciais, a discussão que envolve o estabelecimento ou mesmo a estimativa do momento da morte de Henry será um ponto crucial. Certamente ainda surgirão novos elementos investigativos e também relativos a exames periciais. O caso aponta para um provável indiciamento dos dois envolvidos e certamente ainda vai ocupar o noticiário. Resta-nos acompanhar, com uma sensação que mescla incredulidade e indignação.

*Graduado em Geologia pela UNB, com especialização em Geologia Econômica. Perito Criminal Aposentado (PCDF). Professor da Academia de Polícia Civil do Distrito Federal, da Academia Nacional de Polícia da Polícia Federal e do Centro de Formação de Praças da Polícia Militar do Distrito Federal. Ex-Presidente e atual membro do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

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Na edição desta semana, leia também “Indicador de eficiência para avaliação e monitoramento de operações policiais no RJ” e “Patriotismo e direitos nas denúncias internacionais da violência no Brasil”.

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O aumento das agressões às mulheres em dias de partidas de futebol https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/02/11/o-aumento-das-agressoes-as-mulheres-em-dias-de-partidas-de-futebol/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/02/11/o-aumento-das-agressoes-as-mulheres-em-dias-de-partidas-de-futebol/#respond Thu, 11 Feb 2021 16:56:45 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/02/fotofutebol-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1665 Estudos apontam relação entre derrotas e aumento nas agressões e demonstram que atos não podem ser vistos como descontrole ou fruto de explosão emocional, mas antes como um dispositivo que fortalece a ideia de um gênero dominante.

Amanda Pimentel*

 

Os primeiros dias do mês de fevereiro deste ano foram marcados não apenas pela comemoração da vitória do Palmeiras na final da Copa Libertadores da América, mas também, e infelizmente, por um caso de homicídio ocorrido em razão de um desentendimento originado por causa do jogo. Um casal que acompanhava a partida em sua casa em um condomínio na Vila Mangalot, zona norte de São Paulo, iniciou uma discussão após comemorações da esposa, palmeirense, pelo título do clube, o que incomodou seu marido, torcedor do Corinthians.

Apesar de parecer uma exceção, casos de violência contra mulheres ocorridos após o término de partidas de futebol são muito mais comuns do que imaginamos. A relação entre consumo de esportes televisionados e o aumento do número de casos de violência contra a mulher começou a receber atenção do público em geral, profissionais de saúde e comunidade acadêmica, já em 1993, quando a rede de televisão NBC transmitiu um programa de combate à violência contra a mulher durante sua cobertura do Super Bowl, a final do campeonato de futebol americano, em razão do aumento de mais de 40% de casos de violência doméstica ocorridos neste dia (Holler, 1993).

Desde então, importantes pesquisas que abordam a relação entre esporte e violência começaram a ser desenvolvidas (ver: Card e Dalh, 2011; Gantz, Bradley e Wang, 2006). A maioria desses novos estudos concentrou-se em analisar os impactos das partidas de futebol no comportamento violento dos seus telespectadores, buscando entender como isto contribui com o aumento de casos de violência doméstica. Controlando as expectativas pré-jogo das torcidas, isto é, se o público esperava que o seu time ganharia ou perderia, e o tamanho da audiência das partidas, a maior parte dos autores descobriram que as perdas fortuitas de times da casa, quando era esperado que ganhassem, aumentavam os incidentes de violência contra a mulher.

Um aumento de 10% das taxas de violência doméstica foi identificado nesses casos e se concentrou, sobretudo, nos momentos mais próximos ao final das partidas. O incremento é ainda maior em disputas entre times tradicionalmente rivais ou ainda em partidas decisivas ou eliminatórias, apresentando 1/3 a mais de alargamento nas taxas de violência do que dias de grandes feriados nacionais, por exemplo. Desse modo, não são todas as partidas de futebol que contribuem para o aumento dos índices de violência doméstica, mas majoritariamente aquelas que ocorrem em finais de semana e em que uma derrota ou vitória contrariam o resultado esperado pela torcida, especialmente em jogos ocorridos dentro da casa e contra times rivais. A mensuração “ganho ou perda” adquire grande importância nesse contexto, assim como a tradição de um time e a rivalidade que ele mantém com outros.

Nas pesquisas realizadas, essas variáveis são importantes porque são capazes de produzir fortes choques emocionais nos homens, principais fãs do esporte, contribuindo assim para o aumento de ações indesejadas, como a violência perpetrada contra a própria parceira. Outrossim, a natureza violenta do esporte futebol americano, constantemente referenciada pelos canais de televisão que os transmitem, parece ter capacidade para influenciar o comportamento dos seus telespectadores.

Em razão dessa intensa associação entre homens, esporte e violência, realizada por grande parte da bibliografia especializada, muitos pesquisadores começaram também a analisar a relação entre masculinidades e perpetração de violência física, em um campo conhecido como “Men’s studies” (estudos de masculinidades). Desconstruindo as narrativas que argumentam que esse tipo de comportamento é natural, esse campo de estudos defende que o cometimento de violência perpassa necessariamente a construção social de uma identidade de gênero. Para eles, esse tipo de violência não pode ser visto como um ato descontrolado ou como mero fruto de uma explosão emocional, mas antes como um dispositivo que fortalece a ideia de um gênero dominante.

Apesar de haver um debate internacional sobre o assunto, no Brasil a relação entre futebol e violência doméstica ainda carece de informações e dados qualificados. É nesse sentido que o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em parceria com o Instituto Avon, está desenvolvendo um projeto inédito que visa compreender como essa relação ocorre, a partir da coleta e análise cruzada de dados dos registros oficiais de violência doméstica com informações sobre partidas de futebol em alguns estados brasileiros. A expectativa é que os resultados encontrados nesta pesquisa possam contribuir para um maior entendimento sobre o cenário de ocorrências de violência contra a mulher no Brasil.

 

*Mestre em Direito pela PUC-Rio e pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

 

Referências citadas no texto:

Card, David, and Gordon B. Dahl, “Family Violence and Football: The Effects of Unexpected Emotional Cues on Violent Behavior,” National Bureau of Economic Research Working Paper no. 15497, 2009.

