Faces da Violência https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br O que está por trás dos números da segurança pública Tue, 23 Nov 2021 18:56:47 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Os problemas dos protocolos de abordagem policial https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/06/09/os-problemas-dos-protocolos-de-abordagem-policial/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/06/09/os-problemas-dos-protocolos-de-abordagem-policial/#respond Wed, 09 Jun 2021 13:54:43 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/policia_militar_sp-min-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1787 O detalhe da cena rotineira é o que a torna “natural” ou uma cena “estranha” no Brasil: ser um jovem negro ou um jovem branco.

Gilvan Gomes da Silva*

No dia 28 de maio uma abordagem policial ganhou destaque nas redes sociais e nas manchetes das grandes mídias televisivas e digitais. Em um parque na Cidade Ocidental, em Goiás, um ciclista jovem Youtuber praticava manobras e filmava. Enquanto executava a performance, uma viatura de polícia parou próximo ao local da filmagem e começou uma sequência evolutiva de falas estressantes que pode ser resumida entre ordens para a realização da abordagem, revista e questionamentos do porquê do procedimento. 

A situação evoluiu para falas mais tensas e arma apontada para o ciclista e terminou com o jovem ciclista algemado, mesmo tendo cedido às ordens sem esboçar reação, a não ser o seu questionamento. O detalhe da cena rotineira é o que a torna “natural” ou uma cena “estranha” no Brasil: ser um jovem negro ou um jovem branco. Nas imagens divulgadas, o policial fala energicamente que a ordem é legal e que este é o procedimento. Assim, comecemos pela afirmação da legalidade e dos protocolos policiais quanto à abordagem e revista pessoal. A busca pessoal, a conhecida revista, segundo o Artigo 244 do CPP, é legal quando em flagrante ou com fundada suspeita, isso é, com indícios de crimes. A questão central torna-se o motivo da abordagem com sequência de revista com arma apontada. 

Várias pesquisas realizadas no Brasil já debateram a seletividade durante a abordagem e revistas pessoais. Após o edificante e inspirador trabalho de Silvia Ramos ao analisar as abordagens da PMERJ, outros trabalhos acadêmicos encontraram resultados semelhantes em diferentes regiões do país e em diferentes momentos. A pesquisa realizada em 2009, conduzida pelo Núcleo de estudos sobre Violência e Segurança da Universidade de Brasília, já apontava, entre outros fatores, para questões raciais e territoriais, assim como disciplina do corpo, das ações e das situações eram critérios para a seleção utilizados por policiais da PMDF. 

Em 2014 e em 2019, em várias pesquisas coordenadas pela professora Jacqueline Sinhoretto envolvendo acadêmicos da UFF, UFSCar, da Fundação João Pinheiro em Minas Gerais e da UnB, apontavam para a racialização das relações sociais também se expressa no campo da segurança pública, e, por consequência, nas abordagens policiais. As pesquisas de 2019 constataram que em Minas Gerais, por exemplo, pessoas negras têm 3 vezes mais chance de serem presas que pessoas brancas e 4 vezes mais chance de serem vítima da letalidade policial. Essa taxa de letalidade varia de 3 a 7 vezes em São Paulo. Os dados gerais da pesquisa apontam que há uma visão do potencial criminoso sendo um jovem, negro e pobre.

Todavia, estas diversas situações observadas e analisadas nas pesquisas, em diversas partes do Brasil nas últimas décadas demonstram que o campo de Segurança Pública segue a mesma lógica provocada pela desigualdade estrutural na sociedade brasileiras, pois como já destacava Arthur Trindade Costa, a análise do comportamento policial não pode ser dissociada da análise das estruturas políticas, econômicas, e sociais da sociedade. Entretanto, além das características desiguais desses poderes estruturais, há uma construção jurídica cultural racializada que ontologicamente constitui a formação do campo de controle formal no Brasil e, por consequência, das polícias. Um breve recorte histórico demonstra como que há interligação na lógica seletiva segregadora dos agentes de segurança pública era apoiada em normas que se dissiparam nas práticas cotidianas, saindo do papel e ficando nos atos. 

