Faces da Violência https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br O que está por trás dos números da segurança pública Tue, 23 Nov 2021 18:56:47 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 As polícias não podem decidir sobre quando e como devem respeitar decisões judiciais e as leis https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/11/23/as-policias-nao-podem-decidir-sobre-quando-e-como-devem-respeitar-decisoes-judiciais-e-as-leis/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/11/23/as-policias-nao-podem-decidir-sobre-quando-e-como-devem-respeitar-decisoes-judiciais-e-as-leis/#respond Tue, 23 Nov 2021 18:47:50 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/favela-RJ-320x213.png https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1850 O STF tem a oportunidade de, na ADPF 635, atualizar a jurisprudência que disciplina a segurança pública brasileira e baliza doutrinas de atuação policial. As polícias não podem decidir sobre quando e como devem respeitar decisões judiciais e as leis

 

Esta semana o STF retoma o julgamento da ADPF 635/2020, que vetou operações policiais nas favelas do Rio de Janeiro durante a pandemia, exceto em casos emergenciais e condicionados à prévia notificação ao Ministério Público. São vários os aspectos a serem considerados e discutidos, ainda mais diante de operações como a no Jacarezinho, da Polícia Civil do Rio de Janeiro, em maio deste ano, e agora a no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, pela PMERJ.

Nessas horas, o debate parece ideológico e revela embates de diferentes valores e moralidades. Todavia, precisamos pensar alguns aspectos jurídico constitucionais prévios, na ideia de sugerir ao pleno do STF uma reflexão mais ampla sobre o direito à segurança. Em minhas aulas na FGV, desde 2014, tenho insistido no fato de segurança ser um direito fundamental e, portanto, que  justiça social só se faz garantindo-o em sua plenitude. Vivemos em um Estado de Direito e, nele, instituições públicas são sujeitas a freios e contrapesos, não há poder absoluto.

Há muitas confusões conceituais no cotidiano da segurança pública brasileira, até por ela ser mais um campo organizacional e não um conceito fechado, delimitado. Porém, vale reler o que diz nossa CF:

Segundo o Caput do Artigo 144 da CF, que regula como ela será assegurada para a população, “segurança pública, dever do Estado, DIREITO e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”. Esse é o artigo mais comumente lembrado quando falamos do tema, mas quase sempre para dizer qual corporação/instituição pode ou não atuar no campo.

Porém, neste mesmo caput, o Artigo 144 faz relação a um fato central, ou seja, explicita que segurança é um direito e, enquanto tal, está inscrito no preâmbulo da Constituição Federal e nos Artigos 5o e 6o, que tratam dos direitos fundamentais. Diz o Preâmbulo:

“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL”

Já o artigo 5º, por sua, vez, diz, em seu caput, que: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes”. Termos esses que se traduzem em 78 itens ou premissas fundamentais que precisam ser observadas na organização do Estado e na sua forma de agir.

Entre eles, vários associados à ação em comunidades, como o III, que diz que ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;  o XLIX, que assegura aos presos o respeito à integridade física e moral; ou o XLVII, que reforça que não haverá penas de morte, salvo em caso de guerra declarada.

Na Constituição e/ou na legislação infraconstitucional, contudo, não há uma definição clara sobre o que significa “ordem pública”, deixando para as polícias a interpretação operacional do que significa mantê-la. Isso aumenta a discricionariedade e reduz controles. Aqui uma evidência da importância do julgamento da ADPF 635, pois ela pode ter um impacto prático muito maior do que o inicialmente previsto. Ela pode dar balizas para a modernização jurisprudencial da legislação, ainda sustentada por normas anteriores a 1988.

Por exemplo, o “poder de polícia” é regulado apenas no Código Tributário Nacional, de 1966, em seu artigo 78, onde está definido que:

“Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.

Parágrafo único. Considera-se regular o exercício do poder de polícia quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com OBSERVÂNCIA DO PROCESSO LEGAL e, tratando-se de atividade que a lei tenha como discricionária, sem ABUSO OU DESVIO DE PODER”

A ADPF é importante, ainda, pois a própria Constituição, em seu Artigo 144, parágrafo 7º, prevê que “a lei disciplinará a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a EFICIÊNCIA de suas atividades“. Oras, não preciso ser jurista para interpretar que “EFICIÊNCIA”, aqui, é garantir o que está previsto no preâmbulo e no capítulo dos direitos fundamentais e que, portanto, as polícias não podem tudo, até porque não faltam leis que disciplinam a ação do Estado, a exemplo do Código de Processo Penal, a Lei que cria o Sistema Único de Segurança, a  Improbidade Administrativa, entre outras.

O STF tem a oportunidade de, na ADPF 635, atualizar a jurisprudência de modo a disciplinar tais tópicos e modernizar doutrinas de atuação policial frente ao que a CF prevê. O CNMP, por sua vez, dado que o Ministério Público detém a prerrogativa de controle externo da atividade policial não precisaria aguardar o STF e poderia, ele próprio, ampliar a ação dos Ministérios Públicos para além do controle de cada caso; do controle de eventuais desvios individuais de conduta. É preciso tratar segurança como um direito coletivo e difuso e cobrar os responsáveis por sua garantia para que ele seja implementado de acordo com a premissa de ser um direito fundamental inalienável e condição para o exercício da cidadania.

O Brasil precisa atualizar sua legislação e cobrar os órgãos para se ajustarem ao ordenamento constitucional. Isso significa repensar leis gerais ou orgânicas, normas operacionais e mecanismos de governança e controle. As polícias não podem ter liberdade para decidirem sobre quando vão respeitar decisões da Justiça. Uma segurança pública de fato eficiente pressupõe respeito incondicional às regras do jogo e, no Estado de Direito, quem dá a última palavra é o Judiciário. Não podemos aceitar nada além disso.

 

 

Para saber mais:

Segurança Pública no Brasil: história de uma construção inacabada. Marco Aurélio Ruediger e Renato Sérgio de Lima (orgs). Editora da FGV.

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Despolitizando as polícias https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/08/02/despolitizando-as-policias/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/08/02/despolitizando-as-policias/#respond Mon, 02 Aug 2021 18:09:08 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/17407680_PAZ-320x213.jpeg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1832 PEC 21/021 propõe restrições para militares da ativa das Forças Armadas ocuparem cargos civis. Iniciativa é boa, mas deveria ser estendida também a todos aos policiais brasileiros.

Arthur Trindade Maranhão Costa*

 

Tramita na Câmara dos Deputados uma proposta de emenda constitucional que visa impedir que militares da ativa ocupem cargos civis. A PEC 21, apresentada pela deputada Perpétua de Almeida (PCdoB – AC), foi motivada para impedir situações como a do general Pazuello, que ocupou o cargo de ministro da Saúde sendo militar da ativa. Embora proponha restrições apenas para militares da ativa das Forças Armadas, a PEC deveria ser estendida para todos os policiais brasileiros.

Pazuello não é o único caso. No atual governo federal, vários integrantes das Forças Armadas, Polícias Militares, Polícias Civis e Polícia Federal ocupam cargos civis. Mesmo estando na ativa, estes profissionais respondem por secretarias e departamentos nos diversos órgãos da administração federal como o Ministério da Justiça e Segurança Pública, Ministério da Educação, Ministério da Saúde, Ministério da Ciência e Tecnologia e IBAMA.

A situação não é nova e tampouco se restringe à administração federal. Nos governos estaduais é comum que policiais da ativa ocupem cargos civis de natureza política. Também é frequente a presença de policiais da ativa trabalhando em gabinetes de parlamentares. Até no judiciário podemos encontrar policiais da ativa servindo como assessores de desembargadores.