Gantz, Walter, Samuel D. Bradley, and Zheng Wang, “Televised NFL Games, the Family, and DomesticViolence,” pp. 365–382 in Handbook of Sports and Media, ed. ArthurA.RaneyandJenningsBryant, (Mahwah, NJ: Erlbaum, 2006).

Hohler, B. Super Bowl Gaffe. The Boston Globe, p. 1, 1993, February, 2.

 

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Na edição desta semana, leia também “O legado político da Lava Jato” e “A letalidade como método de ação policial”.

 

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Violência e desmatamento caminham juntos na Amazônia https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/01/28/violencia-e-desmatamento-caminham-juntos-na-amazonia/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/01/28/violencia-e-desmatamento-caminham-juntos-na-amazonia/#respond Thu, 28 Jan 2021 14:48:20 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/fotoprincipal-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1643 Territórios desmatados têm maior taxa de assassinatos rurais por 100 mil habitantes. Mais do que nunca, as áreas de segurança pública e meio ambiente precisam se integrar. 

Sofia Reinach*

Isabela Sobral**

A discussão sobre crimes ambientais na Amazônia é urgente e vem se aprofundando nos últimos anos. As evidências apontam que a situação se agrava rapidamente e que a atenção para o assunto deve ser prioridade nacional. Ao mesmo tempo, o país assiste a um cenário alarmante nos índices de violência rural e urbana. As taxas de mortes violentas intencionais, estupros e agressões justificam o medo que a população sente ao sair de casa ou definir seus trajetos cotidianos.

Apesar de ambos os cenários trágicos serem objeto de diferentes esforços e trabalhos analíticos, o olhar para a forma como crimes ambientais e crimes violentos estão relacionados na região amazônica ainda é incipiente no país. O intuito desse texto é, portanto, demonstrar como avançam os crimes violentos nas diferentes regiões amazônicas, considerando o grau de desmatamento das áreas.

Em 2007, Celentano e Veríssimo publicaram o estudo “O Avanço da Fronteira na Amazônia: do Boom ao Colapso”, em que dividem a Amazônia em quatro zonas de cobertura: “não-florestal”, “desmatada”, “sob pressão” e “florestal”. As áreas “não florestais” são regiões cobertas por cerrados e campos, onde as principais atividades são pecuária extensiva e agricultura. As áreas “desmatadas” foram cobertas por florestas, mas já possuem mais de 70% da sua área desflorestada. As regiões “sob pressão” constituem aquelas localizadas nas novas fronteiras de ocupação e, portanto,  com maior risco de desmatamento atualmente. Por fim, as áreas “florestais” compreendem regiões mais conservadas, com apenas 5% de desflorestamento. A publicação mostra que, naquele período, havia uma maior incidência de homicídios e maior taxa de assassinatos rurais por 100 mil habitantes nas zonas “sob pressão”.

Recentemente, em conjunto com pesquisadores do Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia), em um esforço de contribuir com o trabalho da Revista Piauí num artigo sobre a Amazônia, buscamos atualizar essa informação. Para tanto, foram recalculadas as divisões das zonas de cobertura para cada ano analisado. Além disso, outros dados foram utilizados para a análise. Primeiramente, vale observar como se dá a distribuição de crimes na região da Amazônia Legal no momento mais recente. A tabela abaixo apresenta dados relacionados à violência em 2018, provenientes de diferentes fontes de dados.

Conforme é possível verificar na tabela, as zonas “sob pressão” possuem maiores taxas de violências não letais registradas pelo Sinan (Sistema de Informação de Agravos de Notificação). Tanto violência sexual, como violência física apresentam maior quantidade de notificações por 100 mil habitantes do que as outras áreas. No entanto, ao tratar de violência letal, é a zona “desmatada” que responde pela maior taxa de homicídios, seguida pela zona “sob pressão”. Considerando a conclusão do estudo de Celentano e Veríssimo (2007), houve uma mudança importante no comportamento dos índices de violência letal na zona “desmatada”. O gráfico abaixo apresenta o comportamento das taxas de homicídio nas diferentes categorias nos dois períodos.

O gráfico traz as médias das taxas de homicídio em dois períodos: 2004 a 2007 e 2015 a 2018. Ou seja, entre um conjunto de barras e o outro existe um intervalo de oito anos. É possível verificar que no primeiro período as taxas de homicídio eram significativamente maiores nas zonas “sob pressão”. No entanto, passados oito anos, a violência subiu nas áreas “não florestal”, “desmatada” e “florestal”, praticamente se igualando à taxa das zonas “sob pressão”. As áreas desmatadas apresentaram até uma média superior à taxa da zona “sob pressão”. Ou seja, é possível verificar que a violência se tornou um fenômeno mais frequente em todas as áreas amazônicas.

Apesar de todas as áreas terem visto um crescimento significativo das taxas de violência, também é digno de nota que as maiores taxas de homicídios estão em áreas que tem algum grau de desmatamento. Ou seja, apesar de essa não ser uma constatação de causalidade, pode-se afirmar que violência e desmatamento são fenômenos que caminham juntos.

O que se debate aqui, portanto, é a urgência de aprofundar os estudos e análises que relacionam crimes violentos e crimes ambientais. Existem fortes indícios de que os fenômenos possuem convergências, como apontam os dados acima. A compreensão de como a área de segurança pública pode se relacionar com a área ambiental e estas, juntas, contribuírem para a compreensão desse contexto é um desafio a ser enfrentado no país.

 

*Mestre em Administração Pública e Governo pela Fundação Getulio Vargas – SP. Graduada em Administração Pública na mesma escola. Pesquisadora do Centro de Administração Pública e Governo da Fundação Getulio Vargas e pesquisadora associada do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

**Graduada em Ciências Sociais pela USP, mestranda em Administração Pública e Governo pela Fundação Getulio Vargas e pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

 

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Na edição desta semana, leia também “A atuação da PRF nas operações do Ministério da Justiça e Segurança Pública” e “Acidentes aeronáuticos: aspectos periciais

 

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Amadores e profissionais no roubo a bancos https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/12/11/amadores-e-profissionais-no-roubo-a-bancos/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/12/11/amadores-e-profissionais-no-roubo-a-bancos/#respond Fri, 11 Dec 2020 22:42:53 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/banco-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1619 Assaltos recentes a bancos revelam a criatividade dos criminosos para levantar grandes quantias de dinheiro. Em ambos os casos, porém, a polícia demonstrou preparo para investigar e enfrentar membros das grandes quadrilhas.