Como destaca Maíra Zapater sobre a herança legal e sobre as cicatrizes jurídicas, a criminalização de comportamentos de forma seletiva está presente em vários artigos do Código Criminal do Império de 1890, no Decreto nº 847, que regulamentava ações de cunho moral, continuou no Decreto-Lei nº 3.688/41 que traz em seu artigo 59 que “entregar-se habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita [gripo meu]” seria passível de prisão. O decreto de dois anos depois da proibição legal da escravidão regulamentava ações de pessoas que não ocupam mais o trabalho nas lavouras e nas áreas urbanas, pois havia uma política de embranquecimento do país em curso com estímulo à imigração de europeus do final do Século XIX e início do Século XX. A mendicância também foi tipificada como ato ilegal, revogado somente em 2009. Da mesma forma que jogar Capoeira e Condutas de embriaguez foram tipificadas como ato passíveis de prisão. Flanar pela cidade, divertir-se ou reunir-se para rodas de samba também eram proibidos, pois seriam configurados como prova de vadiagem, como lembra Lira Neto no livro História do Samba. É este diapasão das condições de subsistência e de moralidade que orientava a permissão de quais grupos poderiam participar das atividades da cidade. Os atos tipificados como ilegais eram atos nitidamente das pessoas negras, sejam pelas suas características sócio culturais, sejam pelas condições econômicas, políticas e jurídicas.

Assim, tanto as ações de controle pelos agentes do Estado de 1890 quanto a de 28 de maio de 2021, assim como diversas outras analisadas nas duas décadas do século 21 tem um fio condutor que orienta e que outrora estavam legalmente fundamentadas e que hoje, mesmo na ilegalidade, extrapola os Protocolos Operacionais Padrões porque as estruturas sociais são tão semelhantes quanto a do Brasil Império, com as mesmas permissões e proibições aos mesmos grupos de terem direito ou não à cidade, à cidadania e, em muitos casos, à vida.

 

* 2º Sargento da Polícia Militar do Distrito Federal, doutor em Sociologia, professor do Instituto Superior de Ciências Policiais (PMDF) e pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança (UnB).

 

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Na mesma edição, leia também “O Enfrentamento ao Tráfico de Armas como Política Pública” e “A reincidência criminal“.

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Após a morte de George Floyd, movimento “Defund the Police” quer o fim das polícias https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/06/10/apos-a-morte-de-george-floyd-movimento-defund-the-police-quer-o-fim-das-policias/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/06/10/apos-a-morte-de-george-floyd-movimento-defund-the-police-quer-o-fim-das-policias/#respond Wed, 10 Jun 2020 13:44:03 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/06/manifestações.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1445 Diante das acusações de racismo e violência, cresce nos EUA o movimento de cortar os orçamentos das polícias e transferir os recursos economizados para outras políticas sociais. Para entendê-l0, o Faces da Violência republica artigo de Jacqueline Sinhoretto, da UFSCar, originalmente elaborado para o boletim de análise Fonte Segura, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

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Não só o edifício da unidade policial responsável pela morte de George Floyd foi destruído pelo fogo. O equivalente à câmara municipal de Minneapolis, nos EUA, acaba de aprovar o desmantelamento da polícia. A organização policial dessa cidade acabou.

O orçamento destinado à polícia será, em parte, aplicado no suporte social à comunidade negra para minimizar os efeitos da Covid19, em termos sanitários e econômicos. Outra parte será empregado na reconstrução da polícia em bases comunitárias.

É um novo capítulo da história americana em que os termos dismantle e defund entraram no vocabulário das relações entre polícia e sociedade. Jornais com o New York Times e The Guardian destacam a questão, informam que Los Angeles reduziu o financiamento da polícia e outras cidades estudam fazê-lo[1].

Desde 1980 os investimentos em corpos policiais e tecnologias de policiamento multiplicou-se. As reformas do período visavam a redução de crimes violentos nas cidades americanas. Várias vertentes de reformas concorreram no campo policial, de um lado a tecnificação, com uso de de análise de dados, planificação, sistemas de gestão, fluxos de tomada de decisão, criação de protocolos e reformas na educação policial. De outro, modelos comunitários de policiamento, participação social, transparência, foco nos diferentes públicos e integração com as políticas de assistência social e prevenção. Uma terceira vertente apoiou-se em políticas de tolerância zero, encarceramento massivo, “guerra às drogas”. A militarização das polícias se tornou também crescente, com o uso mais frequente de armamento pesado. Os políticos de direita supervalorizaram a terceira vertente, e a importaram para a América Latina como modelo de polícia que funciona.

