Faces da Violência https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br O que está por trás dos números da segurança pública Tue, 23 Nov 2021 18:56:47 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Mortes e silenciamento na rotina de servidores penais https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/04/15/mortes-e-silenciamento-na-rotina-de-servidores-penais/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/04/15/mortes-e-silenciamento-na-rotina-de-servidores-penais/#respond Thu, 15 Apr 2021 19:43:44 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/faces1504-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1723 As orientações nacionais e internacionais a respeito do enfrentamento à pandemia mais uma vez mostram o distanciamento do cárcere legal e do cárcere real no Brasil

Maria Palma Wolff*

Felipe Athayde Lins de Melo**

A prisão, como se sabe, não é uma instituição que impacta apenas a vida das pessoas privadas da liberdade; sua repercussão chega também a suas famílias e ao conjunto de trabalhadores que fazem possível a existência desta “fábrica de moer gente”. Todos são por ela afetados, e, ainda que cada um destes grupos tenha sua especificidade, certamente não seria diferente no cenário da pandemia de Covid-19. Então, vejamos.

No dia 8 de abril deste ano, a imprensa de Ribeirão Preto, cidade a cerca de 330 quilômetros da capital paulista, noticiou a morte de três homens que se encontravam presos na penitenciária daquela cidade. Nas redes sociais, “especialistas” correram para expor seus pareceres.

Da tradicional ojeriza aos corpos indesejáveis – “só três, que pena” – chegou-se a mais nova manifestação do desprezo pela vida: o negacionismo pandêmico que nos é apresentado diariamente por aquele que deveria liderar os esforços de enfretamento à Covid-19. “Ué, mas não estão confinados? Isso prova que o isolamento não serve pra nada”.

Dias antes, a cerca de 90 quilômetros dali, a penitenciária de Araraquara registrou, segundo o noticiário, a contaminação de mais de 360 presos. Igualmente, a turba glorificou o caso como demonstração do fracasso das medidas de isolamento social adotadas pela prefeitura municipal.

Em ambas as situações, porém, a imprensa e a administração penitenciária obtiveram enorme êxito em ocultar outro dado da tragédia que caracteriza as prisões no Brasil: os danos e as mortes dos servidores penais causados pela Covid-19.

Desde o início da pandemia, foram publicadas diferentes normas e orientações de prevenção à propagação da Covid-19 em prisões. Em março de 2020, o Departamento Penitenciário Nacional emitiu portaria recomendando, dentre outras medidas, a suspensão das visitas de familiares e organizações da sociedade civil. Por seu turno, o Conselho Nacional de Justiça propôs a flexibilização dos dias de visitas com a concomitante adoção de outras medidas preventivas, que deveriam atingir também os servidores.

Passado pouco mais de um ano, boletim publicado pelo CNJ em abril de 2021, informa que haviam sido realizados em todo o país cerca de 275 mil testes em pessoas presas e menos de 70 mil em servidores penais, num contingente superior a 117 mil trabalhadores. Os dados de contaminação, por sua vez, atingiram a marca de, respectivamente, 51.974 e 18.081 casos, com o registro de 159 óbitos de pessoas privadas de liberdade e, pasmem, 163 mortes de servidores.

Os números, à primeira vista, sinalizam um razoável controle da disseminação do vírus pelos cárceres brasileiros, pois não se observa aqui aquilo que vem ocorrendo, por exemplo, nas prisões americanas, em que se registra uma média de sete mortes ao dia. Os dados, porém, precisam ser olhados com cautela, pois apontam para outros efeitos das medidas que permitem colocá-los em questionamento.

Uma medida adotada em todos os estados foi a suspensão de visitas, o que, supostamente, geraria o isolamento social das pessoas presas. Mas o fluxo dos servidores segue em curso, sem a adequada provisão de itens de prevenção e, principalmente, expostos a novos constrangimentos no exercício do trabalho.

Durante o surto de contaminação na penitenciária de Araraquara, por exemplo, segundo funcionários, ao menos 30 servidores foram infectados. Dentre estes, veio a óbito um diretor. Os casos, contudo, não repercutiram na imprensa e a diretoria do estabelecimento se esforçou em ocultá-los.

