Faces da Violência https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br O que está por trás dos números da segurança pública Tue, 23 Nov 2021 18:56:47 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Os problemas dos protocolos de abordagem policial https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/06/09/os-problemas-dos-protocolos-de-abordagem-policial/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/06/09/os-problemas-dos-protocolos-de-abordagem-policial/#respond Wed, 09 Jun 2021 13:54:43 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/policia_militar_sp-min-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1787 O detalhe da cena rotineira é o que a torna “natural” ou uma cena “estranha” no Brasil: ser um jovem negro ou um jovem branco.

Gilvan Gomes da Silva*

No dia 28 de maio uma abordagem policial ganhou destaque nas redes sociais e nas manchetes das grandes mídias televisivas e digitais. Em um parque na Cidade Ocidental, em Goiás, um ciclista jovem Youtuber praticava manobras e filmava. Enquanto executava a performance, uma viatura de polícia parou próximo ao local da filmagem e começou uma sequência evolutiva de falas estressantes que pode ser resumida entre ordens para a realização da abordagem, revista e questionamentos do porquê do procedimento. 

A situação evoluiu para falas mais tensas e arma apontada para o ciclista e terminou com o jovem ciclista algemado, mesmo tendo cedido às ordens sem esboçar reação, a não ser o seu questionamento. O detalhe da cena rotineira é o que a torna “natural” ou uma cena “estranha” no Brasil: ser um jovem negro ou um jovem branco. Nas imagens divulgadas, o policial fala energicamente que a ordem é legal e que este é o procedimento. Assim, comecemos pela afirmação da legalidade e dos protocolos policiais quanto à abordagem e revista pessoal. A busca pessoal, a conhecida revista, segundo o Artigo 244 do CPP, é legal quando em flagrante ou com fundada suspeita, isso é, com indícios de crimes. A questão central torna-se o motivo da abordagem com sequência de revista com arma apontada. 

Várias pesquisas realizadas no Brasil já debateram a seletividade durante a abordagem e revistas pessoais. Após o edificante e inspirador trabalho de Silvia Ramos ao analisar as abordagens da PMERJ, outros trabalhos acadêmicos encontraram resultados semelhantes em diferentes regiões do país e em diferentes momentos. A pesquisa realizada em 2009, conduzida pelo Núcleo de estudos sobre Violência e Segurança da Universidade de Brasília, já apontava, entre outros fatores, para questões raciais e territoriais, assim como disciplina do corpo, das ações e das situações eram critérios para a seleção utilizados por policiais da PMDF. 

Em 2014 e em 2019, em várias pesquisas coordenadas pela professora Jacqueline Sinhoretto envolvendo acadêmicos da UFF, UFSCar, da Fundação João Pinheiro em Minas Gerais e da UnB, apontavam para a racialização das relações sociais também se expressa no campo da segurança pública, e, por consequência, nas abordagens policiais. As pesquisas de 2019 constataram que em Minas Gerais, por exemplo, pessoas negras têm 3 vezes mais chance de serem presas que pessoas brancas e 4 vezes mais chance de serem vítima da letalidade policial. Essa taxa de letalidade varia de 3 a 7 vezes em São Paulo. Os dados gerais da pesquisa apontam que há uma visão do potencial criminoso sendo um jovem, negro e pobre.

Todavia, estas diversas situações observadas e analisadas nas pesquisas, em diversas partes do Brasil nas últimas décadas demonstram que o campo de Segurança Pública segue a mesma lógica provocada pela desigualdade estrutural na sociedade brasileiras, pois como já destacava Arthur Trindade Costa, a análise do comportamento policial não pode ser dissociada da análise das estruturas políticas, econômicas, e sociais da sociedade. Entretanto, além das características desiguais desses poderes estruturais, há uma construção jurídica cultural racializada que ontologicamente constitui a formação do campo de controle formal no Brasil e, por consequência, das polícias. Um breve recorte histórico demonstra como que há interligação na lógica seletiva segregadora dos agentes de segurança pública era apoiada em normas que se dissiparam nas práticas cotidianas, saindo do papel e ficando nos atos. 

Como destaca Maíra Zapater sobre a herança legal e sobre as cicatrizes jurídicas, a criminalização de comportamentos de forma seletiva está presente em vários artigos do Código Criminal do Império de 1890, no Decreto nº 847, que regulamentava ações de cunho moral, continuou no Decreto-Lei nº 3.688/41 que traz em seu artigo 59 que “entregar-se habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita [gripo meu]” seria passível de prisão. O decreto de dois anos depois da proibição legal da escravidão regulamentava ações de pessoas que não ocupam mais o trabalho nas lavouras e nas áreas urbanas, pois havia uma política de embranquecimento do país em curso com estímulo à imigração de europeus do final do Século XIX e início do Século XX. A mendicância também foi tipificada como ato ilegal, revogado somente em 2009. Da mesma forma que jogar Capoeira e Condutas de embriaguez foram tipificadas como ato passíveis de prisão. Flanar pela cidade, divertir-se ou reunir-se para rodas de samba também eram proibidos, pois seriam configurados como prova de vadiagem, como lembra Lira Neto no livro História do Samba. É este diapasão das condições de subsistência e de moralidade que orientava a permissão de quais grupos poderiam participar das atividades da cidade. Os atos tipificados como ilegais eram atos nitidamente das pessoas negras, sejam pelas suas características sócio culturais, sejam pelas condições econômicas, políticas e jurídicas.

Assim, tanto as ações de controle pelos agentes do Estado de 1890 quanto a de 28 de maio de 2021, assim como diversas outras analisadas nas duas décadas do século 21 tem um fio condutor que orienta e que outrora estavam legalmente fundamentadas e que hoje, mesmo na ilegalidade, extrapola os Protocolos Operacionais Padrões porque as estruturas sociais são tão semelhantes quanto a do Brasil Império, com as mesmas permissões e proibições aos mesmos grupos de terem direito ou não à cidade, à cidadania e, em muitos casos, à vida.

 

* 2º Sargento da Polícia Militar do Distrito Federal, doutor em Sociologia, professor do Instituto Superior de Ciências Policiais (PMDF) e pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança (UnB).

 

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Na mesma edição, leia também “O Enfrentamento ao Tráfico de Armas como Política Pública” e “A reincidência criminal“.

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Rio é um dos maiores desafios de Segurança Pública no mundo https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/05/10/rio-maiores-desafios-seguranca-publica-mundo/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/05/10/rio-maiores-desafios-seguranca-publica-mundo/#respond Mon, 10 May 2021 22:47:54 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/policiais-foto-320x213.jpeg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1764 O controle do uso da força policial é preocupação permanente para democracias liberais consolidadas; reforma da polícia ajudou muitas das grandes cidades norte-americanas a atingirem os menores patamares de criminalidade de toda a sua história 

Alberto Kopittke*

 

Com uma grande união de forças, liderança política e investimento financeiro seria plenamente possível construir um plano capaz de reduzir a violência no Rio de Janeiro. Sim, o Rio de Janeiro é um dos maiores desafios para a Segurança Pública do mundo, mas já existe conhecimento suficiente acumulado sobre o que funciona para reduzir a violência para construir um grande e exitoso plano na cidade. Não se acabaria com o tráfico de drogas, assim como ele não acabou em Nova York, nem Medellín, mas seria possível retirar das organizações criminosas o controle de comunidades, armamento de grande porte e controlar homicídios e roubos.

Um plano de longo prazo, suprapartidário, que envolvesse um esforço de união nacional, com ações bem planejadas e coordenadas que viriam desde a reformulação do sistema prisional, um plano de reurbanização, a implementação de metodologias estruturadas de prevenção à violência e programas sociais, tecnologia de ponta e um significativo fortalecimento da área de inteligência das forças de segurança, sem dúvida conseguiria reduzir a violência de forma sustentável e permanente na cidade.

Tarefa mais difícil e demorada, no entanto, é reduzir a violência e a corrupção policiais. A chacina de Jacarezinho veio se somar a um macabro e longo histórico de episódios brutais provocados por algumas forças de segurança pública do país, totalmente fora de qualquer parâmetro razoável, compreensível e aceitável. Além das dezenas de jovens, a cada nova chacina morre também nossa democracia.

Nos EUA, o chamado “Primeiro Grande Despertar” contra a violência policial chacoalhou o país entre os anos 1960 e 1970, de forma muito mais forte do que nos episódios recentes das mortes de David Brown e George Floyd. A comunidade negra daquele país se organizou e passou a não aceitar mais a forma como era tratada pela polícia, resultando em grandes manifestações e muitos episódios de confrontos violentos que paralisaram as grandes cidades, às vezes por semanas, e em muitos casos resultaram em dezenas de mortes.