 

Guaracy Mingardi*

 

Os roubos ocorridos semana passada em Criciúma (SC) e Cametá (PA) chamaram a atenção não apenas pela semelhança, mas também pelo curto espaço de tempo entre os dois. São crimes de vulto, com grandes efetivos e armamento pesado. Mas a semelhança fica por aí. Ao que tudo indica, o crime ocorrido na cidade catarinense foi mais profissional que o do Pará. Inclusive por um fato bem instigante. Apesar de aterrorizarem uma cidade, atacar a polícia, provocar uma morte e movimentar o noticiário de todo o país, os ladrões não levaram nada do banco em Cametá. Ou pelo menos foi isso que afirmou o governador do estado. Teriam errado o cofre a ser explodido.

Essa quase simultaneidade de casos mostra como esse crime está se popularizando. Só esse ano ocorreram dois em cidades médias de São Paulo. O tipo criminal, portanto, está se tornando rotina, apesar dos alvos já não serem tão rentáveis como no início. Sucessor direto do crime conhecido como Novo Cangaço, os roubos cinematográficos de transportadoras de valores tiveram início há cerca de cinco anos. Desde os primeiros, já havia um modus operandi estruturado, pronto para ser utilizado nas cidades médias e grandes, em áreas muito urbanizadas, onde as rotas de fuga são complicadas. Santos e Campinas, as duas primeiras cidades onde o novo modelo foi testado, são cidades grandes, parte de manchas urbanas de mais de um milhão de habitantes. O caso mais rumoroso foi em 2017, quando uma quadrilha brasileira subtraiu mais de R$ 11 milhões de uma transportadora de valores no Paraguai.

Nos primeiros casos, as quantias roubadas foram milionárias e pegaram a polícia e as transportadoras de valores de surpresa. Ocorreram num momento de inflexão dos roubos a banco comuns, quando as medidas de segurança teriam diminuído as chances de serem bem-sucedidos. Além das portas giratórias, alarmes e câmeras no interior e fora dos bancos, o grande empecilho eram os cofres com temporizadores, que só permitem a abertura num horário determinado de antemão. Com esse sistema, os ladrões não conseguiam obrigar o gerente a abrir o cofre, portanto tinham acesso somente ao dinheiro dos caixas, o que era um espólio pequeno, tendo em vista o risco do assalto. Ou seja, o benefício do roubo a banco tradicional não compensava o risco da prisão.

O mundo do crime é muito criativo. Com os roubos a banco entrando em desuso e as outras modalidades rendendo pouco, os mais criativos dos antigos ladrões de banco arquitetaram os megarroubos. Na verdade, o início não foi simples, exigiu a conjugação de alguns fatores. Talvez o mais importante foi que em 2006 o Primeiro Comando da Capital (PCC) ganhou o controle dos presídios e das ruas em São Paulo. E a partir daí criou uma estrutura que permitiu imiscuir-se no tráfico e aos poucos controlar boa parte dessa atividade no estado. Ao mesmo tempo a organização expandiu-se no país, arregimentando todo tipo de criminoso, ou seja, não apenas traficantes. A estrutura quase empresarial do PCC sempre visou, além do controle dos presídios, facilitar a vida dos “irmãos”, como como são chamados os membros. Inclusive está escrito em vários de seus estatutos que eles são vítimas da opressão, portanto têm direito de cometer qualquer crime para sobreviver. E nem só de tráfico vive a criminalidade.

Com o crescimento da estrutura, passaram a apoiar vários empreendimentos dos membros, em troca de uma fração do lucro. Por conta dessa atividade terceirizada, e não para proteção das “biqueiras”, compraram armamento pesado, principalmente fuzis e algumas metralhadoras .50, que são armas essenciais para os mega-assaltos. Lembrando que em seu principal mercado, São Paulo, não existe qualquer organização criminosa que possa competir com o Primeiro Comando. Portanto, não é (ou não era) necessário o uso de armamento pesado para proteger os locais de venda de drogas, as “biqueiras”. Outro ativo oferecido pela organização são os especialistas em explosivos, imprescindíveis para abrir caminho ou explodir cofres nos grandes roubos.

A junção desses três fatores – dificuldade nos roubos a banco, ladrões profissionais subutilizados e uma forte organização de apoio – resultou na criação do atual modelo. Em vez de quatro ou cinco homens, número habitual, assaltarem um banco, quarenta pessoas, bem organizadas e armadas, roubam cinquenta, cem vezes mais do que nos roubos comuns. E com dois ou três golpes desses o participante, mesmo de baixo escalão, tem dinheiro para se manter por um ano ou mais. Já os líderes ficam com capital suficiente para uma aposentadoria parcial.

A questão é que o adversário, no caso a polícia, não ficou parado nesse tempo. Se adaptou aos poucos ao novo crime e apreendeu a investigá-lo. Tanto que já começou a prender suspeitos do assalto de Criciúma. O caminho para chegar aos autores foram alguns fragmentos de impressões digitais, achados pela polícia catarinense nos carros usados na fuga. Eles foram encaminhados para São Paulo, onde a Polícia Civil conseguiu identificar alguns dos criminosos. Até agora foram presos suspeitos em ao menos três estados: São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, graças ao esforço conjunto das polícias.

O profissionalismo, portanto, não está apenas de um lado da mesa. Essa mesa, que é triangular, tem profissionais dos três lados. De um, estão os criminosos que praticam esses roubos, e de outro alguns policiais especializados o suficiente para enfrentar as grandes quadrilhas. E, no terceiro, estão os bancos, que aprenderam que não é bom deixar tanto dinheiro em um só lugar. E como são dois contra um, daqui um tempo esse crime, que chama muita atenção, passará a minguar, devido ao desbalanceamento do custo/benefício.