Assim, as pessoas afastadas com Covid-19 foram “orientadas” a não reportarem a contaminação em trabalho e servidores contam, inclusive, terem recebido “visitas” domiciliares de seus superiores para reforçar a “orientação” de nada comentar sobre o óbito. Nas palavras de uma servidora, “sequer a morte de um colega de mais de 20 anos nós pudemos chorar”.

As orientações nacionais e internacionais a respeito do enfrentamento à pandemia mais uma vez mostram o distanciamento do cárcere legal e do cárcere real no Brasil, ou seja, do também seletivo cumprimento das leis e das normas. Neste sentido, a proibição das visitas, por exemplo, além de uma medida sanitária, é uma estratégia que contribui para as limitações de transparência dos dados e para manter não só pessoas dentro dos muros, mas também a sua própria realidade.

Ao negacionismo da seletividade de classe e raça sempre existente no sistema penal, da existência de tortura, do não cumprimento da Lei de Execução Penal, das péssimas condições de trabalho, acrescemos a negação do impacto da Covid-19 no contexto prisional e também das consequências para a saúde dos servidores penais.

Tudo isso se soma à tensão e à violência existente no cotidiano de trabalho na prisão e à frustração pela falta de recursos humanos e materiais para o desempenho de suas funções, à falta de serviços de atendimento para a saúde funcional. Agora acrescemos tudo o que representa a pandemia da Covid-19 e seu errático enfrentamento pelas autoridades brasileiras.

 

*Graduada e Mestre em Serviço Social pela PUCRS, doutora em Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais pela Universidade de Zaragoza, Espanha, e pós-doutora pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Atualmente é professora e pesquisadora da Faculdade de Serviço Social da PUCRS, atuando nas áreas de direitos humanos, movimentos sociais e políticas sociais.

**Doutor e Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos, onde integra o Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos. É membro fundador do Laboratório de Gestão de Políticas Penais, da Universidade de Brasília. Possui pós-graduação em Gestão de Organizações do Terceiro Setor (Universidade Mackenzie – 2002), graduação em Filosofia (Universidade Estadual Paulista – 1998) e formação em metodologias de trabalho cooperativo pelo GETS/United Way of Canada.

 

Acompanhe as edições semanais integrais do Fonte Segura, a newsletter com dados e análises sobre segurança pública. Acesse: fontesegura.org.br

Na edição desta semana, leia também “Um passo para a redução do descontrole armado” e “Policiais não são heróis: alertas emitidos ao campo da segurança pública”.

]]>
0
Mortes no Amazonas indicam a influência das facções criminais na manutenção da ordem nas prisões https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/05/31/mortes-no-amazonas-indicam-a-influencia-das-faccoes-criminais-na-manutencao-da-ordem-nas-prisoes/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/05/31/mortes-no-amazonas-indicam-a-influencia-das-faccoes-criminais-na-manutencao-da-ordem-nas-prisoes/#respond Fri, 31 May 2019 18:45:39 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/05/Marlene-Bergamo-320x213.png https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=878 Por Marcelli Cipriani. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Segurança e Administração da Justiça Penal (GPESC), da PUC/RS

 

Em meio à segunda maior onda de assassinatos de presos do Amazonas, que resultaram na morte de 55 pessoas que se encontravam sob a tutela do poder público, o governador Wilson Lima deu entrevista garantindo que o sistema prisional do estado está controlado, já que não haviam fugas ou agentes estatais feridos.

Lima ainda disse que é praticamente impossível impedir confrontos como os que ocorreram em quatro unidades prisionais diferentes e que envolveram detentos abrigados em um mesmo pavilhão.

Parece haver, aí, uma contradição. Se autoridades públicas já partem do pressuposto de que não há como controlar a violência letal cometida contra os presos, como é possível afirmar que o sistema está, ou em algum momento já esteve, sob controle?

Mas essa incongruência é apenas aparente. O que aconteceu em Manaus não se tratou de “algo atípico” – em que pese a excepcionalidade de algumas das mortes terem sido cometidas durante o horário de visitação, algo raro no mundo do crime –, mas de um dos desdobramentos possíveis a uma sucessão de escolhas políticas que atravessam todas as instituições do sistema de Justiça Criminal, no âmbito dos estados e da Federação.