A prática é ruim por dois motivos. Primeiro, porque desvia policiais das atividades fim. Em alguns estados o número de policiais cedidos – esse é o termo técnico – ultrapassa a casa dos milhares. A falta de efetivos não tem servido de justificativa para diminuir as cessões. As resistências são grandes, começando obviamente pelos policiais cedidos. Parlamentares e magistrados pressionam os governadores para manter policiais como assessores. Os próprios secretários de governo também demandam pela permanência desses policiais em cargos civis.

O segundo motivo é a indesejada politização dessas instituições. Os policiais e militares que ocupam cargos civis não emprestam apenas seus conhecimentos técnicos. Eles constroem também laços de lealdade política que se estendem por vários anos. Ao ocupar cargos civis, esses profissionais ingressam em grupos políticos seletos. Mesmo que retornem para suas instituições de origem, esses laços de lealdade política permanecem e são utilizados em dois sentidos. Eles permitem que as lideranças políticas estendam sua influência para dentro das instituições policiais. Além disso, a lealdade política é utilizada por alguns policiais para obter privilégios nas promoções e nomeações.

Há policiais que passaram a maior parte das suas carreiras em cargos civis de natureza política. É o caso atual ministro da Justiça Anderson Torres. Apesar de ser delegado federal da ativa, Torres passou a maior parte dos seus 18 anos de carreira cedido a outros órgãos. Ele foi assessor no gabinete do deputado federal Fernando Francischini (PSL-PR) por oito anos e permaneceu mais dois anos como secretário de Segurança Pública do Distrito Federal. Não há dúvida que Anderson construiu uma carreira muito mais política do que policial.

Por esses motivos, a PEC 21/2021 é oportuna e deveria alcançar também os policiais. Seria um passo importante para despolitizar as polícias.

*Arthur Trindade M. Costa é professor de sociologia da Universidade de Brasília e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

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Na edição desta semana, leia também “Proteção à narrativa policial distorce julgamentos na Justiça Militar” e “Violência armada atravessa a rua e entra em casa durante a pandemia“.

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A face não regulada do mercado da segurança privada https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/07/30/a-face-nao-regulada-do-mercado-da-seguranca-privada/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/07/30/a-face-nao-regulada-do-mercado-da-seguranca-privada/#respond Fri, 30 Jul 2021 14:24:54 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/605464-high-320x213.jpeg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1834  

Cleber Lopes*

A 15° edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública trouxe novamente um retrato importante do setor de segurança privada regulado pela Polícia Federal. Os dados dão conta da existência de 2.235 empresas especializadas na prestação de serviços de vigilância patrimonial intramuros, transporte de valores, escolta armada e segurança pessoal privada; 236 cursos de formação de vigilantes; e 1.154 empresas que organizam seus próprios serviços de vigilância ou transporte de valores. Essas organizações empregam cerca de 526 mil vigilantes, número superior à soma dos efetivos das polícias militares e civis (500 mil policiais).

Embora o setor regular de segurança privada seja amplo, ele é apenas a face mais formal e visível do mercado de proteção existente na sociedade brasileira. A maior parte desse mercado é formado por um universo desprovido de regulação estatal. Esse universo é composto por (a) organizações formais que prestam serviços regulados pela Polícia Federal, mas sem autorização; (b) organizações formais que atuam em áreas não reguladas, como segurança eletrônica, serviços de investigação particular, vigilância em vias públicas e outras; (c) organizações informais que vendem serviços de segurança à revelia da lei ou sem qualquer controle estatal; e (d) “seguranças autônomos” que prestam serviços como freelancer para pessoas ou organizações.

É difícil saber com precisão o tamanho desse universo não regulado. A natureza informal ou irregular de muitas atividades dificulta a mensuração.  Estudo realizado em 2019 com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) sugere que o número de pessoas ocupadas em atividades de segurança privada no Brasil é 2,3 vezes maior do que o número de vigilantes que atuam no setor regulado pela Polícia Federal. Esses números certamente estão subestimados, já que a PNAD tem dificuldades para captar ocupações irregulares como a de agentes de segurança pública que prestam serviços de segurança privada em seus horários de folga.

Existe uma ampla zona de intersecção entre os setores de segurança pública e segurança privada no Brasil. A participação de agentes públicos na gestão ou na operação de empresas de segurança é proibida pelas organizações de segurança. Entretanto, essa proibição não tem impedido que membros dessas organizações comandem empresas ou façam bicos como seguranças. Sujeitos a escalas de trabalho longas (12 ou 24 horas, por exemplo) seguidas de períodos de descanso igualmente longos (48 ou 72 horas, por exemplo), muitos agentes de segurança pública buscam um segundo emprego nos momentos reservados ao descanso. A prática é tolerada nas organizações de segurança pública como uma política informal de compensação aos baixos salários pagos pelo Estado. Quando a oportunidade é boa, é o trabalho no setor público que passa a ser o segundo emprego que complementa a renda dos agentes e fornece os recursos valorizados pelos contratantes – a arma de fogo, o treinamento, os contatos privilegiados com as polícias e a autorização para usar recursos coercitivos em nome do Estado.

A existência desse mercado de proteção não regulado pelo Estado tem inúmeras consequências. Uma delas recai sobre o setor regular de segurança privada, que enfrenta a concorrência predatória de provedores de segurança clandestinos cujas práticas frequentemente prejudicam o processo de profissionalização do setor. Outra recai sobre a área de segurança pública, cuja qualidade dos serviços é prejudicada pelo descanso indevido dos profissionais que fazem bico e pela sua maior exposição à violência letal. Como o Anuário Brasileiro de Segurança Pública vem mostrando, em torno de 2/3 dos policiais militares e civis brasileiros são mortos fora de serviço, em muitos casos em um segundo emprego como segurança. Por fim, a ausência de controle sobre provedores de segurança representa uma ameaça à liberdade e à vida das pessoas, como casos de abusos recentes indicam. Em situações extremas, essa ausência de controle pode resultar na constituição de organizações especializadas em matar e oferecer proteção a atores criminais, como é o caso do “Escritório do Crime” no Rio de Janeiro, organização informal ligada ao assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes.

No momento em que o mercado de segurança privada se torna objeto de preocupações públicas, impulsionadas pelo assassinato de João Alberto Silveira Freitas por seguranças de uma loja do Carrefour de Porto Alegre, é importante olhar para a face não regulada do mercado de proteção brasileiro e discutir como controlá-la. É onde os olhos menos enxergam que estão os maiores perigos.

 

* Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina e coordenador do LEGS – Laboratório de Estudos sobre Governança da Segurança.

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Efeito Contágio: o papel da mídia na repetição de assassinatos em massa https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/05/14/efeito-contagio-o-papel-da-midia-na-repeticao-de-assassinatos-em-massa/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/05/14/efeito-contagio-o-papel-da-midia-na-repeticao-de-assassinatos-em-massa/#respond Fri, 14 May 2021 22:04:40 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/Back-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1772 Ampla divulgação de massacres pode contribuir para a ocorrência de casos semelhantes. Jornalistas devem evitar citar o nome dos perpetradores e não publicar suas fotos

 

Caroline Back*

Mais um caso de assassinato em massa chocou o país no dia 04/05: um rapaz de 18 anos invadiu uma creche no interior de Santa Catarina e matou a golpes de facão três crianças e duas professoras, tentando em seguida cometer suicídio. A ocorrência de mais essa tragédia evidencia uma preocupação: há algo que se possa fazer para tentar evitar casos como esses?

Nesse sentido, este artigo busca trazer reflexões acerca da cobertura midiática dessas ocorrências e a possível influência em novos casos, o chamado “efeito contágio”. Além disso, oferece orientações para direcionar a cobertura de tais eventos de forma a minimizar esse efeito.