Os grandes ladrões, porém, não ficarão de braços cruzados nem optarão por uma vida honesta, afinal são profissionais do crime. Vão inventar uma nova modalidade que causará manchetes indignadas. E terão sucesso até que o estado, representado pelas polícias, aprenda a investigar o novo crime. E então o ciclo reiniciará.

 

* Guaracy Mingardi é analista criminal e associado ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

 

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Na edição desta semana, leia também “Criciúma e Cametá: saiba o que mudou nos roubos a bancos nas últimas décadas” e “O policial tem que ter coragem até para não aceitar ordens que violem direitos humanos”, diz Charles Ramsey”.

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Homicídios no Brasil: um desastre aéreo por dia https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/09/01/homicidios-no-brasil-um-desastre-aereo-por-dia/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/09/01/homicidios-no-brasil-um-desastre-aereo-por-dia/#respond Tue, 01 Sep 2020 21:29:15 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/09/15786460715e183a3725591_1578646071_3x2_rt-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1516 A média diária de assassinatos no país equivale, em números, às mortes ocasionadas pela queda de um avião comercial com cerca de 160 passageiros.

Por Pablo Lira*

O Atlas da Violência, publicado na última semana, revelou que em 2018 foram registrados aproximadamente 58 mil homicídios no Brasil. A média diária de assassinatos no Brasil equivale, em números, às mortes ocasionadas pela queda de um avião comercial com cerca de 160 passageiros. São seis homicídios cometidos a cada hora. Com base nesse diagnóstico inicial, o país se destaca como a nação mais violenta do mundo.

Com uma taxa de 27,8 assassinatos por 100 mil habitantes, o Brasil também ostenta as primeiras posições no triste ranking da violência. Na comparação entre os anos de 2017 e 2018, o índice nacional reduziu em -12,0%. Todavia, a taxa brasileira evidenciou aumento de 4,0% entre 2008 e 2018. Nesse período, foram mais de 628 mil pessoas assassinadas.

Do total de homicídios computados em 2018, 91,8% das pessoas mortas eram do sexo masculino. No recorte de faixa etária, 53,3% das vítimas eram jovens com idades de 15 a 29 anos. A desigualdade racial da violência é corroborada quando se constata que 75,7% das vítimas de homicídio em 2018 eram negras. Entre 2008 e 2018 ocorreu aumento de 11,5% nos assassinatos de negros. No mesmo intervalo de tempo, houve redução -12,9% das mortes dos não negros. Para cada não negro assassinado, 2,7 pessoas negras são vítimas de homicídios. Sobre o instrumento empregado para cometer as violências, cabe ressaltar que 71,1% dos assassinatos foram praticados com armas de fogo.

Em síntese, o perfil demográfico destaca que as principais vítimas são homens jovens, negros, mortos por armas de fogo. Estudos no campo da segurança pública indicam que tais características são muito semelhantes ao perfil dos agressores. A condição de uma baixa escolaridade configura outra característica comum a esses dois grupos. No conjunto de vítimas do sexo masculino, 74,3% dos indivíduos tinham alcançado no máximo 7 anos de estudo, o que equivale no melhor dos cenários ao ensino fundamental incompleto. Na porção das vítimas do sexo feminino, esse percentual foi de 66,2%.

Em relação à violência de gênero, insta salientar que 4.519 mulheres foram assassinadas em 2018, ou seja, uma mulher é morta violentamente a cada duas horas no Brasil. Com 4,3 mortes por 100 mil mulheres, o país destaca uma das taxas mais elevadas do mundo. Sobre as violências psicológica, física, tortura e outros tipos praticados contra pessoas LGBTQI+, cabe destacar que em 2018 foram registradas 9.223 notificações no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) do Ministério da Saúde. Esse número foi 19,8% superior em comparação ao valor observado no ano anterior.

O Atlas da Violência é uma das principais ferramentas que garante amplo acesso às informações e análises sobre perspectivas da segurança pública. Ele é produzido em parceria pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Se caracteriza como uma ferramenta essencial para lançar luz sobre o quadro da violência brasileira e possibilitar, por meio dos diagnósticos estabelecidos, o desenvolvimento e aprimoramento de políticas públicas de prevenção e repressão qualificada.

 

*Doutor em Geografia, Mestre em Arquitetura e Urbanismo, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), pesquisador do Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN) e professor da Universidade Vila Velha (UVV)

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Brasil, uma nação de mortos-vivos https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/08/23/brasil-uma-nacao-de-mortos-vivos/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/08/23/brasil-uma-nacao-de-mortos-vivos/#respond Sun, 23 Aug 2020 14:32:28 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/A-noite-dos-mortos-vivos-320x213.gif https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1507 Vinicius Torres Freire na Folha, hoje (23), foi perfeito em sua coluna sobre o momento em que o Brasil vive e sobre a capacidade do presidente Jair Bolsonaro em se revigorar no caos criado a partir de sua eleição. Freire afirma que diante de todas as adversidades, o presidente tem conseguido vitórias e se fortalecido. E, ao final, ele diz que, o mais provável para o país, é que “o Brasil voltará a sua rotina de violência aberrante, com uma causa mortis a mais, apenas. A indiferença ao morticínio é uma vitória da mentalidade bolsonariana”.

Peço licença a Vinicius Torres Freire para aproveitar suas figuras de linguagem, pois, a meu ver, o seu argumento é irretocável, exceto por um certo otimismo em achar que o país “voltará” à sua rotina de violência e indiferença. Pelos dados disponíveis, o Brasil nunca abandonou tal rotina e, o que ocorre agora, é que o bolsonarismo foi promovido à condição de políticas de governo. Mas a mentalidade ‘bolsonariana’ esteve e está presente entre nós faz décadas. A mão do “morto-vivo que rebrota da terra na madrugada do cemitério nevoento” está na verdade viva e se faz de morta para puxar o gatilho que continua a vitimar milhares de vítimas de homicídios e para apunhalar a democracia e a cidadania.

E isso fica ainda mais evidente quando constatamos que, mesmo em uma pandemia, os homicídios cresceram cerca de 6% no primeiro semestre de 2020, em relação ao mesmo período de 2019. E, talvez o mais significativo, é que já são nove meses de crescimento ininterrupto dos homicídios, segundo dados do Monitor da Violência recentemente divulgados. Os homicídios cresceram em 17 estados do país, incluindo São Paulo, que vinha de 20 anos de reduções sucessivas dos homicídios. Houve, em São Paulo, um aumento de 4,7% no mesmo período.