A importância em sustentar o aparente controle e a “ordem” do sistema é um fantasma que acompanha governadores, secretários e gestores prisionais dos variados estados do país. Com as prisões brasileiras contando com uma superlotação de 69,3% – no Amazonas, esse índice chega a 136,8% – a maioria delas operando de forma precária e oferecendo condições de vida degradantes, as instabilidades figuram sempre no horizonte.

Motins, fugas e rebeliões são “desordens” que, ao ocorrerem, desmoralizam o poder público e desnudam o mito do Estado soberano na garantia da segurança – expondo-o como incapaz de reprimir o crime mesmo no interior da instituição que, por excelência, deveria representar sua contenção.

A maneira como a “ordem” é buscada – em um sistema que opera por meio de incessantes ilegalidades e, por isso mesmo, tende à produção de “desordem” – varia em cada prisão. Em face desse cenário, o sucesso em evitar massacres semelhantes ao ocorrido nessa semana não decorre apenas da ausência de “disputas internas” a facções criminais, mas também está atrelado a características próprias à gestão prisional.

Como exemplo, o secretário de Administração Penitenciária do Amazonas, coronel PM Marcus Vinicius Almeida, declarou que “o estado não reconhece facções”, mesmo com o governador Lima ter informado que há, nas unidades daquele estado, separação dos presos de acordo com a pertença a diferentes grupos.

Apesar dos efeitos simbólicos, a falta de reconhecimento sobre o papel das facções no sistema prisional não afasta, magicamente, o poder que esses grupos exercem na prisão, tampouco elimina o fato de que eles seguem contando com esses espaços para a expansão de sua influência nas áreas urbanas.

Do ponto de vista dos presos que já estão inseridos nas redes dos grupos, a convivência em pavilhões e galerias conforma nichos de comerciantes, ampliando oportunidades para o fornecimento de drogas, a obtenção de lucro e as colaborações no mundo do crime. Quanto aos que ainda não os integram, a entrada nesses ambientes acirra a possibilidade de vinculação, em um contexto no qual a oferta de bens e serviços – muitos deles, básicos e que deveriam ser providos pelo Estado – é feita por integrantes de facções.

Enquanto parte da sociedade regozija-se com o sofrimento a que os presos estão sujeitos, os grupos criminais promovem o acolhimento dos recém-chegados e são grandes responsáveis por tornar a vida na prisão um pouco menos dura – ajudando os presos na viabilização de visitas de familiares, no acesso a advogados e mesmo à comida de melhor qualidade. Ainda que, muitas vezes, esse auxílio não gere um ônus direto àquele que o recebe, costuma estabelecer um compromisso, posto que há expectativa de reciprocidade.

Como saldo, a política de encarceramento em massa é altamente rentável para as facções, ainda que traga enorme sofrimento e exponha a violências institucionais um sem-fim de pessoas – não só presos, como também seus familiares. De outro lado, a gestão compartilhada do sistema possibilita que, a despeito da enorme superlotação, do baixo gasto com funcionários e com a manutenção do preso como pessoa, as prisões sigam operando em “ordem”.

O poder das facções segue se manifestando no país com uma capilaridade impressionante – ainda que lideranças sejam transferidas ao sistema federal, como já era o caso dos dois líderes atribuídos às alas da Família do Norte que romperam nos últimos dias. No crime, espaços de poder não ficam vazios, e esses grupos já atingiram uma dimensão que os desobriga das determinações de indivíduos específicos.

Entretanto, a alternativa à negação – que, no Brasil, jamais é afirmada publicamente, embora perpasse pela prática de um sem-fim de unidades prisionais – implica altos custos políticos. Embora não se trate de uma novidade, ela compõe um raciocínio contra intuitivo e é largamente rechaçada pela população, que, mesmo contra todas as evidências, permanece convicta na retórica de que, se o crime continua crescendo, é porque não há aprisionamentos o suficiente, porque a lei não é rígida o bastante ou porque a prisão não é tão severa como deveria.