Como consequência daquelas mobilizações, prefeitos progressistas, chefes de polícia reformistas e a Suprema Corte realizaram reformas profundas sobre o controle do uso da força. Essas reformas incluíram a demissão de dezenas de policiais com histórico de violência, a redução da discricionariedade dos policiais, o fortalecimento dos mecanismos de controle interno, o aumento da transparência e a imposição de indenizações milionárias pela justiça como consequência de episódios de violência. Como resultado, entre 1970 e 1985, o número de mortes provocadas pela polícia caiu 51%, sendo que essa queda foi de 72% entre jovens negros entre 15 a 34 anos e a diferença entre o número de negros e brancos mortos pela polícia caiu de 7,5 vezes para 3. O problema é historicamente tão profundo que mais de mil pessoas ainda nos dias de hoje são mortas pela polícia, muitas vezes com brutalidade racista.

Vinte anos depois das grandes reformas internas, fato é que uma nova geração de policiais, formada dentro de uma nova mentalidade, liderou experiências significativas de redução da criminalidade e as polícias saíram fortalecidas e modernizadas desse processo, além de mais efetivas para prevenirem a violência. Essas novas polícias representaram o avanço decisivo para muitas das grandes cidades norte-americanas atingirem os menores patamares de criminalidade de toda a sua história.

Já no Brasil, nem mesmo as 45 mil mortes provocadas por intervenção policial na última década são capazes de mobilizar forças para dialogar sobre mudanças necessárias nas corporações. Ainda que ela seja agora exaltada como virtude, a violência policial não começou no atual governo. Durante os sete governos democráticos que o país teve desde a Constituição de 1988, com importantes exceções, o tema não foi tratado com a prioridade devida, o que agora vemos que cobra um alto preço para a democracia no país. E mesmo depois de tudo o que vivemos nos últimos anos, ainda não é possível vislumbrar que algum novo governante democrático que suba a rampa do Palácio do Planalto apresentará uma agenda de grande impacto nessa área.

O Governo Federal precisa assumir um novo papel na Segurança Pública. Instituições estaduais não conseguem investigar e promover mudanças de fato em situações tão graves como a do Rio de Janeiro; assim como a Inspetoria do Exército, responsável pelo controle das polícias militares, e o Ministério Público, responsável pelo controle das polícias civis, foram incapazes de promover avanços substanciais nesse tema desde a Constituição de 1988.

Um sistema federal de controle das polícias, com uma nova instituição federal especializada, poderia ter um papel importante. Nos EUA a Divisão de Direitos Civis do Departamento de Justiça tem poderes para realizar investigações e processar policiais e até mesmo de realizar intervenções sobre as polícias, com o afastamento de toda a sua direção e a realização de remodelações internas profundas, o que já foi feito 17 vezes desde 1994.

A Inglaterra, que tem índices mínimos de criminalidade e de violência policial, possui um órgão federal chamado Escritório Independente sobre Conduta Policial. Sempre que uma das 43 ouvidorias estaduais recebe uma denúncia de um fato grave cometido por algum policial ele deve obrigatoriamente repassar essa denúncia para o Escritório Nacional, que inicialmente monitora as providências adotadas em nível estadual e quando necessário abre uma investigação independente sobre o caso. O órgão possui 890 servidores e um orçamento de 73 milhões de libras, o equivalente a R$ 335 milhões. As investigações podem resultar em denúncias ao Ministério Público Federal ou em recomendações para modificações em protocolos operacionais, que têm poder vinculativo e devem obrigatoriamente ser adotadas pelas polícias.

Como se vê por esses exemplos, o tema é uma preocupação permanente das democracias liberais consolidadas e não de regimes autoritários de esquerda ou de direita.

No Brasil, algumas medidas que não exigiriam grande volume de recursos, mas sim a disposição política de lideranças democráticas, poderiam gerar grande impacto. Uma pesquisa anual de vitimização e avaliação das polícias, como é feita em muitos países desenvolvidos, poderia orientar o repasse de recursos federais e determinar a abertura de investigações especiais naqueles locais em que muitas pessoas afirmarem não confiar na polícia ou serem vítimas de violência policial. Relatórios anuais de letalidade policial, uso de armas de fogo e de todas as formas de uso da força poderiam mostrar as unidades onde o problema da violência se concentra. Sistemas de alerta precoce poderiam auxiliar a expulsar novos policiais de perfil violento.

Câmeras de corpo ligadas automaticamente poderiam ajudar a trazer informações importantes sobre as ocorrências, assim como a obrigatoriedade de acompanhamento por diferentes instituições de controle das operações de risco em salas de comando e controle especiais, com o registro formal das ordens de toda cadeia de comando. A restrição de determinados tipos de treinamento e armas a unidades especiais, empregadas a partir de um protocolo nacional e forças tarefas entre o poder judiciário, ministério público e polícia federal poderiam combater grupos de extermínio altamente letais. Essas são algumas das mudanças possíveis, sem falar ainda em outras medidas que o Poder Judiciário poderia adotar, como a responsabilização dos superiores quando se tratar de Operações oficiais.

É sempre importante destacar que embora o tema seja muito grave, ele é altamente concentrado em alguns estados brasileiros e análises mais profundas possivelmente demonstrarão que se concentram em poucas unidades do conjunto das instituições e em pequenos grupos dentro delas, que mancham reiteradamente a imagem das instituições. Reformas internas importantes inclusive já tem sido feita em algumas instituições do país e esse processo deveria se tornar uma bandeira de todos aqueles que efetivamente defendem policiais modernas e efetivas contra o crime.

A inédita Lei George Floyd, fruto de mais um despertar e da nova onda de mudanças em curso nos EUA, tem como foco a regulação do uso da força pelas polícias e deverá ser aprovada nos próximos dias. Cabe pelo menos sonhar com um diálogo amplo das forças democráticas da sociedade brasileira sobre o que poderia vir a ser uma Lei Jacarezinho, para ajudar o país a dar os primeiros passos contra chacinas a céu aberto executadas por quem deveria antes de tudo proteger e não manchar comunidades inteiras de pavor e de sangue.

*Diretor Executivo do Instituto Cidade Segura e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

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Na edição desta semana, leia também “Ciência e erro na investigação policial” e “Uma milícia no Rio Grande do Sul?”.

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Louisville e a fábula da democracia racial na segurança pública no Brasil https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/09/24/louisville-e-a-fabula-da-democracia-racial-na-seguranca-publica-no-brasil/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/09/24/louisville-e-a-fabula-da-democracia-racial-na-seguranca-publica-no-brasil/#respond Thu, 24 Sep 2020 22:13:54 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/09/15913941535edabf6990fbe_1591394153_3x2_rt-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1521 Mortes invisíveis, que não geram comoção, sendo dignas de luto apenas para suas famílias e seus entes queridos

Por Dennis Pacheco*

Protestos antirracistas tomaram as ruas de Louisville, Estados Unidos, com gritos de “No justice, no peace” (sem justiça, sem paz) em reação à decisão judicial de não dar prosseguimento à acusação dos policiais que mataram Breonna Taylor. A jovem enfermeira foi morta com 6 tiros dentro do próprio apartamento.

As manifestações seguem a trilha de inúmeras outras em oposição à violência das polícias norte-americanas e seu padrão de seletividade racial, em que 1.140 pessoas foram mortas em intervenções policiais em 2018, fato que as aproxima bastante do contexto brasileiro, onde a letalidade policial é ainda maior, com 6.220 vítimas no mesmo ano.

Dados do programa de abordagem a suspeitos do Departamento de Polícia de Nova Iorque (Stop, Question and Frisk), e da Police Contact Survey indicam que homens jovens, latinos e negros tendem a ser mais parados pelas polícias do que os brancos. O quadro se agrava na medida que se conclui que, conforme aumenta o grau de força utilizado pelas polícias, maior a presença de negros nas estatísticas.

Seguindo a mesma tendência, negros somos 56% da população brasileira, mas 75% dos mortos em intervenções policiais. Desproporção que invalida o argumento vazio de que somos mais mortos por sermos maioria, revelando a intensidade da seletividade na atividade policial.