Cobertura midiática e o efeito contágio

Há muito tempo, teóricos da psicologia e sociologia sabem que comportamentos tendem a ser imitados com base nas suas consequências e esse efeito pode ser particularmente devastador no caso de comportamentos violentos.

Exemplo disso é o chamado “efeito Werther”, termo proposto pelo sociólogo David Phillips, em 1974, para descrever a influência da divulgação de atos suicidas na ocorrência de outros casos. O fenômeno foi observado na Alemanha, no final do século XVIII, após uma onda de suicídios ter sido relacionada ao trágico desfecho do personagem Werther – da célebre obra de Johann Von Goethe, publicada em 1774.

Acredita-se que o mesmo fenômeno esteja relacionado aos casos de assassinatos em massa, o chamado “efeito contágio”, indicando que a ampla divulgação dos massacres possui o efeito de gerar outros casos semelhantes, de indivíduos que buscam imitar os ataques e receber a mesma atenção.

Esse fenômeno pode ser explicado, em parte, pela ampla publicidade que se dá a tais eventos. Por exemplo, um levantamento mostrou que os autores de sete assassinatos em massa entre 2013 e 2017 receberam aproximadamente US$ 75 milhões em menções de mídia gratuitas. Esse tipo de publicidade gratuita pode ter o mesmo efeito de publicidades pagas, aumentando o número de interessados no assunto e inspirando a prática de novos casos.

Além disso, já foi demonstrada correlação positiva entre o número de vítimas e a publicidade obtida pelo agressor. Um estudo que analisou assassinos em massa entre os anos de 1976 e 1999 descobriu que aqueles que mataram e feriram mais vítimas tinham uma probabilidade significativamente maior de aparecer no jornal The New York Times em comparação aos casos em que houve menos derramamento de sangue. Ou seja, a maior atenção recebida pode ser um incentivo a mais para o criminoso matar o maior número de vítimas possível.

Tal fato tem uma explicação psicológica: acredita-se que uma das características frequentes em assassinos em massa é a presença de um traço narcísico, que os leva a querer chamar a atenção da sociedade para seus atos “grandiosos” e até mesmo uma espécie de “competição” com outros ofensores para fazerem o maior número de vítimas.

Nesse sentido, Lankford documentou 24 exemplos de perpetradores que admitiram abertamente buscar fama e citou casos adicionais em que há fortes evidências comportamentais que indicam essa intenção. Alguns desses indivíduos estavam inclusive competindo com outros para se tornar o assassino em massa mais famoso da história.

Cobertura midiática e a influência em novos casos: dados assustadores

Para compreender melhor esse fenômeno, estudos buscaram identificar a influência da divulgação midiática na ocorrência de novos ataques. A maior parte deles foi feita com base em tiroteios em massa, que é reconhecidamente a forma mais comum desses ataques. Os dados são assustadores: um estudo realizado em 2015 estimou que cada evento possa incitar pelo menos 0,30 novos casos.

Outro propôs uma metodologia para estabelecer uma relação de causa e efeito entre os eventos. Ao analisar casos entre 2013 e 2016, nos EUA, concluiu que nada menos do que 58% de todos os tiroteios em massa podiam ser explicados pela cobertura de notícias. Os estudos ainda apontam um período de quatro dias a duas semanas em que essa influência estaria presente.

Recomendações

Assim, as principais recomendações para a cobertura desses eventos na mídia são simples e práticas, mas podem ser muito efetivas:

1. Não citar o nome do perpetrador nem sua foto;

2. Em vez disso, usar o ano, local do ataque e uma palavra como “perpetrador” ou “suspeito”;

3. Não usar nomes, fotos ou imagens de perpetradores anteriores;

4. Evitar retratar o indivíduo como “competente” no seu intuito homicida;

5. Evitar retratá-lo como “agressivo” ou “perigoso”, pois pode ser uma espécie de recompensa ou atributo a ser imitado;

6. Relatar todo o restante sobre o caso, com a quantidade de detalhes desejada.

Quando o assunto for a cobertura dos assassinatos em massa: “não os nomeie, não os mostre, mas relate todo o resto”.

 

*Psicóloga na Secretaria de Segurança Pública (GMSJP – PR); Especialização em Segurança Pública; Cursando Pós-Graduação em Neurociência Criminal e Comunicação não-verbal; Graduação em Psicologia (PUCPR); Cursando Graduação em Direito (FESPPR); Membro do Conselho Comunitário de Execuções Penais de São José dos Pinhais (CCEP-SJP).

Acompanhe as edições semanais integrais do Fonte Segura, a newsletter com dados e análises sobre segurança pública. Acesse: fontesegura.org.br

Na edição desta semana, leia também “Rio de Janeiro e o desgoverno da segurança” e “Ministério Público e o controle da atividade policial“.

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Rio é um dos maiores desafios de Segurança Pública no mundo https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/05/10/rio-maiores-desafios-seguranca-publica-mundo/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/05/10/rio-maiores-desafios-seguranca-publica-mundo/#respond Mon, 10 May 2021 22:47:54 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/policiais-foto-320x213.jpeg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1764 O controle do uso da força policial é preocupação permanente para democracias liberais consolidadas; reforma da polícia ajudou muitas das grandes cidades norte-americanas a atingirem os menores patamares de criminalidade de toda a sua história 

Alberto Kopittke*

 

Com uma grande união de forças, liderança política e investimento financeiro seria plenamente possível construir um plano capaz de reduzir a violência no Rio de Janeiro. Sim, o Rio de Janeiro é um dos maiores desafios para a Segurança Pública do mundo, mas já existe conhecimento suficiente acumulado sobre o que funciona para reduzir a violência para construir um grande e exitoso plano na cidade. Não se acabaria com o tráfico de drogas, assim como ele não acabou em Nova York, nem Medellín, mas seria possível retirar das organizações criminosas o controle de comunidades, armamento de grande porte e controlar homicídios e roubos.

Um plano de longo prazo, suprapartidário, que envolvesse um esforço de união nacional, com ações bem planejadas e coordenadas que viriam desde a reformulação do sistema prisional, um plano de reurbanização, a implementação de metodologias estruturadas de prevenção à violência e programas sociais, tecnologia de ponta e um significativo fortalecimento da área de inteligência das forças de segurança, sem dúvida conseguiria reduzir a violência de forma sustentável e permanente na cidade.

Tarefa mais difícil e demorada, no entanto, é reduzir a violência e a corrupção policiais. A chacina de Jacarezinho veio se somar a um macabro e longo histórico de episódios brutais provocados por algumas forças de segurança pública do país, totalmente fora de qualquer parâmetro razoável, compreensível e aceitável. Além das dezenas de jovens, a cada nova chacina morre também nossa democracia.

Nos EUA, o chamado “Primeiro Grande Despertar” contra a violência policial chacoalhou o país entre os anos 1960 e 1970, de forma muito mais forte do que nos episódios recentes das mortes de David Brown e George Floyd. A comunidade negra daquele país se organizou e passou a não aceitar mais a forma como era tratada pela polícia, resultando em grandes manifestações e muitos episódios de confrontos violentos que paralisaram as grandes cidades, às vezes por semanas, e em muitos casos resultaram em dezenas de mortes.