Ocorre que, diante do ritmo galopante de pessoas presas, o funcionamento do sistema depende do constante equilíbrio entre os antagonismos que marcam a atuação do Estado e a das facções, que controlam a maioria dos presídios. Se trata de uma verdade inconveniente, mas que já foi demonstrada reiteradamente pela potência da mobilização coletiva no interior do cárcere.

Da forma como opera no Brasil, o sistema prisional não está alheio ao crime e às facções, mas integra sua equação. Nesse sentido, não só o uso da prisão é incapaz de contribuir para o controle da violência, como também a contenção de indivíduos em unidades prisionais não impede a continuidade de dinâmicas criminais – pelo contrário, lhes serve de plataforma.

Mortes e crises como as de Manaus são consequências sempre possíveis a uma dualidade entre o legal e o ilegal, que atravessa o sistema como um todo. A partir da prisão, os grupos criminais são capazes de seguir se expandido e consolidando. Contando com a influência dos grupos criminais, o Estado pode manter sua racionalidade punitiva intacta e, ao mesmo tempo, tentar viabilizar a gestão e a manutenção de um sistema inviável em “ordem”.

]]> 0 Pacote de Sergio Moro pode gerar um custo adicional com presos de R$ 44,4 bilhões anuais https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/04/06/pacote-de-sergio-moro-pode-gerar-um-custo-adicional-com-presos-de-r-444-bilhoes-anuais/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/04/06/pacote-de-sergio-moro-pode-gerar-um-custo-adicional-com-presos-de-r-444-bilhoes-anuais/#respond Sat, 06 Apr 2019 23:12:23 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/04/presos-de-faccoes-rivais-entram-em-confronto-no-patio-da-penitenciaria-de-alcacuz-no-rio-grande-do-norte-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=744 Informação e conhecimento são insumos fundamentais para que o poder público possa exercer suas “capacidades estatais”, entre elas estão a capacidade política, a capacidade relacional, burocrática, coercitiva, fiscal e regulatória. Em contextos democráticos, a ideia de accountability, que se traduz na possibilidade de controle, participação e transparência é que estrutura o desenho e a implementação de políticas públicas. Sem informações de qualidade é quase impossível planejar ações eficientes e que não só economizem recursos públicos escassos mas valorize a vida, a cidadania e a prevenção da violência.

E é por isso que tenho chamado a atenção para a fragilidade das evidências contidas nas propostas do pacote de medidas legislativas do Ministro Sergio Moro. Por mais experientes que sejamos, só o planejamento detalhado, com estudos de impacto e custos, fará a diferença entre um projeto “dar certo” e atingir seus objetivos ou cair na vala comum de ações bem-intencionadas porém pouco efetivas.

Por esse raciocínio, vale destacar que quase todas as operações de empréstimos internacionais em curso na área da segurança pública, que têm como parceiros os bancos e organismos multilaterais, como BID, Banco Mundial, CAF, OCDE, entre outras agências, utilizam técnicas econométricas de estimação de custo-benefício para analisar se um projeto deve ou não ser apoiado. As regras de boa governança do sistema financeiro não aceitam que sejam feitos empréstimos ou investimentos sem se estimar se o projeto pretendido terá um retorno econômico ou social maior do que se irá gastar.

E, entre as referências utilizadas por estes estudos, existem dois estudos feitos em 1994 e 1998 por Peter Greenwood e coautores, quando os EUA estavam planejando endurecer suas leis penais para reincidentes, naquilo que ficou conhecido como leis “Three Strikes and You’re Out (três faltas e você está fora)”, que tiveram esta expressão inspirada do beisebol, em que um batedor contra o qual três faltas são registradas é eliminado.

Os estudos visaram a analise do impacto de tais leis na justiça criminal para adultos e na justiça juvenil, para adolescentes, bem como no sistema prisional. Elas aumentaram significativamente as sentenças de prisão de pessoas condenadas por um crime que foi anteriormente condenado por dois ou mais crimes violentos ou crimes graves, e limita a capacidade desses infratores para receber uma punição que não seja uma sentença de prisão perpétua.