Embora os modelos de arquitetura organizacional das Polícias dos dois países sejam muito diferentes, os alvos de suas ações são os mesmos: jovens negros e pobres, estigmatizados como criminosos e cujas mortes não configuram homicídio em termos jurídicos. Mortes invisíveis, que não geram comoção, sendo dignas de luto apenas para suas famílias e seus entes queridos. Não é à toa que o lema do movimento que centraliza as manifestações antirracistas nos EUA seja Vidas Negras Importam (Black Lives Matter).

Parte do que faz com que vidas negras não importem é o fato de, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil permaneça o desafio de responsabilizar policiais pelo crime de homicídio. Lá, mesmo casos que ganham notoriedade, acumulam provas e pressão pública em favor da condenação de policiais que fizeram uso excessivo da força, como no caso que levou à morte de George Floyd, asfixiado por um policial que ajoelhou em seu pescoço, raramente resultam em punição por homicídio. A exemplo disso, o único dos três policiais envolvidos na morte de Breonna Taylor que foi acusado, corre o risco de ser condenado não por tê-la assassinado, mas por ter colocado os vizinhos em risco ao atirar a esmo.

No Brasil, o excludente de ilicitude deveria ser usado somente para casos cuja investigação não concluiu o emprego de uso excessivo e ilegítimo da força e que concluíram pela legitimidade da ação policial. O que acontece, no entanto, é que a palavra dos policiais envolvidos é a única variável ouvida, seja na lavratura do boletim de ocorrência, seja no inquérito policial, seja na decisão do Ministério Público e do Judiciário. A narrativa da “fundada suspeita” como motivadora da abordagem desproporcional de negros, e da resistência à ação policial como motivadora do uso da força letal, também majoritariamente contra negros, não encontra contrapartidas na maior parte das vezes.

A ausência de controle da atividade policial evidencia que vidas negras também não importam por aqui. Se importassem, suas mortes seriam dignas de luto coletivo, de investigação, de punição do uso excessivo da força. Mortes decorrentes de intervenções policiais seriam esclarecidas de fato mediante investigações, e parte delas seria declarada homicídio, gerando denúncia por parte do Ministério Público e chegando até o tribunal do júri. Para se ter uma ideia da magnitude do problema, pesquisa da ouvidoria das polícias de São Paulo concluiu que 74% das mortes causadas pelas forças policiais do Estado possuíam indícios de uso excessivo da força.

Afirmar que vidas negras importam significa reconhecer o problema da vulnerabilidade racial à violência, diagnosticá-lo, conhecer seu endereço, saber quais batalhões e policiais possuem maior letalidade, quais bairros e segmentos populacionais estão mais vulneráveis, e agir com inteligência ao invés do achismo que rege a segurança pública há anos. É preciso retirar o cabresto da fábula da democracia racial na gestão da segurança pública no Brasil e encarar a realidade do racismo. Nossas vidas negras importam.

*Cientista em humanidades pela UFABC e pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

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Violência policial e política https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/07/02/violencia-policial-e-politica/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/07/02/violencia-policial-e-politica/#respond Thu, 02 Jul 2020 20:49:07 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/07/15928599595ef11d3730335_1592859959_3x2_md.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1450
Em 1997, caso da Favela Naval serviu como catalisador de mudanças na PM paulista. Há hoje espaço para mudança de atitude da corporação?

Por Samira Bueno*, publicado originalmente no Boletim Semanal de Análises Fonte Segura, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (fontesegura.org.br)

Casos recentes de imagens de abordagens policiais reacenderam o debate sobre violência policial e uso desproporcional da força por agentes do Estado. Em Barueri, um cidadão sentado na calçada foi violentamente abordado por quatro policiais, mesmo sem demonstrar nenhum tipo de resistência. Na zona norte de São Paulo, policiais foram flagrados espancando um jovem, que seria ainda arrastado por uma escadaria e levaria socos na cara de um dos agentes. As ocorrências, amplamente noticiadas pela imprensa e compartilhadas nas redes sociais, geraram uma série de comparações entre esses episódios e o caso conhecido como Favela Naval, responsável por reformas na Polícia Militar do Estado de São Paulo.

Era março de 1997 quando o Jornal Nacional exibiu as imagens de policiais torturando e extorquindo nove moradores da região da Favela Naval, em Diadema, que terminou com a execução a tiros do mecânico Mário José Josino pelo policial militar conhecido como Rambo. As cenas foram recebidas com grande consternação pela sociedade, causando comoção muito maior do que os 111 mortos do Carandiru, cinco anos antes. Após a exibição das imagens, que ficaram conhecidas mundialmente, o governador Mário Covas fez um pedido de desculpas à sociedade e solicitou ao então secretário da Segurança José Afonso da Silva, reconhecido jurista, uma proposta de Emenda Constitucional que transferia para a polícia civil a tarefa de policiamento ostensivo.

O episódio em Diadema promoveu uma série de mudanças internas na corporação, sob pena de ainda maior enfraquecimento político. O governador Mario Covas substituiu à época o comandante geral, e o que se seguiu foram profundas transformações nos currículos de formação da tropa, que inauguraram o tripé que incluía a gestão pela qualidade, direitos humanos e policiamento comunitário como bases de sustentação da organização.

Ainda que incrementais, estas mudanças foram responsáveis por uma série de inovações e avanços nas políticas de segurança pública do Estado de São Paulo, que coincidem em sua maioria com a atuação de Mário Covas como governador. Este ponto é importante de ser destacado, pois reside aí um elemento central para compreensão do que ocorreu em 1997, e do porquê o mesmo não deverá acontecer agora em 2020.

O primeiro ponto a ser destacado diz respeito ao empenho e liderança pessoal de Mário Covas na agenda de controle da atividade policial. Covas foi eleito com uma plataforma que prometia reduzir os níveis de letalidade policial, criou a Ouvidoria de Polícia em seu primeiro dia de mandato, determinou a publicação de estatísticas periodicamente e concebeu um programa de afastamento de policiais envolvidos em ocorrências de alto risco. O tema do controle do uso da força policial não era contingente e tampouco decorria de oportunismo político, mas era estrutural de seu plano de governo. Bem diferente da postura do atual governador João Doria, que foi eleito na esteira dos ideais bolsonaristas, e em abril do ano passado parabenizava policiais envolvidos em uma ocorrência com resultado morte por “colocarem no cemitério mais dez bandidos”.

O segundo ponto a ser destacado diz respeito à percepção da população em relação à violência policial. Se em 1997 boa parte da classe média não tinha ideia de como a Polícia Militar podia ser truculenta na periferia, em 2020 essa desigualdade no padrão de policiamento da organização está naturalizada, tendo sido reconhecida pelo ex-comandante da Rota em entrevista ao portal de notícias UOL, quando apontou que a abordagem realizada nos Jardins tem que ser diferente da abordagem na periferia. Em uma sociedade assentada na desigualdade, a afirmação não causa espanto ou indignação e passou a ser naturalizada.

Por fim, o terceiro ponto a ser levantado e que ajuda a compreender por que nenhuma mudança significativa deve ocorrer no curto prazo com a PMESP diz respeito ao reconhecimento por parte da própria corporação da necessidade de promover mudanças. Seja pela pressão da opinião pública ou do governador, o fato é que em 1997 a Polícia Militar do Estado de São Paulo entendeu que precisava mudar, reconheceu que os casos de violência policial não eram episódios isolados e se dedicou a expurgar os que defendiam o confronto como política de Estado.

Instituições autônomas e militarizadas como as Polícias Militares são muito refratárias ao controle externo e só mudam efetivamente quando o controle interno atua. Por mais pressões externas que existam, é necessário o reconhecimento da necessidade de mudança para que estes processos sejam desencadeados. A declaração recente do governador João Doria de que implementará um amplo programa de “retreinamento” da corporação e o anúncio de instalação de 200 câmeras corporais efetivam a mudança de discurso do político. E ainda que propostas do gênero sejam louváveis, parecem ignorar que estamos diante de um padrão de uso da força que tem relação com uma cultura organizacional que entende a força letal como um desfecho provável do policiamento, e não um resultado a ser evitado ao máximo.

A corporação, por sua vez, continua a insistir no discurso das “maçãs podres” para justificar as muitas cenas de violência policial recentemente divulgadas, ainda que os “desvios individuais de conduta” ocorram em diferentes regiões, sob diferentes comandos, em diferentes circunstâncias e em meio a uma pandemia que fez despencar os crimes patrimoniais e recolheu mais da metade da população às próprias casas.  A história demonstra que, enquanto a negação seguir como bússola da corporação, os episódios de truculência e brutalidade seguirão recorrentes.