Como consequência daquelas mobilizações, prefeitos progressistas, chefes de polícia reformistas e a Suprema Corte realizaram reformas profundas sobre o controle do uso da força. Essas reformas incluíram a demissão de dezenas de policiais com histórico de violência, a redução da discricionariedade dos policiais, o fortalecimento dos mecanismos de controle interno, o aumento da transparência e a imposição de indenizações milionárias pela justiça como consequência de episódios de violência. Como resultado, entre 1970 e 1985, o número de mortes provocadas pela polícia caiu 51%, sendo que essa queda foi de 72% entre jovens negros entre 15 a 34 anos e a diferença entre o número de negros e brancos mortos pela polícia caiu de 7,5 vezes para 3. O problema é historicamente tão profundo que mais de mil pessoas ainda nos dias de hoje são mortas pela polícia, muitas vezes com brutalidade racista.

Vinte anos depois das grandes reformas internas, fato é que uma nova geração de policiais, formada dentro de uma nova mentalidade, liderou experiências significativas de redução da criminalidade e as polícias saíram fortalecidas e modernizadas desse processo, além de mais efetivas para prevenirem a violência. Essas novas polícias representaram o avanço decisivo para muitas das grandes cidades norte-americanas atingirem os menores patamares de criminalidade de toda a sua história.

Já no Brasil, nem mesmo as 45 mil mortes provocadas por intervenção policial na última década são capazes de mobilizar forças para dialogar sobre mudanças necessárias nas corporações. Ainda que ela seja agora exaltada como virtude, a violência policial não começou no atual governo. Durante os sete governos democráticos que o país teve desde a Constituição de 1988, com importantes exceções, o tema não foi tratado com a prioridade devida, o que agora vemos que cobra um alto preço para a democracia no país. E mesmo depois de tudo o que vivemos nos últimos anos, ainda não é possível vislumbrar que algum novo governante democrático que suba a rampa do Palácio do Planalto apresentará uma agenda de grande impacto nessa área.

O Governo Federal precisa assumir um novo papel na Segurança Pública. Instituições estaduais não conseguem investigar e promover mudanças de fato em situações tão graves como a do Rio de Janeiro; assim como a Inspetoria do Exército, responsável pelo controle das polícias militares, e o Ministério Público, responsável pelo controle das polícias civis, foram incapazes de promover avanços substanciais nesse tema desde a Constituição de 1988.

Um sistema federal de controle das polícias, com uma nova instituição federal especializada, poderia ter um papel importante. Nos EUA a Divisão de Direitos Civis do Departamento de Justiça tem poderes para realizar investigações e processar policiais e até mesmo de realizar intervenções sobre as polícias, com o afastamento de toda a sua direção e a realização de remodelações internas profundas, o que já foi feito 17 vezes desde 1994.

A Inglaterra, que tem índices mínimos de criminalidade e de violência policial, possui um órgão federal chamado Escritório Independente sobre Conduta Policial. Sempre que uma das 43 ouvidorias estaduais recebe uma denúncia de um fato grave cometido por algum policial ele deve obrigatoriamente repassar essa denúncia para o Escritório Nacional, que inicialmente monitora as providências adotadas em nível estadual e quando necessário abre uma investigação independente sobre o caso. O órgão possui 890 servidores e um orçamento de 73 milhões de libras, o equivalente a R$ 335 milhões. As investigações podem resultar em denúncias ao Ministério Público Federal ou em recomendações para modificações em protocolos operacionais, que têm poder vinculativo e devem obrigatoriamente ser adotadas pelas polícias.

Como se vê por esses exemplos, o tema é uma preocupação permanente das democracias liberais consolidadas e não de regimes autoritários de esquerda ou de direita.

No Brasil, algumas medidas que não exigiriam grande volume de recursos, mas sim a disposição política de lideranças democráticas, poderiam gerar grande impacto. Uma pesquisa anual de vitimização e avaliação das polícias, como é feita em muitos países desenvolvidos, poderia orientar o repasse de recursos federais e determinar a abertura de investigações especiais naqueles locais em que muitas pessoas afirmarem não confiar na polícia ou serem vítimas de violência policial. Relatórios anuais de letalidade policial, uso de armas de fogo e de todas as formas de uso da força poderiam mostrar as unidades onde o problema da violência se concentra. Sistemas de alerta precoce poderiam auxiliar a expulsar novos policiais de perfil violento.

Câmeras de corpo ligadas automaticamente poderiam ajudar a trazer informações importantes sobre as ocorrências, assim como a obrigatoriedade de acompanhamento por diferentes instituições de controle das operações de risco em salas de comando e controle especiais, com o registro formal das ordens de toda cadeia de comando. A restrição de determinados tipos de treinamento e armas a unidades especiais, empregadas a partir de um protocolo nacional e forças tarefas entre o poder judiciário, ministério público e polícia federal poderiam combater grupos de extermínio altamente letais. Essas são algumas das mudanças possíveis, sem falar ainda em outras medidas que o Poder Judiciário poderia adotar, como a responsabilização dos superiores quando se tratar de Operações oficiais.

É sempre importante destacar que embora o tema seja muito grave, ele é altamente concentrado em alguns estados brasileiros e análises mais profundas possivelmente demonstrarão que se concentram em poucas unidades do conjunto das instituições e em pequenos grupos dentro delas, que mancham reiteradamente a imagem das instituições. Reformas internas importantes inclusive já tem sido feita em algumas instituições do país e esse processo deveria se tornar uma bandeira de todos aqueles que efetivamente defendem policiais modernas e efetivas contra o crime.

A inédita Lei George Floyd, fruto de mais um despertar e da nova onda de mudanças em curso nos EUA, tem como foco a regulação do uso da força pelas polícias e deverá ser aprovada nos próximos dias. Cabe pelo menos sonhar com um diálogo amplo das forças democráticas da sociedade brasileira sobre o que poderia vir a ser uma Lei Jacarezinho, para ajudar o país a dar os primeiros passos contra chacinas a céu aberto executadas por quem deveria antes de tudo proteger e não manchar comunidades inteiras de pavor e de sangue.

*Diretor Executivo do Instituto Cidade Segura e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

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Na edição desta semana, leia também “Ciência e erro na investigação policial” e “Uma milícia no Rio Grande do Sul?”.

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Covid-19 e morte de policiais: crônica de uma tragédia anunciada https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/04/29/covid-19-e-morte-de-policiais-cronica-de-uma-tragedia-anunciada/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/04/29/covid-19-e-morte-de-policiais-cronica-de-uma-tragedia-anunciada/#respond Thu, 29 Apr 2021 22:06:14 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/alcadipani-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1734 Os óbitos de policiais na pandemia deixam claro que a prevenção e o cuidado com a vida desses profissionais não passam de discurso que não se converte em atitudes práticas

Rafael Alcadipani*

Logo no início da pandemia de Covid-19, uma parceria de pesquisadores da Fundação Getúlio Vargas e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, da qual fiz parte, realizou um estudo mostrando que quase 70% dos policiais no Brasil tinham medo de serem contaminados e de morrerem da doença, bem como de levá-la para suas famílias. O estudo já indicava que metade dos policiais tinham um colega ou parente com suspeita de estarem com o vírus. Apenas 30% dos policiais se sentiam preparados para trabalhar durante a pandemia e nos estados do país pouco mais de 30% relatavam que haviam recebido os Equipamentos de Proteção Individual (EPI) para se protegerem da doença durante o turno de trabalho.

Ou seja, o estudo já apontava que os policiais não se sentiam preparados e não estavam recebendo nem treinamento muito menos equipamento de proteção adequados para lidar com a pandemia. Embora houvesse diferenças entre o preparo de instituições nos diferentes estados da federação, era nítida e clara a urgência de que medidas fossem tomadas para evitar uma alta vitimização de policiais no Brasil.