A partir desses estudos, cientificamente validados, as avaliações de impacto passaram a contar com uma baliza de cálculo que pode ser usada para diferentes contextos e países, incluindo o Brasil, que ainda não tem o hábito de monitorar e avaliar políticas públicas de segurança com rigor metodológico e científico. Existem avaliações, mas pontuais e dependentes do tomador de decisão na ponta de cada projeto.

Mas, diante deste fato, sempre ficava as questões sobre o por quê deveríamos usar os parâmetros estabelecidos para a Califórnia em 1994 para o Brasil e/ou se existem variações entre os diferentes contextos culturais?

Para responder estas perguntas, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, fez um pesquisa piloto até agora inédita em um presídio no Ceará, em 2017, que teve como objetivo realizar uma exploração do campo, visando caracterizar o perfil criminal. Mesmo com todas as limitações metodológicas, que não permitem uma generalização completa, os resultados nos mostram algumas pontos que chamam atenção e que servem para o debate atual. Eles servem para estimular que o Congresso encomende estudos ao TCU e/ou institutos independentes antes de votar as medidas.

Enquanto nos EUA, as carreiras no crime tinham, em média, 9,29 anos entre o primeiro crime e a última prisão, no Brasil este número cai para 8,01. Significa dizer que, no nosso caso, os delinquentes estão sendo presos antes, talvez como resultado das prisões provisórias que atingem quase 35% no país e superam os 50% em várias Unidades da Federação – as altas taxas de mortes violentas intencionais e a média de esclarecimentos de crimes seriam outras explicações.

Já nos EUA, cada criminoso havia cometido 49,64 crimes sérios violentos em sua carreira na delinquência (jovem e adulta). No Brasil, a pesquisa piloto indica que seriam 15,59 os crimes sérios cometidos ao longo dos 8,01 anos de carreira. Ou seja, em média, os criminosos reincidentes brasileiros cometeriam o equivalente a 31% dos crimes cometidos pelos seus pares dos EUA.

Na medida em que o pacote do ministro Sergio Moro prevê, exatamente, replicar o endurecimento penal da legislação dos EUA, vale olhar para a experiência norte-americana e o número de presos nos dois países e usá-los para uma primeira aproximação sobre os impactos econômicos envolvidos.

Por este raciocínio, temos que primeiro olhar o tamanho das duas populações prisionais. Nos EUA, são cerca de 2,3 milhões. No Brasil, segundo o Conselho Nacional de Justiça, temos cerca de 760 mil presos. Dito de outra forma, temos, em números absolutos, cerca de 1/3 da população prisional dos Estados Unidos.

Assim, caso adotássemos o mesmo princípio da legislação Three Strikes and You’re Out e considerando que aqui os reincidentes criminais são presos antes, é possível supor que no médio prazo atingiríamos e, mesmo, superaríamos os patamares de presos dos EUA.

Essa é uma decisão que o Congresso terá que tomar. Mas, ao mesmo tempo, é válido considerar que o Brasil gasta cerca de R$ 2,4 mil mensais com cada preso. Se a ideia é seguir os EUA, o país teria de gastar R$ 3,7 bilhões de reais a mais todos os meses para manter uma população prisional similar à norte-americana já que a proposta é adotar uma legislação similar.

Como resultado, ao final de cada ano, se a legislação proposta gerar um número de presos equivalente ao dos EUA, o Brasil terá que gastar R$ 44,4 bilhões de reais a mais apenas para manter sua população prisional – nesse valor não são considerados os investimentos na construção das novas unidades que seriam necessárias para acomodar tal aumento da população penitenciária nacional.

E, como o pacote não fala nada de governança do sistema prisional ou de alternativas penais, bem como não toca na legislação que permite que muitos fiquem presos por crimes que poderiam ser sancionados com outras punições (drogas, etc), não é possível deduzir recursos que seriam economizados com medidas de modernização da gestão penitenciária e/ou da priorização da prisão de criminosos violentos.

Seja como for, temos esse dinheiro, ainda mais em um cenário de constrangimento fiscal? Queremos gasta-lo desta forma? Teremos que tirar dinheiro das polícias, da saúde ou da educação? Independentemente das respostas a essas questões, já que o modelo que está servindo de exemplo é o dos EUA, seria fundamental repetirmos o cuidado que eles tomaram ao encomendar estudos de impacto e custos antes de aprovar a leis.