Samira Bueno

Diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

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O canto da sereia que pode levar a PM ao descrédito https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/12/01/o-canto-da-sereia-que-pode-levar-a-pm-ao-descredito/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/12/01/o-canto-da-sereia-que-pode-levar-a-pm-ao-descredito/#respond Mon, 02 Dec 2019 01:12:20 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/12/15542629375ca42b995a8a0_1554262937_3x2_rt-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1201 A Prefeitura de São Paulo registrou, no primeiro semestre de 2019, 9.457 reclamações de barulho na cidade, incluindo os pancadões. Isso é equivalente a 52 ocorrências por dia. No distrito de Vila Andrade, onde fica localizada a favela de Paraisópolis, foram registradas apenas 60 reclamações neste mesmo período, o que é pouco frente ao total da cidade e é emblemático da desconfiança e do temor dos seus moradores em relação ao Poder Público.

E não à toa, a ação policial injustificável da madrugada deste domingo (1), que inacreditavelmente bloqueou saídas e encurralou participantes do baile funk, é uma daquelas ações que nos fazem entender as razões para o descrédito da população com as instituições públicas. Em nenhuma hipótese, uma ação policial que, para prender dois fugitivos, dispersa com brutalidade e violência uma festa com 5 mil participantes pode ser vista como técnica ou moralmente correta.

A Polícia Militar de São Paulo precisa apurar com máxima celeridade, transparência e rigor a sequência dos acontecimentos e a cadeia de comando de uma operação que, até aqui, fugiu de todos os padrões de excelência que marcam a corporação. Não é possível transigir com o descontrole da tropa empregada na operação.

Enganam-se as pessoas que imaginam que a ação visou a manutenção da ordem e louvam a morte de 9 pessoas nas redes sociais e nos comentários dos portais de notícias. A ação contrariou recomendações contidas em vários Manuais de Controle de Distúrbio Civil para que, na dispersão, é necessário controlar o fluxo da multidão e sempre deixar rotas de fuga desobstruídas, para que pisoteamentos e outras tragédias sejam evitadas  (a versão vigente de SP é classificada como sigilosa pela PMESP, mas a de 1997, disponível na web, também corrobora tais recomendações).

E, mais, no Controle de Distúrbios Civis (CDC), tropas de choque sejam acionadas e que o policiamento territorial não fique no primeiro plano da operação. Os vídeos que estão circulando mostram policiais armados, sem escudos e no meio da multidão. A chance de confrontos violentos é sempre maior, como acabou ocorrendo. Diante de uma perseguição que acabou enveredando para uma ação de CDC com 5 mil pessoas, em termos de ordem pública, a medida mais adequada teria sido ter desmobilizado a equipe envolvida e acionado retaguarda aérea e pedido de apoio da tropa de choque.

A investigação que foi anunciada pelo Governador João Doria deve buscar saber o que de fato ocorreu e quem autorizou esta ação. Nada justifica o que ocorreu e não é saudável para a corporação tentar minimizar os acontecimentos ou punir apenas os policiais que estavam na ponta.

A Prefeitura de São Paulo, na contramão da transparência, não permite mais buscas no campo de observações das reclamações do SP156, mas, usando dados de 2015 e 2016, o mapa abaixo mostra que pancadões fazem parte da vida na cidade e que, se plotarmos as unidades da PMESP, teremos que tais festas acontecem próximas aos Batalhões e Companhias da PM.

 

Ou seja, a polícia historicamente sabe e monitora quando estas festas acontecem e tem todas as condições de planejar operações e protocolos de contingência que evitassem uma ação como a desta madrugada, em Paraisópolis. Se não o fez, errou feio. E errou ainda mais sabendo que uma ação como esta jamais ocorreria na dispersão de uma festa em um bairro “nobre” da cidade e/ou em um clube de elite (lembremos a dispersão do Carnaval na Vila Madalena que, mesmo com episódios de confrontos, todos os protocolos são seguidos).

A experiência acumulada com o controle das manifestações desde 2013 é exemplo de que é possível fazer diferente.

É verdade que polícia sozinha não resolve o problema dos pancadões, mas não podemos aceitar, como nos alertou Thiago Amparo na Folha de S. Paulo, a naturalização da truculência. Paraisópolis convive com os pancadões sem nenhuma resposta mais efetiva do Poder Público para a oferta de espaços de convivência pacífica.

Na toada de populismos autoritários, a ação destrambelhada em Paraisópolis acontece dias depois do Governador João Doria publicar a sua Política Estadual de Segurança Pública sem qualquer meta de controle de uso da violência por parte das polícias. Por tudo isso, a PMESP deve evitar o canto da sereia do tempo social e não pode se sentir autorizada a abandonar o investimento de décadas no profissionalismo e na supervisão da atividade policial.

A Força Pública se constrói com confiança e eficiência democrática; não com demagogia e truculência.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Quanto maior a letalidade policial, maior a taxa de crimes violentos letais intencionais https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/10/14/quanto-maior-a-letalidade-policial-maior-a-taxa-de-crimes-violentos-letais-intencionais/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/10/14/quanto-maior-a-letalidade-policial-maior-a-taxa-de-crimes-violentos-letais-intencionais/#respond Mon, 14 Oct 2019 19:06:21 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/09/Alan-Marques-320x213.png https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1128 Por Edson Marcos Leal Soares Ramos*

Resumo

Objetivo: Verificar a associação estatística entre a taxa de mortes decorrentes de intervenções policiais e a taxa de crimes violentos letais intencionais. Metodologia: O estudo é quantitativo, exploratório e descritivo. A fonte dos dados foi o 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Foi aplicada a técnica estatística descritiva de dados, teste t e a técnica estatística multivariada análise de correspondência. Resultado: Quanto maior é a taxa de mortes decorrentes de intervenções policiais, maior é a taxa de crimes violentos letais intencionais. Conclusão: Goiás, Rio de Janeiro, Bahia, Ceará, Rio Grande do Norte, Acre, Pará, Amapá, Sergipe e Roraima são as unidades da federação com altas taxas de crimes violentos letais intencionais e altas taxas de mortes decorrentes de intervenções policiais.

 

O estudo foi desenvolvido de forma quantitativa, exploratória e descritiva que, por sua vez, tem como intuito registrar, analisar e interpretar fenômenos atuais, objetivando o seu funcionamento no presente bem como descrever características de determinado fenômeno, estabelecendo possíveis relações entre as variáveis analisadas (MALHOTRA, 2001; MARCONI; LAKATOS, 2010).

A fonte dos dados foi o 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública (FBSP, 2019). Foram utilizadas as taxa de mortes decorrentes de intervenções policiais e a taxas de crimes violentos letais Intencionais, das 26 unidades da federação e também do distrito federal referentes ao ano de 2018. A partir da ferramenta estatística quartis amostrais (BUSSAB; MORETIN, 2017), as taxa de mortes decorrentes de intervenções policiais, foram classificadas em: baixa (0,13 a 1,10); moderada (1,11 a 4,33) e alta (4,34 a 8,94) e a taxa de crimes violentos letais intencionais foram classificadas: baixa (9,48 a 21,54); moderada (21,55 a 46,82) e alta (46,83 a 66,60).

Foi aplicada a técnica estatística descritiva de dados (BUSSAB; MORETIN, 2017), com a utilização de tabelas e medidas de síntese, a fim de tornar mais objetiva a interpretação dos quantitativos, possibilitando uma melhor visualização dos dados. Além disso, utilizou-se testes de hipóteses que constituem uma forma de inferência estatística, neste contexto as hipóteses são afirmações sobre parâmetros populacionais e são testadas para ver se são consideradas verdadeiras ou não. O teste t é o método mais utilizado para se avaliar as diferenças entre as médias entre dois grupos (BUSSAB; MORETTIN; 2017).

Neste estudo as hipóteses testadas: (a) para taxa de mortes decorrentes de intervenções policiais são: (i) os grupos com baixa e moderada taxas são iguais versus são diferentes; (ii) os grupos com baixa e alta taxas são iguais versus são diferentes; (iii) os grupos com modera e alta taxas são iguais versus são diferentes. (b) para taxa de crimes violentos letais intencionais são: (i) os grupos com baixa e moderada taxas são iguais versus são diferentes; (ii) os grupos com baixa e alta taxas são iguais versus são diferentes; (iii) os grupos com modera e alta taxas são iguais versus são diferentes.