Estudiosos da criminologia demonstraram que o declínio das políticas sociais coincidiu com o crescimento das políticas de controle do crime. Menos bem-estar, mais prisão e polícia. O enxugamento do Estado só teve uma exceção. Se a polícia produz mais medo do que segurança, se ela mata, se ela discrimina, se as prisões não ressocializam e não cumprem os direitos civis, isso não se reverteu em questionamento dos métodos, dos objetivos e dos recursos destinados à prisão e à polícia.

Investimentos milionários continuaram a ser revertidos, enquanto o encarceramento em massa passou a ser analisado como um complexo industrial da punição: sua função de lucro e geração de empregos era mais importante do que sua capacidade de reintegrar socialmente os egressos.

Os dados do encarceramento, amplamente analisados, demonstraram seu caráter discriminatório e seletivo. As prisões americanas segregam negros e latinos, sendo a “guerra às drogas” o grande motor do controle social racista. Enquanto isso, a polícia afirmava a efetividade da filtragem racial para o controle do crime: ao mapear as áreas problemáticas, são as comunidades negras as que têm mais problemas, portanto é lá que o policiamento deve se concentrar e o número de abordagens de pessoas negras deve crescer.

Pouco a pouco o policiamento comunitário foi esquecido como base da reforma. Cada vez mais a tecnificação do trabalho policial e a tolerância zero levaram a concentrar a repressão nos bairros negros.

No século 21, a violência declinou nas cidades norte-americanas. Mas a estrutura de repressão baseada na ‘discriminação estatística’ das comunidades negras e latinas não parou de produzir mortes. Entre os países ricos, os EUA têm de longe o maior número de pessoas mortas pela polícia. Os casos se sucedem produzindo resistência. Em Nova Iorque a justiça chegou a proibir a abordagem policial por causa da filtragem racial e dos efeitos da discriminação para as pessoas negras. O movimento #BlackLivesMatter se fortalece ao lutar contra as mortes dos cidadãos negros pela polícia.

O protesto por justiça para Floyd já dura duas semanas. Ganhou apoio para desmantelar e reduzir o financiamento da polícia porque é grande o descontentamento com os resultados do alto investimento. A polícia cresceu demais, os modelos de policiamento que predominaram no campo policial produzem desigualdade racial e brutalidade policial. Hoje a violência da polícia preocupa mais do que a violência do crime.

Vários estados regularizaram o uso e a comercialização da maconha, tornando obsoleto o caro e brutal aparato de “guerra às drogas”. A sociedade evoluiu no tema e as polícias perderam espaço. São crescentes os apelos para a desmilitarização das polícias e aumento de transparência e controle dos abusos.

O punitivismo, acoplado à injustiça racial, chegou ao limite durante a crise da Covid19, expondo os vínculos políticos do aparato tecnológico do policiamento, supostamente neutro, com a opressão racista. Em Minneapolis, a decisão foi dissolver a organização policial dado o seu alto grau de comprometimento profissional e organizacional com o modelo que produz brutalidade policial e desigualdade racial. Uma nota de 20 dólares preocupa a polícia mais do que a proteção da vida quando essa anima um corpo negro. Os protocolos de operação induzem ao uso desproporcional da força, a educação policial e as técnicas de imobilização permitem que a voz que diz não conseguir respirar seja ignorada até seu completo silenciamento.

Pede-se agora menos polícia, mais bem-estar. Pede-se o recuo do protagonismo absoluto da polícia na produção da segurança pública e o repensar profundo das bases que orientam o policiamento. Os sistemas integrados de proteção social são o horizonte da sociedade civil que protesta, exigindo da polícia que consuma menos dinheiro e que repense sua razão de ser. Os recursos devem ser destinados às políticas de suporte social das comunidades negras, políticas redistributivas, na construção da reconciliação e da democracia americana em direção a uma sociedade menos violenta. São os novos ventos do norte a insuflar uma ruptura nas concepções e nos saberes sobre “justiça” e “vida segura”.