E isso sem contar as Mortes Decorrentes de Intervenção Policial, que, somente no estado, cresceram mais de 20% no primeiro semestre deste ano. A mesma coisa se repete com a violência contra a mulher, que segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública aumentou durante a Pandemia, mas já vinha de um longo ciclo de crescimento anual. Aliás, o FBSP alerta, faz 14 anos, para a falência do modelo de organização da segurança pública brasileira, e nos próximos dias deverá lançar a edição 2020 do Atlas da Violência, uma parceria com o IPEA, com dados que, mais uma vez, explicitará as recorrentes indiferença política e a naturalização da violência contra negros, mulheres, jovens, população LGBTQI+.

Indiferença que naturaliza, por sinal, o fato de 54% dos registros de estupros no Brasil serem de casos com vítimas com até 13 anos de idade. Crianças sem infância e reféns de uma cultura do estupro são criminalizadas por defensores dos bons costumes e da moral conservadora quando buscam seus direitos, como a menina que foi autorizada a fazer um aborto legal no Espírito Santo, sem que, no entanto, lembremos que a violência está presente no nosso cotidiano como uma das nossas marcas históricas mais perversas.

Violência que aceita a brutalidade policial nas periferias, em geral contra pardos e pretos, quase todos pobres, como na sequência de casos envolvendo a Polícia Militar de São Paulo, que a massificação das câmeras de celulares permitiu que chegasse ao conhecimento da opinião pública mas que não é novidade nenhuma nas “quebradas” paulistanas, nas favelas cariocas e/ou nas várias denominações dos bairros pobres das cidades brasileiras. Violência tão naturalizada que nos faz indiferentes ao fato dos jovens negros terem 2,5 vezes mais chances de serem assassinados e, em uma expressão carioca, ao fim e ao cabo, terem como horizonte de vida a convivência cotidiana com o temor de serem presos ou mortos em operações policiais (operações que, por sinal, colocam os próprios policiais em risco e cujos comandantes, quando questionadas, se eximem de responsabilidade e deixam o policial da ponta com o ônus exclusivo de justificar a sua conduta individual).

Violência que dizima indígenas em nome do combate ao tráfico de drogas ou que é perpetrada na defesa de um modelo de agronegócio predador, que desconsidera inclusive os avanços tecnológicos que um segmento mais moderno e consciente desenvolveu para o uso social, econômica e ambientalmente responsável de terras; incentiva a desregulação e desmonta a já precária capacidade fiscalização ambiental das instituições públicas. O caráter estratégico da Amazônia vira sinônimo de paranoia e não de planejamento responsável e análise geopolítica e ambiental de riscos efetiva, sem cabrestos ideológicos.

Violência que produz situações bizarras como mais de 30 anos de domínio cruel de territórios com milhões de brasileiros e brasileiras por facções de base prisional ou de milícias e, ao mesmo tempo, petições do Governo do Rio de Janeiro e do Ministério da Justiça e Segurança Pública contra a proibição de operações policiais em comunidades do Rio durante a pandemia que se utilizam de argumentos que beiram o surrealismo, na medida em que são tão exatos para dimensionar ameaças que justificariam tais operações como vagos para explicar as razões pelas quais outros padrões de policiamento, menos violentos e baseados na inteligência, não são adotados.

Inteligência que, nos escaninhos do poder, deu guarida à produção do dossiê contra ex-secretários e policiais antifascistas pela SEOPI (Secretaria de Operações Integradas) e que foi considerada irregular pelo STF, enquanto não há conhecimento acumulado para se compreender as causas dos homicídios e que faz com que, eternamente, fiquemos em uma disputa narrativa entre aqueles que acreditam no peso do crime organizado e os que defendem que as tendências criminais são resultado ou de políticas públicas ou de macrocausas econômicas e demográficas.

Indiferença que torna a violência cotidiana e já visível para milhões de brasileiros em algo intangível e invisível às instituições, que se preocupam mais com seus interesses corporativistas do que com a mudança do cenário de crime e violência – isso para não dizer no liberou geral das armas de fogo em curso no país. Indiferença que se fortalece nas tentações autoritárias de uma sociedade acostumada com a ideia de inimigos internos e cujas preferências antidemocráticas estavam dadas muito antes do Governo Bolsonaro.

O bolsonarismo do presente não é algo exclusivo à figura de Jair Bolsonaro. É, infelizmente, um modo de ser e de pensar que tem a adesão de milhões de pessoas e que nos faz refletir sobre quanto anos serão necessários, na melhor das hipóteses, para que a cidadania e a vida sejam valores que refundariam uma nação tão perversamente dócil com a violência e o caos. Os mortos-vivos seríamos nós e não a mão descrita de Vinicius Torres Freire.

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Por que o Brasil caiu 3 posições no Índice Global de Paz? https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/08/05/por-que-o-brasil-caiu-3-posicoes-no-indice-global-de-paz/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/08/05/por-que-o-brasil-caiu-3-posicoes-no-indice-global-de-paz/#respond Wed, 05 Aug 2020 14:31:38 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/Armas1-320x213.gif https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1499 Dos 163 países ranqueados, o Brasil está na posição 126, tendo caído três posições em relação ao ano anterior.

Por Carolina Ricardo*

Na semana passada foi lançado no Brasil o Global Peace Index (Índice Global de Paz – IGP) de 2020, que compara 163 países em relação a nível de paz encontrado em cada um deles, elaborado pelo Institute of Economics and Peace (Instituto de Economia e Paz), com sede em Sidney, na Austrália. O IGP é uma medida interessante, sendo um indicador complexo que articula três dimensões: 1) Conflitos internos e internacionais em curso no país; 2) Segurança social e pública; e 3) Militarização. Seu objetivo é promover um entendimento mais compreensivo do nível de paz encontrado nos países, sendo um esforço para categorizar a paz para além da presença ou ausência de guerras nos países.