Para verificar se as categorias (baixa, moderada e alta) da taxa de mortes decorrentes de intervenções policiais e da taxa de crimes violentos letais intencionais estão associadas recorreu-se a técnica estatística multivariada análise de correspondência. A análise de correspondência foi realizada com o auxílio do aplicativo Statistica, versão 6.0. Em todos os testes, fixou-se α = 5% (p ≤ 0,05) para rejeição da hipótese nula.

Assim sendo, na figura 1, podemos observar que quanto maior é a taxa de mortes decorrentes de intervenções policiais, maior é a taxa de crimes violentos letais Intencionais (r = 064, p = 0,000). Ou seja, os dados mostram que não há suporte às teses que defendem o incremento do uso da força pelas polícias como estratégia de controle do crime e da violência.

Figura 1: Diagrama de Correlação da taxa de mortes decorrentes de intervenções policiais e da taxa de crimes violentos letais Intencionais, por unidade da federação, em 2018.

Fonte: Construção do autor a partir dos dados do 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública (FBSP, 2019).

Legenda: (i) Taxa de mortes decorrentes de intervenções policiais – ■ Baixa (0,13 a 1,10); ♦ Moderada (1,11 a 4,33) e Alta (4,34 a 8,94); (ii) Taxa de crimes violentos letais Intencionais – ■ Baixa (9,48 a 21,54); ♦Moderada (21,55 a 46,82) e Alta (46,83 a 66,60).

Isso porque, nota-se que não há na diferença estatística na taxa média de mortes decorrentes de intervenções policiais entre as unidades da federação com baixa e moderada taxas (Tabela 1). Unidades da federação com alta taxa média de mortes decorrentes de intervenções policiais, diferem estatisticamente (p ≤ 0,05) das unidades com baixa e moderada taxas (Tabela 1). Unidades da Federação com baixa, moderada e alta taxa média de crimes violentos letais intencionais diferem estatisticamente (p ≤ 0,05) entre si (Tabela 1).

Tabela 1: Média, Desvio-Padrão e Nível Descritivo (p-valor), Resultantes do teste de t para comparar a taxa de mortes decorrentes de intervenções policiais e a taxa de crimes violentos letais Intencionais, por unidade da federação, em 2018.

Variável UF Escala Média ± D. Padrão p -valor
Taxa de mortes decorrentes de intervenções policiais PI; DF; MG; SC; PR; SP; MS; MA; PB; RO; TO 0,13 a 1,10

Baixa

1,17 ± 0,77 a 0,000
AL; ES; MT; PE; AM; RS 1,11 a 4,33

Moderada

1,90 ± 1,26 a
GO; RJ; BA; CE; RN; AC; PA; AP; SE; RR 4,34 a 8,94

Alta

5,34 ± 2,11 b
Taxa de crimes violentos letais Intencionais PI; DF; MG; SC; PR; SP; MS; MA; PB; RO; TO 9,48 a 21,54

Baixa

19,95 ± 6,33 a 0,000
AL; ES; MT; PE; AM; RS 21,55 a 46,82

Moderada

33,36 ± 9,42 b
GO; RJ; BA; CE; RN; AC; PA; AP; SE; RR 46,83 a 66,60

Alta

50,43 ± 8,92 c

Fonte: Construção do autor a partir dos dados do 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública (FBSP, 2019).

Nota: Médias diferentes (p ≤ 0,05) a partir do teste t são indicadas por letras diferentes.

Tabela 2: Probabilidade de associação resultante da aplicação da técnica estatística multivariada análise de correspondência as categorias (baixa, moderada e alta) das variáveis taxa de mortes decorrentes de intervenções policiais e a taxa de crimes violentos letais Intencionais, por unidade da federação, em 2018.

Taxa de Mortes decorrentes de intervenções policiais Taxa de CVLI
Categorias Baixa Moderada Alta
9,48 a 21,54 21,55 a 46,82 46,83 a 66,60
Baixa 0,13 a 1,10 78,66* 37,23 0,00
Moderada 1,11 a 4,33 37,23 0,00 0,00
Alta 4,34 a 8,94 0,00 0,00 97,82*

Nota: *Probabilidade de associação fortemente significativa, pois  γ×100≥70%.

Legenda: Taxa de mortes decorrentes de intervenções policiais: Baixa (PI; DF; MG; SC; PR; SP; MS; MA; PB; RO; TO); ♦ Moderada (AL; ES; MT; PE; AM; RS) e Alta (GO; RJ; BA; CE; RN; AC; PA; AP; SE; RR). Taxa de crimes violentos letais Intencionais: ■ Baixa (PI; DF; MG; SC; PR; SP; MS; MA; PB; RO; TO); ♦ Moderada (AL; ES; MT; PE; AM; RS) e Alta (GO; RJ; BA; CE; RN; AC; PA; AP; SE; RR).

Fonte: Construção do autor a partir dos dados do 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública (FBSP, 2019).

Pode-se observar que a Unidade da Federação com baixa taxa de crimes violentos letais Intencionais possui alta probabilidade (78,66% de chance), de ter baixa taxa de mortes decorrentes de intervenções policiais (Tabela 2). Encontram-se nesta situação, em 2018, as seguintes unidades da federação: PI; DF; MG; SC; PR; SP; MS; MA; PB; RO; TO. Unidades da Federação com alta taxa de crimes violentos letais Intencionais possuem alta probabilidade (97,82% de chance), de ter alta taxa de mortes decorrentes de intervenções policiais (Tabela 2). Encontram-se nesta situação, em 2018, as seguintes Unidades da Federação GO; RJ; BA; CE; RN; AC; PA; AP; SE; RR.

Conclusão:

(i) Quanto maior é a taxa de mortes decorrentes de intervenções policiais, maior é a taxa de crimes violentos letais intencionais.

(ii) Unidades da federação com alta taxa média de mortes decorrentes de intervenções policiais, diferem estatisticamente das unidades com baixa e moderada taxas.

(iv) Unidades da federação com baixa, moderada e alta taxa média de crimes violentos letais intencionais diferem estatisticamente entre si.

(v) Unidades da federação com baixa taxa de crimes violentos letais Intencionais possui alta probabilidade, também, ter baixa taxa de mortes decorrentes de intervenções policiais.

(vi) As unidades da federação com alta taxa de crimes violentos letais intencionais possuem alta probabilidade de ter alta taxa de mortes decorrentes de intervenções policiais.

 

Referências

BUSSAB, W. O.; MORETTIN, P. A. Estatística básica. 9.ed., São Paulo: Editora Saraiva, 2017.

FBSP. Fórum Brasileiro de Segurança Pública. 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2019. Ano 13. São Paulo, 2019.

MALHOTRA, N. Pesquisa de marketing. 3.ed., Porto Alegre: Bookman, 2001.

MARCONI, M. A.; LAKATOS, E. M. Técnicas de pesquisa: planejamento e execução de pesquisas, amostragens e técnicas de pesquisa, elaboração, análise e interpretação de dados. 7.ed., São Paulo: Atlas, 2010.

 

*Professor Titular do Programa de Pós-graduação em Segurança Pública da Universidade Federal do Pará. Conselheiro Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

ramosedson@gmail.com

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Dados negam que aumento da letalidade policial gera redução dos homicídios https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/06/02/dados-negam-que-aumento-da-letalidade-policial-gera-reducao-dos-homicidios/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/06/02/dados-negam-que-aumento-da-letalidade-policial-gera-reducao-dos-homicidios/#respond Sun, 02 Jun 2019 03:10:51 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/06/Letalidade-Policial-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=884 Com Sofia Reinach (MIT e Fórum Brasileiro de Segurança Pública)

Os dados referentes aos últimos meses têm apontado para uma redução de mortes violentas no país todo. Ao mesmo tempo em que os homicídios caem, se verifica também um aumento das mortes decorrentes de intervenção policial (MDIP).

E, diante desse movimento, já há quem defenda que o aumento do uso da força letal da polícia seja o responsável pela redução dos homicídios, uma vez que os “bandidos” estariam inibidos pela disposição das polícias em enfrentar o crime de forma “firme”. Nada mais falso. Estamos diante de um sofisma; de uma falsificação argumentativa que desconsidera várias evidências em nome de posturas ideológicas.

Entre as evidências desprezadas pelos defensores das Mortes Decorrentes de Intervenções Policiais, independentemente das necessárias investigações para a determinação da legitimidade de cada ação, vale frisar que o Brasil também apresenta altas taxas de mortes de policiais. Além disso, por certo mortes são inerentes à atividade policial, mas elas precisam ser esclarecidas para que não restem dúvidas sobre a legalidade e legitimidade de cada ocorrência. “Mirar na cabecinha” não é política pública de um Estado de Direito.