Embora tenha ganhado repercussão da imprensa e estivesse disponível ao público interessado, como é típico de nosso país, o estudo não despertou grande interesse dos gestores de segurança pública brasileiros e, ao que tudo indica, seus achados não sensibilizaram as secretarias de segurança dos estados – muito menos o Governo Federal – a adotar uma política nacional de prevenção a morte de policiais por Covid-19.

Os números recentes do Monitor da Violência mostram que a Covid-19 afetou bruscamente as instituições policiais. O número de policiais mortos pela doença é mais do que o dobro do que o de policiais que foram assassinados nas ruas em 2020 – 465 profissionais atingidos pela pandemia contra 198 assassinados em serviço ou na folga. Além disso, um a cada quatro policiais brasileiros foi afastado do seu trabalho devido a doença e seus riscos. Rio de Janeiro, Amazonas e Pará foram os Estados onde mais policiais foram vitimados pela pandemia. Uma vez que o alerta havia sido dado, são mortes que poderiam ter sido evitadas.

A morte de tantos policiais pela Covid-19 escancara o grave problema de gestão da Segurança Pública em nosso país. Boa parte das decisões são tomadas sem o recurso a estudos ou pesquisas. Ou seja, raramente decisões neste campo são tomadas tendo por base a ciência, tema tão em voga durante esta pandemia. Em geral, usa-se o bom senso de quem está na ponta da linha e acha que sabe por ter estado tantos anos realizando a função de segurança pública. Esquecem-se que é possível passar uma vida inteira trabalhando errado.

Além disso, as mortes de policiais durante a pandemia deixam claro que a prevenção e o cuidado com a vida do policial são um mero discurso que não se converte em atitudes práticas. Qual o motivo do Governo Federal não ter articulado uma política nacional de proteção aos policiais para a pandemia? Quais foram as ações concretas tomadas pelos Secretários de Segurança dos Estados para proteger os policiais além da distribuição formal de algumas máscaras e álcool gel? É preciso ainda destacar que as culturas organizacionais das polícias valorizam a virilidade e o tomar risco. Isso faz com que a prevenção com a própria saúde e o mero uso de máscaras sejam malvistos em muitos círculos de policiais. Isso se torna ainda mais nocivo quando as lideranças não assumem a sua responsabilidade de cobrar o uso de máscaras por parte dos policiais.

Embora alguns estados tenham vacinado seus policiais, no atual cenário isso não é garantia de nada. Novas cepas podem surgir diminuindo a eficácia das vacinas e o próprio valor da eficácia real dos diferentes imunizantes é ainda objeto de estudo. A prevenção da Covid-19 passa necessariamente pelo distanciamento social e pelo uso de máscaras de boa qualidade. Raramente, porém, policiais estão usando as máscaras N95. As mortes que aconteceram até o momento são a crônica de uma tragédia anunciada. E se nada for feito de efetivo para preservar a vida dos policiais, a tragédia irá ganhar cores cada vez mais dramáticas.

 

*Professor Titular da FGV-EAESP e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

 

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Na edição desta semana, leia também “Tiroteio em massa nos EUA” e “Policias civis, em busca de identidade“.

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O aumento das agressões às mulheres em dias de partidas de futebol https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/02/11/o-aumento-das-agressoes-as-mulheres-em-dias-de-partidas-de-futebol/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/02/11/o-aumento-das-agressoes-as-mulheres-em-dias-de-partidas-de-futebol/#respond Thu, 11 Feb 2021 16:56:45 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/02/fotofutebol-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1665 Estudos apontam relação entre derrotas e aumento nas agressões e demonstram que atos não podem ser vistos como descontrole ou fruto de explosão emocional, mas antes como um dispositivo que fortalece a ideia de um gênero dominante.

Amanda Pimentel*

 

Os primeiros dias do mês de fevereiro deste ano foram marcados não apenas pela comemoração da vitória do Palmeiras na final da Copa Libertadores da América, mas também, e infelizmente, por um caso de homicídio ocorrido em razão de um desentendimento originado por causa do jogo. Um casal que acompanhava a partida em sua casa em um condomínio na Vila Mangalot, zona norte de São Paulo, iniciou uma discussão após comemorações da esposa, palmeirense, pelo título do clube, o que incomodou seu marido, torcedor do Corinthians.

Apesar de parecer uma exceção, casos de violência contra mulheres ocorridos após o término de partidas de futebol são muito mais comuns do que imaginamos. A relação entre consumo de esportes televisionados e o aumento do número de casos de violência contra a mulher começou a receber atenção do público em geral, profissionais de saúde e comunidade acadêmica, já em 1993, quando a rede de televisão NBC transmitiu um programa de combate à violência contra a mulher durante sua cobertura do Super Bowl, a final do campeonato de futebol americano, em razão do aumento de mais de 40% de casos de violência doméstica ocorridos neste dia (Holler, 1993).

Desde então, importantes pesquisas que abordam a relação entre esporte e violência começaram a ser desenvolvidas (ver: Card e Dalh, 2011; Gantz, Bradley e Wang, 2006). A maioria desses novos estudos concentrou-se em analisar os impactos das partidas de futebol no comportamento violento dos seus telespectadores, buscando entender como isto contribui com o aumento de casos de violência doméstica. Controlando as expectativas pré-jogo das torcidas, isto é, se o público esperava que o seu time ganharia ou perderia, e o tamanho da audiência das partidas, a maior parte dos autores descobriram que as perdas fortuitas de times da casa, quando era esperado que ganhassem, aumentavam os incidentes de violência contra a mulher.

Um aumento de 10% das taxas de violência doméstica foi identificado nesses casos e se concentrou, sobretudo, nos momentos mais próximos ao final das partidas. O incremento é ainda maior em disputas entre times tradicionalmente rivais ou ainda em partidas decisivas ou eliminatórias, apresentando 1/3 a mais de alargamento nas taxas de violência do que dias de grandes feriados nacionais, por exemplo. Desse modo, não são todas as partidas de futebol que contribuem para o aumento dos índices de violência doméstica, mas majoritariamente aquelas que ocorrem em finais de semana e em que uma derrota ou vitória contrariam o resultado esperado pela torcida, especialmente em jogos ocorridos dentro da casa e contra times rivais. A mensuração “ganho ou perda” adquire grande importância nesse contexto, assim como a tradição de um time e a rivalidade que ele mantém com outros.

Nas pesquisas realizadas, essas variáveis são importantes porque são capazes de produzir fortes choques emocionais nos homens, principais fãs do esporte, contribuindo assim para o aumento de ações indesejadas, como a violência perpetrada contra a própria parceira. Outrossim, a natureza violenta do esporte futebol americano, constantemente referenciada pelos canais de televisão que os transmitem, parece ter capacidade para influenciar o comportamento dos seus telespectadores.

Em razão dessa intensa associação entre homens, esporte e violência, realizada por grande parte da bibliografia especializada, muitos pesquisadores começaram também a analisar a relação entre masculinidades e perpetração de violência física, em um campo conhecido como “Men’s studies” (estudos de masculinidades). Desconstruindo as narrativas que argumentam que esse tipo de comportamento é natural, esse campo de estudos defende que o cometimento de violência perpassa necessariamente a construção social de uma identidade de gênero. Para eles, esse tipo de violência não pode ser visto como um ato descontrolado ou como mero fruto de uma explosão emocional, mas antes como um dispositivo que fortalece a ideia de um gênero dominante.

Apesar de haver um debate internacional sobre o assunto, no Brasil a relação entre futebol e violência doméstica ainda carece de informações e dados qualificados. É nesse sentido que o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em parceria com o Instituto Avon, está desenvolvendo um projeto inédito que visa compreender como essa relação ocorre, a partir da coleta e análise cruzada de dados dos registros oficiais de violência doméstica com informações sobre partidas de futebol em alguns estados brasileiros. A expectativa é que os resultados encontrados nesta pesquisa possam contribuir para um maior entendimento sobre o cenário de ocorrências de violência contra a mulher no Brasil.