A primeira dimensão inclui indicadores como quantidade e duração de conflitos internos, número de pessoas mortas em conflitos externos e participação do país nesses mesmos conflitos internacionais. Já a segunda, mais ampla e mais complexa, envolve indicadores tais como números de refugiados, escala de terror político (práticas autoritárias), nível dos crimes violentos, taxa de homicídios por 100 mil habitantes, probabilidade de manifestações públicas violentas, população prisional por 100 mil habitantes e policiais por 100 mil habitantes, acesso individual a armas de fogo. E, por fim, a terceira dimensão envolve indicadores como percentual dos gastos militares em relação ao PIB, total de militares por 100 mil habitantes, volumes de armas exportadas e importadas por 100 mil habitantes. É uma metodologia complexa e que se encontra muito bem detalhada no relatório  , assim como a descrição das fontes para cada indicador que compõe o índice. De toda forma, é uma forma ousada e inovadora de avaliar a paz.

O balanço geral do IGP 2020 é de que o nível de paz global sofreu uma deterioração em relação ao ano anterior, de 0,34%. Sendo a nona queda dos últimos 12 anos. Os aspectos que contribuíram para essa deterioração em nível global foram o aumento do terror político, aumento de refugiados e da intensidade de conflito internos. Dos 163 países ranqueados, o Brasil está na posição 126, tendo caído três posições em relação ao ano anterior. Na dimensão conflitos em curso, a posição do Brasil é a mais positiva entre as três, ocupando a 88ª posição. Já na dimensão segurança, o Brasil apresenta o pior resultado, estando em 145º e na dimensão militarização, em 120º.

O que explica a queda brusca na dimensão segurança, é a piora no indicador de crimes violentos, homicídios, terrorismo político (práticas autoritárias) e acesso às armas individuais. Ainda que os homicídios tenham caído entre 2018 e 2019, nossos números absolutos desse crime ainda são inaceitáveis. Segundo o relatório sobre homicídios do UNODC publicado em 2019, o Brasil tem a segunda maior taxa de homicídios por 100 mil habitantes da América do Sul, só perdendo para a Venezuela.

Em relação ao indicador acesso às armas individuais, o IGP cria um ranking que categoriza os níveis de acesso às armas de fogo. Dadas às medidas de flexibilização do acesso às armas implementadas desde janeiro de 2019 , com cerca de 10 decretos e um sem número de portarias editadas nesse sentido, que já possibilitaram a entrada de cerca de 140 mil novas armas de fogo em circulação só no primeiro semestre de 2020 e a venda de 2 mil munições por hora no mês de maio, fica claro porque esse indicador ajudar a jogar o Brasil para baixo no IGP

Para revertemos esse quadro é imperativo fortalecer a política de controle de armas de fogo, priorizar a prevenção e o esclarecimento de homicídios, enfrentar com inteligência e planejamento os outros crimes violentos e, sobretudo, enfrentar o terrorismo político, por meio da defesa incessante das práticas democráticas e de respeito ao rule of law.

*Advogada e socióloga. Diretora Executiva do Instituto Sou da Paz

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30 anos do ECA, Covid-19 e o Sistema Socioeducativo https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/07/15/30-anos-do-eca-covid-19-e-o-sistema-socioeducativo/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/07/15/30-anos-do-eca-covid-19-e-o-sistema-socioeducativo/#respond Wed, 15 Jul 2020 19:10:14 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/07/ECA-Gajop.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1465 Nesta semana, na última segunda, 13, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completou 30 anos. E esta marca foi alcançada bem no meio da maior crise sanitária e institucional em muitos anos.

Com Ana Claudia CifaliMariana Chies Santos*

O ECA é um marco histórico construído a várias mãos, com intensa participação da sociedade civil, instituições estatais e das próprias crianças e adolescentes. Com ele, passamos a contar com uma legislação própria que reconhece esse público como sujeitos de direito, demandando medidas em respeito à sua condição peculiar de desenvolvimento. Se, por um lado, temos que comemorar a edição desse marco legal de proteção às crianças e aos adolescentes, por outro ainda temos muito trabalho para a efetivação dos direitos dessa parcela da população brasileira.

O Altas da Violência dá conta de que 51,8% dos óbitos de adolescentes e jovens entre 15 e 19 anos se deu por homicídio, em sua grande maioria, jovens pretos e pardos, moradores de comunidades vulneráveis e com pouca escolaridade[1]. Esses dados têm uma relação direta com o tráfico de drogas e as “guerras” que se dão tanto no enfrentamento com a polícia como entre os próprios grupos criminais. Ainda nos atentando aos dados, é importante ressaltar que São Paulo tem reduzido a taxa de homicídios da população em geral, principalmente se olharmos para os dados entre 2008 e 2017.

Contudo, nesse mesmo período, a taxa de homicídios de adolescentes de 15 a 19 anos oscilou de 19,1 para 19,6, ou seja, significa dizer que mais de 6.800 adolescentes entre 15 e 19 anos foram vítimas de homicídios entre 2008 a 2017. E, apenas no ano de 2017, 623 adolescentes e jovens de 15 a 19 anos foram assassinados no estado de São Paulo. Mas esse número não é distribuído de forma igualitária: o risco de ser assassinado aumenta entre os adolescentes pretos e pardos. A taxa de homicídios de adolescentes negros era de 23,5 mortes, enquanto a taxa de homicídios de adolescentes brancos era de 13,4 mortes por 100 mil. Isso significa que a probabilidade de um adolescente negro ser vítima de homicídio era 75% maior do que a de um adolescente branco no ano de 2017.

Ao que se refere à pandemia causada pelo vírus SARS-COV-2, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou documento recomendado aos juízes e juízas e aos tribunais de justiça que se atentassem para o que a doença poderia causar nos sistemas de privação de liberdade. A Recomendação nº 62 do CNJ, publicada em março deste ano, foi uma medida importante para que os atores do sistema de justiça abrissem os olhos para a gravidade do impacto que o coronavírus poderia trazer às pessoas privadas de liberdade e aos/às servidores/as que gestionam o sistema privativo de liberdade no Brasil.