Mas para além dos discursos,  o que dizem os dados?  Está, de fato, ocorrendo um conflito direto e efetivo, do ponto de vista da política de segurança pública, entre polícia e “bandidos” que indicaria que a polícia está se impondo pelo padrão de uso da força? Algumas evidências apontam que a resposta é “não”.

Em meio ao apagão estatístico que ainda marca a área no país, vale retomar alguns estudos existentes como os elaborados por Sofia Reinach para curso na Universidade de Harvard, nos EUA. Segundo esse estudo, uma análise comparativa do perfil das vítimas da polícia e da população carcerária no Estado de São Paulo aponta divergências dignas de destaque.

Essa análise foi feita utilizando dados de 2014 e 2015 do Anuário Brasileiro de Segurança Pública e dos Boletins de Ocorrência registrados no Estado e, dado que não houve grandes mudanças nos perfis estudados, não devemos ter mudanças significativas para anos mais recentes. Para viabilizar a análise, considerou-se que o perfil da população carcerária seria idealmente uma proxy (ou uma aproximação) do perfil de pessoas que descumpriram a lei e, portanto, seriam alvo da ação policial e/ou envolvidos em confrontos. Ou seja, seria de se esperar que o perfil da população penitenciária seria coincidente com o das vítimas de ocorrências policiais com resultado morte.

No entanto, não é isso que encontramos na apuração dos dados. Enquanto 4,7% da soma da população que cumpre medida socioeducativa com a população carcerária do Estado está na faixa entre 0-17 anos, 22,56% das vítimas da polícia está nessa mesma faixa etária. Na faixa entre 18 e 24 anos estão 27,72% da população carcerária e 43,8% das vítimas de MDIP. Em outras palavras, a polícia mata pessoas mais jovens do que a proporção dessa população no sistema carcerário.

Essa mesma comparação por recorte de raça demonstra que 53,58% da população carcerária é negra (pardas e pretas somadas). Enquanto isso, os boletins de ocorrência registram que 60,61% das vítimas da polícia são negras. Apesar de a diferença não ser tão grande quanto a das faixas de idade, ela não deixa de ser significativa.

O que se pode concluir na análise desses dados é de que existe uma chance maior de as vítimas da polícia serem jovens e negros do que de outros grupos populacionais. Assim, temos um primeiro descompasso nos dados que nos levam a crer que existe um viés nas mortes decorrentes de intervenção policial. No entanto, a ideia de que as mortes ocorrem em momentos de conflito e que estão correlacionadas fica ainda mais frágil a partir da análise espacial do local onde ocorrem os homicídios comuns e as mortes causadas pela polícia.

O georreferenciamento das mortes ocorridas no município de São Paulo entre os anos de 2015 e 2016, a partir dos dados disponíveis nos boletins de ocorrência, demonstra que os homicídios comuns e as mortes decorrentes de intervenção policial se concentram em áreas diferentes da cidade. Os dois fenômenos não guardam relação entre si.

 

Mapas de Calor das Mortes Decorrentes de Intervenções Policiais e das Mortes de Policiais – 2015-2016

É possível verificar ao olhar para os mapas acima que os homicídios comuns se concentram no centro da cidade e na zona sul. Nesses mesmos anos, houve uma concentração das mortes decorrentes de intervenção policial nas zonas leste e norte da cidade. Naturalmente que existe uma tendência de coincidência da ocorrência desses crimes ocorrerem nas regiões mais violentas da cidade. Porém é evidente a diferença de concentração do local onde ocorrem essas mortes. Um bom exemplo é olhar para o centro da cidade onde existe concentração de homicídios, mas não de mortes causadas pela polícia. Outra diferença interessante é a enorme concentração de MDIPs na zona leste da cidade, enquanto que os homicídios não se concentram na mesma área.

Por fim, o último dado que nos ajuda a compreender o contexto em que ocorrem as mortes decorrentes de intervenção policial é o fato de que, no Estado de São Paulo, 73% das mortes de policiais ocorrem fora de serviço. Ao mesmo tempo, 71% das mortes decorrentes de intervenção policial ocorrem em serviço. Ou seja, não se trata de confrontos diretos simultâneos em que morrem “bandidos” e policiais ao mesmo tempo.

Esse rápido retrato do que ocorre no Estado e na cidade de São Paulo nos traz três importantes características sobre as mortes decorrentes de intervenção policial: 1) o perfil das vítimas não coincide com o perfil dos “bandidos” (considerando a população carcerária como um perfil aproximado); 2) as mortes não se concentram nos mesmo locais que os homicídios comuns (ao menos na cidade São Paulo) e; 3) policiais e vítimas da polícia não ocorrem no mesmo momento já que as primeiras ocorrem, majoritariamente, com policiais fora de serviço e as segundas, com oficiais em serviço.

Significa dizer que existem evidências que desautorizam os discursos oportunistas que associam mais mortes decorrentes de intervenções policiais com menos homicídios dolosos. Os dados indicam que as mortes não acontecem como resultado de confrontos diretos entre policiais e “bandidos”. E, se isso não acontece, o crescimento das MDIP não pode ser visto como o responsável pela queda dos homicídios comuns.

A análise dessas circunstâncias é fundamental não apenas para compreender o fenômeno, mas para que as políticas de segurança sejam estabelecidas de forma combater eficientemente o problema. O diagnóstico correto permite que o tratamento possa ser o mais eficiente possível.

Ao invés de pegar carona no pânico da população, os gestores públicos que defendem a tese que associa o maior número de mortos pelas polícias com menor número de homicídios poderiam investir na melhoria de seus sistemas de monitoramento e avaliação das políticas de segurança pública, evitando-se, assim, falácias ideológicas.  Segurança Pública não é alquimia.

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Em 2018, letalidade policial custou, ao menos, R$ 4,56 bilhões ao país; e matou 6,2 vezes mais do que nos EUA https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/04/19/em-2018-letalidade-policial-custou-ao-menos-r-456-bilhoes-ao-pais-e-matou-62-vezes-mais-do-que-nos-eua/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/04/19/em-2018-letalidade-policial-custou-ao-menos-r-456-bilhoes-ao-pais-e-matou-62-vezes-mais-do-que-nos-eua/#respond Fri, 19 Apr 2019 11:46:27 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/04/Witzel-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=781 Estimativa inédita feita para o Faces da Violência com base em estudo produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública para o Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID , indica que, em 2018, as mortes decorrentes de intervenção policial geraram apenas em custos com a perda de anos de vida produtivos das 6.160 mortes registradas no ano passado, R$ 4,56 bilhões.

Esse é o dinheiro que, se não houvesse essas mortes, teria potencialmente entrado na economia brasileira nos próximos anos em função da participação destas pessoas no mercado de trabalho e na economia. A opção por manter tais padrões de uso letal da força não atinge apenas a segurança pública, mas tem efeitos em vários outros aspectos da vida das população e deveria ser mais bem refletida em termos econômicos, sociais, institucionais e éticos.

Por trás da ideia da morte como pacificadora, escondem-se gargalos profundos no nosso modelo de desenvolvimento e na forma como garantimos vida e cidadania para a sociedade brasileira. Vivemos um déficit ético e civilizacional que nos faz aceitar a violência como linguagem e jogar fora a ideia de um projeto de Nação justa e democrática.

Um déficit que, como afirmei em texto em coautoria com Samira Bueno, permite que ocorram situações como a dos 83 tiros de fuzil disparados pelo Exército, no Rio de Janeiro. Como dissemos no texto, o episódio revela que, naquele caso, “não só um carro com uma família que passeava em uma tarde de domingo foi fuzilado, mas, sinais dos tempos, além da morte do músico Evaldo Rosa, também foi morto Luciano Macedo, catador de lixo baleado ao tentar ajudar família. A morte de Luciano representa não só a morte da empatia. Ela é a prova de que a solidariedade foi punida com pena de morte“.

Vamos nos tornando insensíveis à dor e ao sofrimento. Diante do pânico imposto pela violência e pela falência das políticas sociais, é muito fácil banalizar o discurso de que a violência dos criminosos precisa ser combatida com mais violência, ainda mais quando feito a partir de um posts em redes sociais e/ou gabinetes de autoridades que não precisam ir para a ponta da linha para matar ou morrer.