 

*Mestre em Direito pela PUC-Rio e pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

 

Referências citadas no texto:

Card, David, and Gordon B. Dahl, “Family Violence and Football: The Effects of Unexpected Emotional Cues on Violent Behavior,” National Bureau of Economic Research Working Paper no. 15497, 2009.

Gantz, Walter, Samuel D. Bradley, and Zheng Wang, “Televised NFL Games, the Family, and DomesticViolence,” pp. 365–382 in Handbook of Sports and Media, ed. ArthurA.RaneyandJenningsBryant, (Mahwah, NJ: Erlbaum, 2006).

Hohler, B. Super Bowl Gaffe. The Boston Globe, p. 1, 1993, February, 2.

 

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Na edição desta semana, leia também “O legado político da Lava Jato” e “A letalidade como método de ação policial”.

 

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O novo protocolo de comunicação de violência contra a mulher https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/02/04/o-novo-protocolo-de-comunicacao-de-violencia-contra-mulher/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/02/04/o-novo-protocolo-de-comunicacao-de-violencia-contra-mulher/#respond Thu, 04 Feb 2021 19:37:44 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/02/fotoviolênciamulher-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1652 A compreensão da nova lei levanta questões importantes sobre os direitos à privacidade da mulher e ao sigilo médico

Marisa Sanematsu*

A notificação dos casos de violência contra a mulher atendidos em unidades de saúde públicas e privadas é obrigatória desde 2003, quando entrou em vigor a Lei nº 10.778, cujo principal objetivo foi criar uma base de dados estatísticos que permitisse dimensionar uma parcela do problema e subsidiar a criação e implementação de políticas públicas de enfrentamento à violência contra a mulher.

A saúde sempre foi a principal “porta de entrada” para o atendimento da mulher em situação de violência, tanto por ser o primeiro lugar a que ela recorre após uma violência física como porque as/os profissionais que atuam nesses serviços podem muitas vezes identificar – mesmo que ela própria não indique – se a mulher sofreu ou vem sofrendo violência física, psicológica e/ou sexual.

Desde o advento da lei, profissionais que atuam nas unidades de saúde vêm sendo capacitados a identificar, encaminhar e registrar em formulário próprio os casos de violência doméstica atendidos nas unidades, que alimentam a base de dados do Sinan (Sistema de Informação de Agravos de Notificação) do Ministério da Saúde.

Contudo, desde março de 2020, entrou em vigor a Lei nº 13.931, que altera a Lei nº 10.778/2003 para determinar que “os casos em que houver indícios ou confirmação de violência contra a mulher (…) serão obrigatoriamente comunicados à autoridade policial no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, para as providências cabíveis e para fins estatísticos”.

Preocupado com o impacto que a mudança poderia produzir sobre as mulheres e profissionais de saúde, em setembro de 2019, o Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (Nudem), da Defensoria Pública de São Paulo, já havia emitido Parecer Técnico recomendando a não aprovação do projeto que deu origem à lei, por considerar que a alteração “viola as garantias da intimidade, vida privada e do sigilo médico-paciente”.

Com a aprovação da Lei nº 13.931, em maio de 2020 o Nudem SP divulgou outro comunicado, em que declara que, após enviar recomendações ao Ministério da Saúde para a garantia dos direitos das mulheres e profissionais envolvidos, a pasta respondera, em abril, que a regulamentação que estava sendo construída iria incluir “recomendações de não envio do prontuário e ficha de notificação de violência às autoridades policiais, bem como da importância da autorização da mulher nas situações em que as informações de identificação pessoal precisarão ser repassadas às autoridades policiais para medidas de proteção emergenciais”.

Embora a lei tenha entrado em vigor em 10 de março de 2020, isto é, 90 dias após sua sanção, somente em janeiro de 2021 o Ministério da Saúde divulgou a Portaria nº 78, com as “diretrizes para a comunicação externa dos casos de violência contra a mulher às autoridades policiais, no âmbito da Lei nº 10.778, de 24 de novembro de 2003”.

O art. 14-D da Portaria nº 78 determina que “a comunicação dos casos de violência contra a mulher à autoridade policial deverá ser feita: I – de forma sintética e consolidada, não contendo dados que identifiquem a vítima e o profissional de saúde notificador; ou II – em caráter excepcional, com identificação da vítima de violência, em caso de risco à comunidade ou à vítima, a juízo da autoridade sanitária e com conhecimento prévio da vítima ou do seu responsável”.

Para quem atua no atendimento de saúde, a medida torna mais complexos os fluxos de atendimento e registro de informações. Além disso, cabe perguntar: esses profissionais estão capacitados a identificar uma situação que envolva risco real para a vítima? E a polícia, está preparada para tomar as “providências cabíveis” sobre as novas denúncias que receber ou estas serão apenas incluídas em uma base de dados inútil?

Além de compreender o que muda com a nova lei, não apenas para mulheres e profissionais de saúde, mas também para agentes da segurança pública, é preciso perguntar: a quem serve essa modificação? Quando se fala em “notificação compulsória” de um agravo de saúde, o objetivo é subsidiar com dados internos a vigilância epidemiológica e orientar ações para aperfeiçoar a identificação, a prevenção e o controle.

Mas, quando se determina a comunicação (externa) à polícia “para as providências cabíveis”, passam a fazer parte do debate, além dos direitos à privacidade da mulher e ao sigilo médico, outras questões complexas e ainda sem respostas, como a garantia de um correto encaminhamento do caso pela autoridade policial, que garanta não apenas a confidencialidade dos dados, mas também a segurança e a proteção da vítima e da/o profissional de saúde, que podem ser alvos de retaliações por parte do agressor.

Importa especialmente perguntar às mulheres se quando buscam assistência na saúde elas querem que seu problema se torne um caso de polícia. Não se trata de defender que os agressores não sejam responsabilizados, mas não se deve condicionar o acesso à saúde ao registro policial, mesmo que apenas em um banco de dados e não em um B.O. Mais uma vez, com o intuito de proteger as mulheres, mais violências serão praticadas.

Quando iremos parar de impor às mulheres aquilo que consideramos “o melhor para elas” e começaremos a ouvi-las e compreendê-las, para atendê-las de forma adequada em suas necessidades e desejos?

 

*Jornalista, mestre em comunicação pela Escola de Comunicações e Arte da Universidade de São Paulo e diretora de conteúdo do Instituto Patrícia Galvão.

 

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Na edição desta semana, leia também “Os Desafios do Congresso Nacional na Segurança Pública” e “Um breve panorama dos crimes registrados em São Paulo em 2020”.

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O mito do policial herói e a farsa do reconhecimento profissional https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/01/25/o-mito-do-policial-heroi-e-a-farsa-do-reconhecimento-profissional/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/01/25/o-mito-do-policial-heroi-e-a-farsa-do-reconhecimento-profissional/#respond Mon, 25 Jan 2021 14:27:06 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/Fernando-Frazão-Agência-Brasil-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1635 O policial não precisa morrer no cumprimento do dever; necessita reconhecimento pelo serviço público que executa e não pelo sangue que é derramado em falsas batalhas.

Alexandre Pereira Rocha*

Ganhou grande repercussão o assassinato do policial militar Derinalto Cardoso dos Santos ao tentar impedir um assalto na Baixada Fluminense, Rio de Janeiro, no dia 5 de dezembro de 2020. O caso se espalhou rapidamente pelas redes sociais, especialmente no meio policial. Chamou atenção a frieza de um dos assaltantes, que não titubeou em disparar um tiro à queima-roupa na cabeça do policial. Mais um agente de segurança pública se foi. Restam a dor e a indignação de familiares e amigos. Condolências e salvas de tiros. Nada mais.