No âmbito do sistema socioeducativo, as atividades socioeducativas, entre elas a escolarização, foram suspensas, esvaziando sobremaneira o conteúdo pedagógico que deve permear o cumprimento das medidas socioeducativas. As visitas foram suspensas, assim como as fiscalizações dos órgãos externos, reduzindo-se o controle social sobre o que acontece no interior das unidades de internação. Elevam-se o número de óbitos e contágios, especialmente entre profissionais do sistema socioeducativo, motivo pelo qual é fundamental que sejam tomadas medidas para conter o avanço do contágio no interior das unidades de atendimento, inclusive adotando-se medidas para reduzir a superlotação das unidades de atendimento, como já havia decidido em sede de liminar o Ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, no âmbito do HC nº 143.988.

Todavia, poucas medidas concretas foram adotadas de maneira sistemática por todos os estados da federação, e isso se comprova se olharmos para os dados disponibilizados pelo próprio CNJ. Os dados apontam que, até 06 de julho, foram registrados 1.815 casos confirmados de COVID-19 no Sistema Socioeducativo: 437 adolescentes e 1.378 servidores/as. Em 30 dias, houve um aumento de 139,1% dos casos. Foram confirmados, ainda, 14 óbitos de profissionais que atuavam no sistema.

No dia 09 de julho de 2020, nove Deputados Federais de diferentes partidos  (Alexandre Padilha – PT/SP; Carmen Zanotto – CIDADANIA/SC; Eduardo Barbosa – PSDB/MG; Leandre – PV/PR; Marcelo Freixo – PSOL/RJ; Tabata Amaral – PDT/SP; Valmir Assunção – PT/BA; Fábio Trad – PSD/MS; João H. Campos – PSB/PE), apresentaram o Projeto de Lei 3.668/2020, que regulamenta a manutenção do conjunto de princípios que envolvem o Sistema Socioeducativo durante o período da grave crise sanitária causada pela Covid-19.

Entre as medidas para fazer frente a esses problemas, estão a) a criação de Planos Emergenciais e a adoção de medidas de higiene; b) a reavaliação de medidas de internação (que, geralmente, ocorre de 6 em 6 meses) de jovens vulneráveis ao contágio e aqueles a quem se atribua atos infracionais cometidos sem violência ou grave ameaça, com a finalidade de reduzir-se a superlotação; c) a suspensão de medidas em meio aberto que demandem deslocamentos, contrários ao distanciamento social, mas garantindo a manutenção do vínculo entre técnicos e adolescentes por outros meios de comunicação; d) a adoção de Centrais da Vagas para regular a entrada e saída de adolescentes, como forma de combate à superlotação; e) a reorganização das atividades socioeducativas, especialmente as de educação; f) a manutenção das fiscalizações externas, sobretudo no caso de denúncias de violação de direitos.

Nesse contexto, o Projeto de Lei 3668/2020 é de extrema relevância ao indicar ações de contingência e medidas de saúde preventivas a serem adotadas no Sistema Socioeducativo para que o vírus não se propague e atinja ainda mais adolescentes, jovens e trabalhadores, considerando-se, ainda, que é papel do Estado zelar pela vida e integridade física de tais pessoas. Ademais, importante que sejam pensadas medidas relativas ao retorno das atividades educativas, tendo em vista os objetivos das próprias medidas socioeducativas, as quais, sem o conteúdo pedagógico, transformam-se em puras e simples medidas privativas de liberdade. E não é isso que queremos para o futuro do Brasil.

Nesse sentido, também é urgente o desenvolvimento de políticas públicas, especialmente nos territórios de maior vulnerabilidade, que previnam a evasão escolar e o envolvimento da juventude com o tráfico de drogas, com destinação orçamentária privilegiada para garantir os direitos dessa parcela da população, conforme preconiza a regra da prioridade absoluta prevista no artigo 227 da Constituição brasileira, a base normativa para o desenvolvimento do ECA.

[1] IPEA; FBSP. Atlas da Violência 2019. Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/190605_atlas_da_violencia_2019.pdf>.

*Ana Claudia Cifali, Doutora em Ciências Criminais pela PUCRS, é Advogada do Programa Prioridade Absoluta do Instituto Alana;

Mariana Chies Santos, pesquidadora de pós-doutorado do NEV-USP e Coordenadora do Departamento de Infância e Juventude do IBCCRIM

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Em meio à Covid-19, como ir além do registro online de violência doméstica https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/05/01/em-meio-a-covid-19-como-ir-alem-do-registro-online-de-violencia-domestica/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/05/01/em-meio-a-covid-19-como-ir-alem-do-registro-online-de-violencia-domestica/#respond Fri, 01 May 2020 22:13:42 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/05/Sebastião-Moreira.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1419 Texto de autoria de Ludmila Ribeiro e Valéria Oliveira*

“Para diminuir as chances da vitimização feminina em âmbito doméstico e o agravamento da violência contra a mulher, os registros on-line devem vir acompanhados da concessão de medidas protetivas de urgência e de estratégias de fiscalização do cumprimento das condicionalidades”

Dizem que no Brasil o ano só começa após o carnaval. Passadas as festividades que varrem o país de norte a sul, é hora de se concentrar no trabalho. Não em 2020, quando fomos tomados pela pandemia de Covid-19. Alguns foram levados ao home office e outros tantos ao desemprego. Fato é que fomos obrigados a passar mais tempo dentro de casa, o que trouxe consequências exponenciais para as mulheres, tradicionalmente representadas como “as donas do lar”.

Como as atividades de cuidado – com as pessoas e com a própria casa – ainda são vistas como tarefas femininas, a pandemia de coronavírus contribuiu para exacerbar as desigualdades de gênero. O problema é que, além da sobrecarga de trabalho, para algumas mulheres, o Covid-19 dá novas cores à violência a que elas estão expostas no lar. Interessa-nos, então, entender se os governos atentaram para o risco de que a mortalidade entre as mulheres na pandemia pode não se dar pela Covid-19, mas por elas estarem “dormindo com o inimigo”.

Como medida relacionada ao coronavírus, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos criou um aplicativo para denúncias de violações de direitos humanos, entre as quais se incluem a violência doméstica. Apesar de disponível apenas para o sistema Android, a promessa é “trazer para o mundo digital os serviços do Disque 100 e do Ligue 180”. Na mesma direção, boa parte das Polícias Civis lançou números de Whatsapp ou aplicativos para o registro on-line de crimes, o que inclui também os casos de violência contra a mulher. Acontece que o registro é só o primeiro passo para quem decide buscar ajuda.