Porém, só demagogia e irresponsabilidade política explicam tais discursos terem tanta ressonância nas políticas públicas. De acordo com o projeto Monitor da Violência, parceria do FBSP com o NEV/USP e o G1, as polícias brasileiras mataram 6.160 pessoas, em 2018, o que dá quase 17 pessoas por dia. Se compararmos com 2014, chama muito atenção que este número é mais do que o dobro do registrado naquele ano. Um crescimento de mais de 100% em 5 anos.

Nossas polícias, sob qualquer métrica, apresentam padrões de uso letal da força em muito superiores à média dos países da OCDE e/ou de países que temos como exemplos de qualidade de vida. Para usar duas comparações bastante comuns da nova “guerra cultural” travada pela ultradireita do país, hoje o padrão de uso da força das nossas polícias está mais parecido com o da Polícia Nacional Bolivariana, da Venezuela, do que as polícias dos EUA.

Isso porque, em 2018, as polícias brasileiras mataram 6,2 mais e morreram 1,9 vezes mais do que as polícias dos EUA. Enquanto aqui houve 6.160 mortes decorrentes de intervenção policial e 307 policiais mortos, nos Estados Unidos, que tem uma população maior do que a nossa, foram registradas 992 mortes decorrentes de intervenção policial e 158 policiais mortos.

Merece destaque que o número de policiais civis e militares vítimas de homicídio ao longo de 2018 teve redução de 18%, mas ainda preocupa pois os policiais continuam a morrer em folga. O Estado, cuja parcela de seus representantes opta por incentivar o morticínio, deveria criar programas de proteção efetiva aos policiais, como apoio social, de saúde mental, jurídico e/ou linhas de financiamento para moradia e escolas.

Dos 307 policiais assassinados no ano passado, ao menos 232 foram vitimados fora do horário de serviço, em situações pouco investigadas e transparentes. Dentre as múltiplas causas passíveis de serem mapeadas temos os policiais vítimas de latrocínios, que reagem a roubos e acabam sendo mortos, e aqueles que morreram enquanto faziam “bico”, a segunda jornada a que expressiva parcela dos policiais brasileiros está sujeita como forma de complementar renda. Mas não temos um esforço de produção de estudos e análises que poderia balizar novas estratégias e ações.

Em resumo, não é normal achar que os protocolos de uso da força das nossas polícias estão adequados e que as taxas altas de morte são consequência da vontade dos “bandidos” de enfrentarem as polícias. A métrica das polícias deve ser o direito e não o comportamento dos criminosos. Aliás, exatamente por isso eles são criminosos, pois estão atentando contra as leis e não podem ser exemplos de nada que guie as políticas públicas. Eles precisam ser identificados e responsabilizados nos termos da nossa legislação.

Sem dúvida, polícias podem matar de forma legítima em nome do Estado, mas, para que isso aconteça, é necessário que não reste dúvidas sobre os padrões de trabalho. Não se trata de decisões individuais de quem puxa o gatilho, mas de uma cadeia de comando e controle que precisa ser sempre diligente e contínua. O uso letal da força nunca é apenas uma decisão individual. É preciso reforçarmos supervisão e controle para que não percamos a mão e presenciemos mais uma vez na história do país a emergência de grupos de extermínio e da ampliação das milícias.

Isso só virá com o reforço das investigações e não com populismo penal, licenças para matar ou com histórias “para boi dormir”, que muitos contam para posarem de vingadores da moral e/ou protetores da ordem. O Poder Público tem que sinalizar que o uso letal da força não é vingança ou faz parte de uma espiral de vendetas, mas é uma possibilidade legítima mas que deve ser usada com muita moderação.

 

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O risco de juízes justiceiros na segurança pública https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/04/02/o-risco-de-juizes-justiceiros-na-seguranca-publica/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/04/02/o-risco-de-juizes-justiceiros-na-seguranca-publica/#respond Tue, 02 Apr 2019 12:47:42 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/04/20ago2012-atirador-de-elite-em-operacao-na-favela-da-rocinha-1539970135335_615x300-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=739 Texto de Ignácio Cano, professor da UERJ e membro do Laboratório de Análise da Violência – LAV

“Bandido bom é bandido morto” é o bordão que encarna no Brasil o apelo ao extermínio de criminosos. Num país atormentado pela violência, pesquisas mostram que entre um terço e a metade da população adere em alguma medida a esta ideia. O pressuposto dela é que a sociedade está dividida de forma dicotômica entre cidadãos de bem e bandidos, tal que a segurança dos primeiros exigiria a eliminação dos segundos.

Na verdade, trata-se não propriamente de uma proposta de endurecimento penal, como poderia ser a pena de morte, mas de um apelo a que cidadãos comuns e policiais possam matar supostos criminosos sem serem importunados pelos limites da lei. Daí a irritação com que os seus proponentes reagem aos argumentos dos defensores dos direitos humanos, estes sim baseados na lei. Invertendo a máxima brasileira de que a lei seria apenas para os inimigos, neste caso a lei parece reservada às relações entre os pares, enquanto aos inimigos é destinado o extermínio.

De fato, as nações que admitem a pena de morte a aplicam após julgamentos demorados que considerem todas as evidências para evitar injustiças que se tornariam irreversíveis. Já os partidários do ‘bandido bom é bandido morto’ costumam defender a morte sumária nos becos, sem apelação, cometida por policiais justiceiros ou indivíduos indignados. Em suma, estamos perante uma proposta profundamente anticivilizatória e antijurídica, que empurra a sociedade a um estágio pré-hobbessiano em que cada um se defende por si e os próprios agentes do Estado agem sem controle. É antijurídica não apenas no sentido de descumpridora da lei vigente, mas no sentido mais amplo de ser contrária à própria ideia do direito e do controle jurisdicional. Se levada ao extremo, ela tornaria o Poder Judiciário tão desnecessário quanto nos filmes de faroeste, nos quais a lei é aplicada pelos xerifes na ponta do revólver.

O auge desta visão está vinculado à proliferação dos populismos de extrema direita no mundo inteiro. Estes populismos indignados propõem uma rebelião contra as velhas elites políticas, econômicas e intelectuais, bem como contra os limites que a lei impõe aos governos. A própria ciência é também colocada em questão e aumentam aqueles que rejeitam as vacinas ou negam o aquecimento global. Mas se no resto do mundo não são os médicos quem se posicionam contra as vacinas nem os biólogos os que questionam o aquecimento global, no Brasil a ofensiva contra o direito está protagonizada por juízes ou ex-juízes.

No Rio de Janeiro, o ex-juiz Witzel, governador do estado, manifesta obsessão por ‘abater’ criminosos com fuzil sem importar se eles representam ou não uma ameaça iminente. Num país que não admite a pena de morte, um agente público só pode matar em legítima defesa contra uma ameaça grave e imediata. Qualquer outra opção constitui crime de homicídio e, se levada à prática, deveria colocar o governador no banco dos réus como mandante. O termo ‘abate’ não é casual pois visualiza a morte de pessoas como se fossem frangos ou bois e facilita a aceitação da política de extermínio por parte de um projeto político que se pretende cristão. Imediatamente após a operação policial no Fallet que causou 15 mortos, o governador afirmou que a intervenção foi legítima, antes mesmo de que começassem as investigações, prejulgando-as e enfraquecendo o controle jurisdicional que ele mesmo, há pouco, representava.

No Congresso, integrantes do grupo político presidencial pretendem aprovar a ‘lei do abate’, que indiretamente confirma que a proposta do governador do Rio é ilegal, pois caso contrário ela seria desnecessária. Outros defenderam que as mortes cometidas por policiais simplesmente não deveriam ser investigadas, o que deve ter provocado euforia entre milicianos e outros agentes corruptos. Por sua vez, o ministro da Justiça, o ex-juiz Moro, contemplou as mortes cometidas por policiais no seu pacote anticrime, para acomodar a agenda presidencial. Moro, candidato a passar à história pela aplicação seletiva e desmedida da lei com objetivos políticos, corre agora o risco de figurar nos livros como incentivador das execuções sumárias.

O pacote pretende acrescentar dois incisos ao artigo 25 do Código Penal, determinando a existência de legítima defesa quando o agente público intervém para “prevenir injusta e iminente agressão” ou para proteger reféns. Na verdade, isso já está implícito no caput do artigo e, na prática, nenhum policial é hoje condenado nessas situações. O pacote propõe também acrescentar um artigo ao CPP, o 309-A, para que o agente policial não seja preso em flagrante nos casos em que tiver cometido o crime em estado de necessidade, legítima defesa ou estrito cumprimento do dever. De novo, isso é o que já acontece, pois policiais são presos em flagrante apenas quando há evidências de ilegalidade.