O caso ficou registrado em filmagens do estabelecimento comercial. O policial Derinalto se depara com um assalto e não declina de sua missão. Assim, ele adentra bravamente na cena do crime. Pelas imagens, parece que Derinalto identifica um suspeito. Mesmo com o delinquente sob sua mira, ele não dispara imediatamente. Por sua vez, um comparsa se aproveita da situação e surpreende Derinalto com um tiro na cabeça. Pessoas correm em desespero. Os assaltantes fogem. Derinalto fica caído no chão.

Por fatalidade, o policial se tornou a vítima no cumprimento do dever. Por isso, ele ganha o reconhecimento póstumo de herói. Ele também seria visto como herói, só que num estágio mais fantasiado, caso tivesse obstado o assalto com tiroteio e morte dos delinquentes. Nessa hipótese, é bem provável que fosse elogiado pessoalmente pelo atual presidente da República Jair Bolsonaro, condecorado pela polícia militar e aplaudido pelo jornalismo pinga-sangue. Não obstante, a realidade é outra: Derinalto foi morto e a designação de mito heróico não muda isso.

A morte do policial Derinalto não é um mito. Da mesma forma, não são lendas os frequentes embates entre criminosos e policiais pelas periferias do Brasil afora. Do mesmo modo não é mito o fato de policiais terem de colocar suas vidas em risco no enfrentamento a delinquentes fortemente armados. Pelo contrário, tudo isso é uma trágica realidade. Mas o mito está nos discursos de certas autoridades, políticos e setores sensacionalistas da imprensa, que lucram com o mantra da guerra contra o crime. O mito está nas representações sociais que idealizam o martírio como próprio do exercício policial.

O mito do policial herói é parte do imaginário social e revigorado por filmes, histórias e romances ao estilo Tropa de Elite. Isso, em si, não é problema. A questão é quando isso se torna parte intrínseca das políticas de segurança pública no Brasil. Esse mito não encontra lastro na realidade, mas em narrativas criadas e replicadas que mascararam dramas da segurança pública. É fato. O mito do policial herói – que é capaz de se imolar em prol da proteção da sociedade – é conveniente para ocultar as precárias condições de trabalho, baixos salários e desvalorização da maioria dos policiais brasileiros.

Esse mito desvirtua o papel do policial como profissional de segurança pública. Isso porque ele consolida conceitos autoritários, seja, em nível individual, ao estimular a agressividade e a coragem visceral como padrão de ser policial; ou ainda, em nível institucional, ao incentivar prioritariamente estratégias bélicas e violentas como formas eficazes de policiamento.

A verdade é que o mito do policial herói é uma farsa de reconhecimento profissional, o qual desconsidera inúmeras discriminações entre cargos e patentes no âmbito das corporações; além das gritantes distorções entre polícias civis e militares em níveis estadual e nacional. Em suma, disfuncionalidades em termos de remunerações, carreiras, organizações, legislações e condições de trabalho, as quais evidenciam que há várias realidades policiais no Brasil, mas todas equivocadamente interpretadas pelo mito do policial herói.

O policial brasileiro não precisa do distintivo de herói. Afinal, isso não agregou nada ao policial Derinalto, bem como para tantos outros policiais que trabalham em situações adversas e desvalorizados profissionalmente. De fato, o que o policial precisa é ser avaliado como oficial de segurança pública, o que implica reformas nas arcaicas estruturas verticalizadas das polícias. Enfim, o que o policial necessita é de profissionalização, para ser reconhecido integralmente pelo serviço público que executa e não pelo sangue que é derramado em falsas batalhas.

Além disso, o tenente-coronel ainda acrescentou que o PM deve adaptar-se ao meio no qual ele está inserido no momento de sua atuação, de forma que ele não pode ser “grosseiro com uma pessoa do Jardins que está ali, andando”.

A partir da fala do referido oficial, nos parece óbvio que os episódios que envolvem o abuso de autoridade, de poder e o excesso de violência por parte das instituições de segurança pública, em especial das PMs, e que são divulgadas pela mídia constantemente, como ocorreu em dois casos neste mês junho de 2020 em SP, corroboram a lógica ideológica da atuação policial no Brasil, que vê no pobre e negro da periferia o seu inimigo a ser combatido e “domado” e, neste sentido, nada melhor que os exemplos da vida nua e crua para desvelar esta realidade.

Que o diga o caso dos PMs que foram solicitados para atender a uma ocorrência de violência doméstica na casa de um empresário morador de Alphaville, um condomínio de alto padrão na Grande São Paulo, e que foram recebidos por ele aos xingamentos, insultos e todos os tipos de grosserias e destemperos típicos de uma elite raivosa e demagógica que, diga-se de passagem, “defende” os policiais nas redes sociais. Importante frisar que todo o rompante autoritário do dito empresário foi gravado, assim como também foi clara a passividade dos policiais militares para agir diante do explícito desacato cometido por parte do “cidadão de bem”.

Por mais que discursos corporativistas de outros policiais queiram defender os PMs utilizando-se do argumento do controle emocional necessário, dificilmente o medo do empresário por sua condição econômica aparece como o fator determinante para o corpo inerte dos policiais diante de uma imagem que exigia uma ação enérgica para conter um agressor em potencial.

No outro caso, ao contrário, imagens gravadas revelaram em cadeia nacional os espancamentos cometidos por PMs a um jovem em uma periferia da zona norte de São Paulo. Na cena, oito PMs usam da brutalidade para cometer a violência contra um jovem passivo que diz “não ter feito nada” e ainda por cima trata os PMs por “senhor”, afirmando ser “trabalhador”. Em uma patrulha com oito policiais, em que todos estão dispostos a usar da violência contra o jovem pobre, fica difícil pensarmos em uma situação de exceção quanto à forma como as PMs atuam nas periferias.

Recordemos do caso “Rambo”, ocorrido na Favela Naval, em Diadema, em 1997, no qual policiais militares foram filmados por um cinegrafista amador violentando e extorquindo moradores em uma blitz, o que resultou na morte do mecânico Mário José Josino, de 29 anos. O PM conhecido por Rambo atirou nas costas do mecânico, que se encontrava em um carro em movimento. Passados quinze anos, e após cumprir oito anos de prisão, Rambo deu uma entrevista à TV afirmando que agiu “para consertar uma sociedade que não tem jeito de consertar”, de certa forma eximindo-se da culpa e racionalizando sua justificativa como se a morte de um homem pobre e inocente não significasse nada.

De um lado, um jovem na periferia paulista, um Josino, um Amarildo e tantos outros que têm em comum o fato de pertencerem aos estratos sociais menos abastados da sociedade, bem como o fato de receberem do Estado, nestes casos representados por suas PMs, os tiros, porradas e bombas. De outro o empresário e a elite como um todo que, para além de já receberem do Estado as PMs para fazer valer seu status quo, também desrespeitam o profissional e, neste contexto, a não ser que sejamos acéfalos ou que tenhamos interesses, fica difícil não ter uma visão crítica sobre a atuação do Estado através dos aparatos de segurança pública, principalmente de suas policias militares, sobretudo no que diz respeito à violência contra os menos favorecidos.

Portanto, quem precisa de polícia e é parado no Brasil, em grande medida, são os “periferizados”, em grande parte negros, vítimas de um processo histórico de abandono, que têm de suportar a autoridade impositiva de uma polícia que foi criada e se desenvolveu para lidar com os pobres e estigmatizados. Pensando por uma lógica psicanalítica, como os PMs em sua maioria se originam das classes médias e baixas, talvez, inconscientemente, eles ajam para exercer poder contra aqueles que representam a projeção deles mesmos, como uma forma de destruir uma imagem que deixa explícito que eles/elas estão também na base maior e inferior da hierarquia social.