Como indicam pesquisas já realizadas sobre o tema,[1] a efetividade do acionamento da polícia está relacionada à determinação de medidas protetivas de urgência, que passaram a compor o ordenamento jurídico brasileiro com a Lei Maria da Penha em 2006. Elas, contudo, não são concedidas automaticamente, cabendo ao juiz analisar a sua pertinência, escolher as mais adequadas e definir seu tempo de duração. Aí está o primeiro gargalo. Muitas vezes os magistrados evitam a aplicação dessas medidas por achar que o problema é de menor importância, não cabendo à Justiça “meter a colher em briga de marido e mulher”.

Assim, mesmo antes das medidas de distanciamento social decorrentes da Covid-19, era possível identificar situações em que a vítima, após o registro da ocorrência e recebimento da medida protetiva, impossibilitada material ou emocionalmente de cumprir as orientações legais de afastamento, permanecia no domicílio ou em locais de conhecimento do agressor. Basta imaginar o quanto essa situação se agrava quando as possibilidades de mudança de endereço são mais limitadas pela crise econômica decorrente do coronavírus.

Em tempos de “normalidade”, as mulheres já sublinhavam que o sucesso das medidas protetivas dependia de outros mecanismos, como a visita das chamadas “patrulhas Maria da Penha”, que são desenvolvidas pelas Guardas Municipais e Polícias Militares em todo o país. Nas visitas, profissionais de segurança bem treinados e “da área de gênero” conversam com os agressores sobre igualdade de direitos e necessidade de respeito às mulheres, especialmente, em âmbito doméstico. A ação é bem avaliada pelas mulheres porque esses guardas e policiais sabem “onde as violências acontecem”, efetivamente, “tomam providências” para evitar novas agressões e, especialmente, o feminicídio.

Essa história é para dizer que somente os registros on-line de violência doméstica tendem a ser inócuos para prevenir os crimes contra as mulheres em âmbito doméstico durante a pandemia. Talvez ajudem na contabilidade dos efeitos da Covid-19 na sociabilidade familiar, como também indicam os dados extraídos das redes sociais, que apontam para aumento da incidência de brigas e agressões em casa e que nem sempre chegam ao conhecimento da polícia.[2]

Para diminuir as chances da vitimização feminina em âmbito doméstico e o agravamento da violência contra a mulher, os registros on-line devem vir acompanhados da concessão de medidas protetivas de urgência e de estratégias de fiscalização do cumprimento das condicionalidades. Para tanto, há que se ampliar o escopo de medidas e revigorar algumas estratégias, por exemplo, como as mobilizadas pelas patrulhas Maria da Penha, com profissionais com treinamento e perfil adequados para a abordagem que esse tipo de situação demanda. Afinal, ela envolve o medo e o constrangimento da mulher, exigindo a sensibilidade de quem a escuta do outro lado, o que aponta para uma outra questão. Num contexto de agravamento da pandemia de coronavírus, é preciso garantir Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) adequados aos agentes de segurança pública que realizam as visitas. Ou seja, é indispensável pensar o problema holisticamente.

Consideramos que atender aos casos de violência doméstica contra a mulher é papel do estado, por meio da articulação entre os seus serviços de segurança pública, justiça, saúde, assistência social e/ou defesa de direitos humanos. Para tanto, faz-se necessário providenciar, no mínimo: 1) vagas em serviços temporários de acolhimento à vítima, seus filhos e outros familiares também ameaçados;[3] 2) acesso a programas de transferência de renda como o Bolsa Família e mesmo o Benefício Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda; 3) atendimento em serviços de apoio e acompanhamento psicológico, e 4) ampliação dos canais de comunicação com a Defensoria Pública e o Ministério Público.

Reconhecemos que tais medidas são extremamente desafiadoras para o poder público, já que as instituições envolvidas sofrem com alterações significativas decorrentes da própria pandemia. Porém, o planejamento de uma política consistente de apoio às vítimas e de prevenção da violência doméstica em um cenário como o atual implica ter no horizonte essas e outras ações mais concretas. Caso contrário, os aplicativos de registro on-line serão mais um investimento público que não gerará os resultados esperados, fazendo com que, ao final da quarentena, tenhamos um crescimento de vítimas fatais do distanciamento social. Não como decorrência da COVID-19, mas da vivência da mulher com o seu maior algoz: um membro de sua própria família.

 

Ludmila Ribeiro

Professora Associada do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (DSO/FAFICH) e Pesquisadora do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (CRISP) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

Valéria Cristina de Oliveira

Professora Ajunta do Departamento de Ciências Aplicadas à Educação da Faculdade de Educação (DECAE/FaE), Pesquisadora do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (CRISP) e do Núcleo de Pesquisa em Desigualdades Escolares (NUPEDE), todos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

[1] Azevedo, R. G., & de Vasconcellos, F. B. (2012). A Lei Maria da Penha e a administração judicial de conflitos de gênero: Inovação ou reforço do modelo penal tradicional?. Dilemas-Revista de Estudos de Conflito e Controle Social5(4), 549-568.

[2] Em nota técnica publicada em 20 de abril de 2020, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) aponta o crescimento de menções a brigas entre casais reportadas por vizinhos no Twitter face à evolução menos acelerada e até negativa dos registros de ocorrências e de medidas protetivas de urgência concedidas no mesmo período. FBSP. (2020). Violência doméstica durante a pandemia de COVID-19. São Paulo. Disponível em: http://forumseguranca.org.br/publicacoes_posts/violencia-domestica-durante-pandemia-de-covid-19/.

[3] Como em projeto realizado em países como a França, a Deputada Sâmia Bonfim (PSOL-SP) e a Defensoria Pública do Estado de São Paulo apresentaram proposta emergencial para prover hospedagem a mulheres em situação de violência doméstica. Disponível em:

https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/03/30/franca-colocara-vitimas-de-violencia-domestica-em-hoteis-apos-salto-em-numeros-de-casos.ghtml

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