Essas modificações seriam então inócuas do ponto de vista jurídico, mas muito relevantes do ponto de vista político, pois mandam um sinal aos policiais no sentido de que eles podem, e devem, matar mais. A lei perde assim a sua função reguladora das condutas em prol de uma função retórica a serviço de um projeto político. De fato, se o ministro leu as sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos, deve saber que o problema do Brasil não é que os policiais sejam injustamente acusados de homicídio, mas exatamente o contrário: a dificuldade que o país tem para investigar e punir os abusos policiais quando acontecem.

Além disso, o pacote visa acrescentar um parágrafo ao artigo 23 do Código Penal, que regula os excessos culposos ou dolosos, para que o juiz possa “reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Este acréscimo, além de alentar os excessos, gera notável insegurança jurídica, pois um juiz conservador poderá anular a pena, outro poderia aplicá-la pela metade, enquanto um juiz garantista a aplicaria por completo. Assim, cada juiz poderia agir da forma que bem entender, da mesma forma que o policial na rua, enfraquecendo a noção de igualdade perante a lei.

Esperemos que Deus, que dizem que está acima de todos, nos livre dos juízes justiceiros.

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Violência policial, a ‘Hidra de Lerna’ brasileira https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/03/09/violencia-policial-a-hidra-de-lerna-brasileira/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/03/09/violencia-policial-a-hidra-de-lerna-brasileira/#respond Sat, 09 Mar 2019 21:21:28 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/03/15265223655afce1fdc5f09_1526522365_3x2_md-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=671 As polícias do país contam com profissionais altamente qualificados e treinados. Temos corporações que inovam e exportam práticas para diversas polícias do mundo, muitas por intermédio de programas de assistência técnica patrocinados pelas Nações Unidas.

Quando querem, sejam as polícias militares, civis e/ou federais, conseguem demonstrar um padrão de qualidade que não faz feio para nenhuma instituição de países mais ricos e desenvolvidos. São vários os projetos que estão aí para comprovar esta tese, a começar pelo GESPOL (Sistema de Gestão da Polícia Militar de São Paulo), iniciado em 1996 e que está baseado em três pilares doutrinários: Polícia Comunitária, Direitos Humanos e Gestão pela Qualidade.

O Gespol contribuiu para que a PM paulista tivesse condições políticas e organizacionais para não ser extinta, em 1997, após pressões nacionais e internacionais decorrentes do caso “Favela Naval”, que consistiu na exibição de uma reportagem em 31 de março de 1997, na TV Globo, mostrando um grupo de policiais militares extorquindo e executando pessoas numa blitz na Favela Naval, em Diadema, na Grande São Paulo.

E, em uma perspectiva histórica, vale pensarmos a importância estratégica dos comandantes e dos mecanismos de controle criados. Hoje, se não fossem os comandos, o episódio da “Favela Naval” muito provavelmente seria “aplaudido” pelos exércitos de Bots e Orks, seres míticos imortalizados nas obras de J.R. Tolkien, que infestam as redes sociais e vão conformando a estética da violência, do ódio e do ressentimento em que estamos imersos.

Se o estado de espírito de 2019 estive presente em 1996, o Gespol seria visto como um projeto menos importante e talvez não teríamos as polícias militares da forma como elas existem. Estamos vivenciando, nos últimos meses, o fortalecimento de discursos gritando por mais liberdade para que os policiais da linha de frente decidam o que, quando e como uma ação violenta será ou não legítima em termos legais.

E o Carnaval, por seu caráter catártico, trouxe vários exemplos à tona. O primeiro envolveu a Polícia Militar de MG, quando esta resolveu proibir manifestações de cunho político em blocos de Carnaval em Belo Horizonte. O STF já votou, em 2011 (ADI sobre Marcha da Maconha) pelo não acolhimento de censura prévia de conteúdo e não podemos deixar que as opiniões individuais de oficiais ou praças sejam as posições institucionais.

O segundo exemplo é o resultado do relatório da Ouvidoria das Polícias de São Paulo, que concluiu que a Corregedoria da PMESP só instaura 3% de todos os IPM (Inquéritos Policiais Militares) envolvendo mortes por policiais. Os 97% restantes ficam sob responsabilidade dos Batalhões. Temos aqui, a meu ver, um sério problema de supervisão e controle que precisaria ser alterado para podermos, inclusive, reivindicar as necessárias proteções jurídicas aos policiais que estão fazendo o policiamento na ponta de linha.

O UOL, do grupo que edita a Folha de S.Paulo, publicou reportagem sobre uma guarnição chefiada pelo filho do Deputado Cel. Telhada, que matou um “suspeito” em condições que precisam ser esclarecidas. Não precisou nem 24 horas para se notar que o nível de críticas feitas à reportagem impressionava pelo ativismo político e pela rapidez com que se considerou o episódio legítimo.

Mas as críticas não deram conta de explicar que, em grande parte das manifestações, a legitimidade da ação foi dada como certa e líquida, mesmo que, técnica e legalmente, não tenha havido perícia e que a vítima tenha sido removida do local contrariando portaria da SSP que determina que o corpo não seja removido, entre outros aspectos técnicos, jurídicos e legais. E, ao proceder desta forma, isso se torna notícia, já que é indicativo de, no mínimo, não conformidade com os regulamentos.

Ninguém que trabalha com polícias descarta de antemão que a ação possa ter sido legítima, pois este é um resultado possível da ação policial e por isso mesmo previsto em nosso arcabouço jurídico. O que se está aqui questionando é que só a investigação isenta pode dotá-la da legitimidade jurídica e não podemos, no jogo do bem contra o mal ou do policial x o “bandido”, achar que pedir controle e transparência seja visto como algo que atente contra as polícias. Não existe carta branca no ordenamento jurídico e constitucional brasileiro e não existe policial acima de qualquer suspeita.

O terceiro exemplo são as inúmeros denúncias de agressões sofridas por foliões durante o Carnaval. Não é possível aceitar que uma polícia que tem protocolos e procedimentos de alto nível, faça vistas grossas às faltas fartamente noticiadas e filmadas, sejam elas motivadas por pressão de sobrecarga de trabalho ou por desavenças e preferências ideológicas.

Vejamos a título de comparação a situação do caso que resultou na interrupção do Bloco do Fervo da Lud, no Rio de Janeiro. Naquela situação, tecnicamente falando, há inúmeros problemas que poderiam ter sido evitados. Não é um simples caso de conduta individual inadequada. É a falência do sistema de governança e supervisão das polícias.

Aproveitando que nosso imaginário voltou a ser povoado por mitos e crenças cegas, é possível dizer que a violência policial se assemelha muito à Hidra de Lerna, a serpente-dragão da mitologia grega que possuía nove cabeças, uma das quais imortal. Hércules, o semideus, foi encarregado de matar o monstro, mas para cada cabeça mortal que ele cortava com sua espada, duas novas brotavam em seu lugar.

Diante de tal ameaça, Hércules ateou fogo na Hidra e, por fim, cortou-lhe a cabeça imortal e a enterrou sob uma pesada pedra, onde ela teria permanecido viva. Moral da história, vemos que Hércules de fato não matou a Hidra, ele apenas a “varreu para debaixo do tapete”. Sua cabeça imortal ficou à espera para ser desenterrada e engolir as próprias instituições.

Tenho reiterado a importância das polícias para a segurança pública no Brasil e, até por isso, falo tranquilamente que se continuarmos a fortalecer posições políticas que hoje defendem a violência policial, estamos, no limite, enfraquecendo as próprias polícias. Defender a agenda de direitos da Constituição Federal não nos faz inimigos das polícias, muito pelo contrário.

Se hoje há uma forte adesão de policiais e juízes à agenda do Governo Bolsonaro, isso é um direito e uma liberdade individual. Mas, ao aceitar que opiniões individuais, por alinhadas ao momento, sejam tomadas como institucionais, estaremos esgarçando os mecanismos de controle e chocando o ovo, ou melhor, estaremos desenterrando a cabeça imortal da Hidra. Hoje segmentos significativos dos policiais concordam com medidas extralegais e violentas, emulando a ideia autoritária e perversa da urgência da eliminação dos inimigos do povo; amanhã, quando um oficial ou delegado pensar diferente, terá sua ordem acatada, será eliminado ou será expurgado?

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