[1] Para conhecer mais: https://www.nytimes.com/2020/06/05/us/defund-police-floyd-protests.html, https://www.theguardian.com/us-news/2020/jun/04/defund-the-police-us-george-floyd-budgets, https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2020/06/07/policia-de-minneapolis-sera-desmantelada-e-reconstruida-camara-municipal.htm

 

Jacqueline Sinhoretto, socióloga, professora da Universidade Federal de São Carlos, coordenadora do GEVAC UFSCar.

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A maldição de Caim https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/11/17/a-maldicao-de-caim/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/11/17/a-maldicao-de-caim/#respond Sun, 17 Nov 2019 14:55:17 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/11/15289942315b2299b7b9418_1528994231_3x2_xl-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1177 A maldição de Caim, que ao matar Abel é considerado pelos Cristãos  como o primeiro homicida da história, é uma das derivações teológicas utilizadas como justificativas para a Escravidão. Em 1455, o Papa Nicolau V, promulga a Bula Romanus Pontifex, que dava legitimidade teológica e, sobretudo, jurídica à escravização e à expropriação da África pelo Reino de Portugal.

Nela, a maldição divina sobre Caim de marcá-lo na carne de forma indelével para que não morresse e pudesse viver em constante expiação de seu pecado capital foi associada aos africanos ao afirmar que estes últimos eram seus descendentes e que, por isso, a cor de suas peles era prova jurídica que justificava subjugá-los à escravidão e submetê-los à vontade de Deus.

Ela é base para compreendermos a escravidão no Brasil e lembrar de sua existência serve para jogarmos luz às opções políticos-institucionais do Estado e da sociedade brasileira que fazem com que os negros permaneçam, até hoje, como o segmento populacional mais vulnerável à violência e à criminalidade.

Opções político-institucionais que evitam discutir a questão racial na segurança pública e invisibilizam, mesmo contra todas as evidências, o fato de que para cada pessoa não negra assassinada, 2,7 pessoas negras são vítimas de homicídio. Ou, ao contrário daqueles que defendem que são criminosos matando criminosos, da constatação de que estas mortes atingem a todos: 51,7% dos policiais mortos entre 2017 e 2018 eram negros; e 75,4% das pessoas mortas em intervenções policiais entre 2017 e 2018 eram negras (dados compilados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública).

Opções que provocaram, ao longo do Século XX, um apagamento da memória institucional sobre a questão racial e torna extremamente complexo se obter dados e evidências sobre a raça/cor dos indivíduos objetos da atenção das instituições públicas. Falar da maior violência contra negros é ainda tabu no interior do sistema de justiça criminal e segurança pública.

Assim, todo o debate sobre segurança pública fica subsumido aos aspectos técnicos operacionais do funcionamento das instituições de justiça criminal e segurança pública e não incluímos as opções políticas e estratégicas que regem a área no rol de prioridades de reflexão, modernização e reforma. A questão racial é refutada como um não problema da área e os que falam sobre o assunto são rotulados de ideológicos. Vamos reproduzindo acriticamente iniquidades e desigualdades raciais.

E isso é ainda mais relevante pois, em tempos de reforço conservador e de reafirmação das tradições judaico-cristãs, é válido relembrar que muitas dessas tradições não têm nada de inocentes ou divinas e têm suas fundamentações históricas/ideológicas no elo que liga a dominação econômica europeia ao cristianismo e à conquista de territórios.

Por trás do resgate ao discurso de”certas” tradições (outros legados europeus como iluminismo, fraternidade ou igualdade são convenientes esquecidos na atual quadra histórica) e da recusa ao debate sobre identidades ou desigualdades, escondem-se projetos obscurantistas e autoritários que precisam ser trazidos à tona. No caso da segurança, é preciso explicitar que a violência é uma das marcas mais persistentes da sociedade brasileira e até o momento não criamos alternativas à ela.

Dito isso, às vésperas de mais um dia da consciência negra e da reafirmação de dados que mostram o quão violentas, perenes e perversas são as marcas da escravidão no Brasil, fico-me perguntando sobre como superar o nosso déficit civilizatório e contribuir no debate sobre a construção da cidadania ampla e universal no país.

Por certo várias são as saídas e soluções, mas, todas elas, dependem de mobilização social e do que, dadas as referências do tempo, seria uma nova cruzada; uma cruzada dedicada à transparência radical na segurança e à construção de uma ética pública não violenta.