Mas, em conjunto, só podemos reproduzir aquilo que aprendemos a fazer pela formação profissional que passamos, pelo machismo e ideal de masculinidade e virilidade, pela pressão grupal, pelo desejo de potência, pelo sadismo em impingir sofrimento ao outro. Tudo isso só revela o quanto a violência policial demonstra ser um problema distante de resolvermos em nossa cada vez mais frágil democracia.

 

*Alexandre Pereira da Rocha é Doutor em Ciências Sociais (UnB), Policial Civil no Distrito Federal (PCDF) e Associado do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

 

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Na edição desta semana, leia também “Saída temporária na execução penal: o paradoxo” e “A sucessão nos Estados Unidos e o perigo das forças de segurança politizadas”

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A proposta de reforma policial afeta o federalismo* https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/01/12/a-proposta-de-reforma-policial-afeta-o-federalismo/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/01/12/a-proposta-de-reforma-policial-afeta-o-federalismo/#respond Tue, 12 Jan 2021 16:49:02 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/tanrg_abr_26042018_0438_1-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1629 Está em discussão no Congresso Nacional um substitutivo ao projeto de Lei 4363/2001, visando alterar a organização das Polícias Militares. A proposta altera fundamentalmente a estrutura do sistema federativo brasileiro, uma vez que reduz drasticamente o poder dos governadores para controlar as polícias militares estaduais. Como agravante, esta discussão ocorre num contexto em que o presidente Jair Bolsonaro, que têm significativo apoio entre policiais militares, trava disputas políticas com governadores em diversos estados do Brasil.

 

Arthur Trindade M. Costa**

Não é de hoje que se discute a necessidade de atualizar a legislação que organiza as Polícias Militares e os Corpos de Bombeiros, regidas ainda por um decreto-lei da ditadura de 1969. Nesses mais de 50 anos de vigência Decreto Lei 667/69, o país passou por significativas mudanças sociais e econômicas. No plano político, o regime militar deu lugar a um novo regime democrático conhecido como Nova República.

Por este motivo diversos projetos de lei têm sido apresentados para reorganizar as polícias. O atual projeto substitutivo, que foi elaborado com ajuda do Conselho Nacional dos Comandantes-Gerais das PMs e dos Corpos de Bombeiros, conta com apoio do governo federal e de algumas entidades de classe como a Federação Nacional de Entidades de Oficiais Militares Estaduais.

O projeto diminui drasticamente os poderes de governadores sobre o comando das Polícias Militares e do Corpo de Bombeiros, uma vez que cria uma lista tríplice para a escolha de comandantes-gerais. O mandato dos comandantes seria praticamente fixo, pois os governadores teriam que justificar a exoneração do comandante-geral. Na prática, além de diminuir o poder dos governadores, o projeto acentuará ainda mais a politização dentro das corporações, já que haveria disputa pela eleição para a lista tríplice.

No que se refere às carreiras, o projeto apresenta mudanças significativas. O texto prevê a criação da patente de general, tal qual nas Forças Armadas. Seriam criadas três novas patentes: brigadeiro-general, major-general e tenente-general. . É importante lembrar que, devido a brechas na legislação, em muitos estados há mais coronéis na ativa do que a quantidade prevista no quadro de efetivo. Nesses estados não faltam generais, mas sobram coronéis.

O projeto permitirá que militares indiciados em inquéritos policiais ou réus em processos possam ser promovidos. Também está prevista a promoção por bravura desde que seja comprovado risco real da própria vida. Além disso, será criado o quadro de oficiais e praças temporários. Na prática, os policiais afastados por corrupção poderão ser promovidos. A ideia de promoção por bravura pode se tornar em um incentivo a violência policial.

O substitutivo traz várias outras mudanças. Dentre elas estão previstas a equiparação salarial dos policiais militares do Rio de Janeiro e dos ex-territórios com os militares do Distrito Federal; alterações na organização e competências da justiça militar e a ampliação das competências do Conselho Nacional de Comandantes Gerais de Polícia Militar. O texto é bastante detalhista e prevê a padronização das cores das viaturas e dos uniformes. Ou seja, os governadores sequer poderiam opinar sobre a cor do fardamento das polícias.

O projeto tem importantes desdobramentos econômicos e jurídicos. Mas é no campo político que a proposta terá maior impacto. Se o projeto substitutivo for aprovado na forma como está, haverá uma significativa mudança no sistema federativo brasileiro.

Um traço marcante do federalismo brasileiro é a alternância entre períodos de centralização e descentralização. Nos períodos autoritários – Estado Novo e Regime Militar – houve grande concentração de poderes políticos e de funções administrativas nos governos federais. Nos demais períodos, observou-se um federalismo altamente descentralizado, no qual os estados guardaram grande autonomia política.

As polícias, embora um pouco ausentes das discussões sobre a federação brasileira, sempre foram instituições centrais para pensar as autonomias estaduais ou a concentração de poderes no governo federal. Ao longo da história republicana brasileira, o sistema policial brasileiro acompanhou as oscilações da federação. Ora as polícias estavam submetidas ao poder central, ora significavam a garantia da liberdade das elites políticas estaduais.

Durante o Estado Novo (1937-1945), as polícias estaduais foram controladas pelo governo federal. A Polícia Civil do Distrito Federal, subordinada ao Ministro da Justiça, era encarregada de controlar as demais policiais civis estaduais. Cabia ao Ministro da Justiça aprovar as indicações de Diretores-Gerais. A Constituição de 1934 tornou as Polícias Militares “forças auxiliares” controladas pelo Exército que passou a nomear seus comandantes. Desta forma, todo aparato policial foi posto sob o controle direto de Getúlio Vargas.

Durante o regime militar (1964-1985), o aparato policial esteve sob controle do Exército. As Forças Públicas foram extintas e seus efetivos incorporados às polícias militares, que passaram a ser as únicas forças policiais destinadas ao patrulhamento ostensivo das cidades. Em 1967 foi criada a Inspetoria-Geral das Polícias Militares do Ministério do Exército (IGPM), destinada a supervisionar e controlar as Polícias Militares Estaduais. Cabia à IGPM aprovar a nomeação dos Comandantes Gerais.

Com o fim do regime militar e a transição política, esse quadro voltou a ser alterado. A Constituição de 1988 assegurou que as polícias civis e militares estão sob o controle dos governadores. Entretanto, ficou estabelecido que a sua organização e funcionamento são regulados por legislação federal. Na prática, os governadores recuperaram a prerrogativa de nomear os comandantes e chefes das polícias, mas lhes foi vedada a possibilidade de reestruturar individualmente o aparato policial.

Discutir a reorganização das polícias militares é fundamental. Mas é preciso ter muita cautela para não desequilibrar a federação brasileira. Afinal de contas, o sistema federativo é um dos principais mecanismos de freios e contrapesos da democracia. As aventuras autoritárias sempre começam pelo controle das Polícias e das Forças Armadas. Foi assim que aconteceu na Venezuela, onde a reforma policial de 2006 colocou as 24 polícias estaduais sob controle do Presidente da República, além de criar outras 99 polícias municipais, também sob controle do governo bolivariano.

 

*Artigo inédito da edição 71 do Fonte Segura, que vai ao ar nesta quarta-feira, dia 13/01.

 

**Arthur Trindade Maranhão Costa é Professor da UnB, conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e editor do Fonte Segura.

 

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