 

 

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Ser patriota no Brasil é reconhecer que a desigualdade racial mata e precisa ser superada https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/11/20/ser-patriota-no-brasil-e-reconhecer-que-a-desigualdade-racial-mata-e-precisa-ser-superada/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/11/20/ser-patriota-no-brasil-e-reconhecer-que-a-desigualdade-racial-mata-e-precisa-ser-superada/#respond Tue, 20 Nov 2018 14:38:00 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/11/Wes-Araújo-Faces-da-Indiferença-150x150.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=436 Em novembro são comemoradas duas datas nacionais que, separadas apenas por um dia no calendário, revelam uma imensa [e falsa] distância simbólica entre elas. A primeira, comemorada ontem (19), é uma alusão ao fato de que em 11 de novembro de 1889 foi instituída a bandeira republicana como símbolo máximo de nossa Nação.

Já a segunda, celebrada hoje (20), marca o dia da consciência negra, oficialmente instituído em 2011. A data foi escolhida por coincidir com o dia da morte de Zumbi dos Palmares, líder do quilombo dos Palmares, em Alagoas, em 1695, e tem por finalidade provocar reflexões sobre a permanência de estruturas socioeconômicas, políticas e culturais que buscam “apagar” a ideia de que a desigualdade racial/racismo exista de fato no Brasil e que precisa ser alvo de ações de reconhecimento e superação.

Pouco nos damos conta que o ponto de intersecção entre estas duas datas está em 13 de maio de 1888, data da abolição da escravidão, que libertou os escravos trazidos e mantidos à força no país, mas não ofereceu nenhum tipo de política social e/ou de reparação que os incorporassem como cidadãos na sociedade.

Os negros foram libertados em um dia e relegados como problema público apenas de polícia no outro, já que passaram a ser vistos como elementos de desestabilização social e política da ordem até então vigente e que não estavam mais sob a tutela privada [e cruel] dos seus antigos proprietários.

A violência da escravidão, simbolizada pelos castigos físicos e pela caça voraz e privada que os capitães do mato faziam aos negros fugitivos, não foi vista como um problema do Estado e até hoje gera consequências. Não à toa, os quilombos foram os espaços de refúgio e resistência encontrados pelos negros para sobreviver. Eles nunca foram espaços de “vadiagem”, como muitos tentam nos fazer crer até hoje.

A exclusão a qual os negros foram submetidos no Brasil não foi superada. Tanto é que, de acordo com estudo da Secretaria Nacional de Juventude e da Unesco, encomendando ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública, os jovens negros de 15 a 29 anos de idade correm 2,71 vezes mais chances de serem assassinados do que os jovens brancos na mesma faixa etária.

Em outras palavras, controladas as condições socioeconômicas e demográficas, ou seja, comparando jovens pobres negros e jovens pobres brancos entre si, por exemplo, os negros correm quase três vezes mais riscos de serem mortos do que os brancos. A vulnerabilidade racial não é só fruto da desigualdade social. Ela existe e mata.

De acordo com o Atlas da Violência, parceria do FBSP com o IPEA, enquanto os homicídios de negros cresceram, entre 2005 e 2015 mais de 18%, os homicídios de não negros caíram cerca de 12%. Na mesma linha, agora segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, as vítimas são, proporcionalmente, mais negras em todos os lados, já que 56% dos policiais mortos no Brasil entre 2015 e 2016 eram negros e 76% dos mortos em intervenções policiais também.

Por onde olharmos os números disponíveis, veremos que o problema é real, imediato e exige políticas públicas focalizadas. Se lembrarmos que a nossa bandeira contem os elementos positivistas de ordem e progresso, romper com a ordem social escravocrata que até hoje gera violência contra os negros no Brasil deveria ser preocupação de qualquer patriota; deveria mobilizar todos os brasileiros que acreditam na cidadania brasileira como marca de identidade nacional.

Reconhecer a violência racial não divide o país, muito pelo contrário. Contudo, na força da ideia de apagamento das desigualdades raciais em nome de um projeto de Nação que tem suas origens muito antes da proclamação da República e que não foi por ela totalmente abalado até aqui, o Brasil vai jogando para debaixo do tapete da sua história muitos dos seus traumas e tabus.

E, como consequência, a violência contra a população negra permanece como um dos nossos maiores exemplos de leniência moral e cívica.

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