Por certo que as estimativas aqui são aproximadas e precisariam ser validadas por estudos tecnicamente robustos. Porém, meu objetivo foi o de mostrar a importância de não pensarmos políticas públicas de forma estanque e sob o prisma ideológico. Aproveitando que o Ministro Sergio Moro publicou em sua conta no Twitter que a “transparência é a nossa regra, sigilo é exceção”, vale aprofundar a análise dos impactos e construirmos, juntos, um país mais seguro e cidadão.

Atualização 07/04/2019:

Após a publicação do texto original, recebi a informação de que, se compararmos com a proposta de reforma da previdência enviada ao Congresso pelo Ministro Paulo Guedes, o gasto estimado com base na população prisional dos EUA feito acima representa quase 42% da economia que seria gerada em 10 anos com a aprovação da reforma da previdência. Segundo previsão do Ministério da Economia, a estimativa de economia de recursos após 10 anos de aprovação da Reforma seria de R$ 1,072 trilhão. Se, em 10 anos, o gasto com prisões atingir R$ 444,4 bilhões, 41,45% da economia gerada com as novas regras aposentadorias seria utilizada na manutenção do sistema prisional.

E, para concluir, se o impacto da legislação seguir o padrão de crescimento carcerário dos EUA, cujas leis inspiram o projeto do Governo, ainda teríamos que encontrar recursos para construir 1.026 novas unidades prisionais, com 1.500 vagas cada uma, sem contar o déficit de vagas atual. Se o custo aproximado de cada prisão é de R$ 36 milhões, teríamos que encontrar ao menos outros R$ 36,9 bilhões para a construção dessas unidades. No total, o Brasil precisaria investir R$ 481,3 bilhões no seu sistema carcerário em 10 anos caso as projeções aqui contidas sejam confirmadas (não temos dados desagregados para estimar com exatidão o prazo em que e se chegaríamos nesta quantia, mas diante da crise fiscal, é improvável que tenhamos esses recursos e o quadro de superpopulação carcerária tende a se agravar).

PS: Prova de que estudos de impacto são regra em países mais desenvolvidos, o Parlamento Inglês encomenda projeções da população prisional para anos futuros. Esse modelo poderia ser utilizado aqui no Brasil.

]]>
0
A influência do PCC: o exemplo das facções criminais do Rio Grande do Sul https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/09/22/a-influencia-do-pcc-o-exemplo-das-faccoes-criminais-do-rio-grande-do-sul/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/09/22/a-influencia-do-pcc-o-exemplo-das-faccoes-criminais-do-rio-grande-do-sul/#respond Sun, 23 Sep 2018 02:09:42 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/09/16211670-150x150.jpeg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=285 Texto de Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo e Marcelli Cipriani, da PUC/RS, que busca mostrar a influência do modelo PCC na organização das facções criminais no Rio Grande do Sul e que serve de exemplo e alerta para pensarmos estratégias mais eficientes de repressão qualificada do crime organizado no Brasil.

***

Na terceira galeria do pavilhão F, dentro da Cadeia Pública de Porto Alegre, celulares apitavam. Em mensagem recebida pelos presos dos Bala na Cara, principal facção criminal gaúcha, a foto de um indivíduo estava acompanhada da pergunta cuja resposta selaria o seu destino: alguém conhece esse cupinxa? Momentos antes, o sujeito transitava pelo bairro Bom Jesus – reduto da facção na capital – quando foi interpelado por integrantes do grupo que estranharam sua presença na região.

Levado a uma residência e mantido sob cárcere privado, seria então fotografado para que a imagem circulasse pela galeria prisional. Sua vida, dali em diante, dependia de uma identificação. Se ninguém soubesse de quem se tratava, provavelmente ele seria um contra, um inimigo que tinha de ser eliminado.

Embora as relações criminais na capital gaúcha venham sendo pautadas, a partir de meados dos anos 90, por grupos em conflito, a generalização dessas dinâmicas entre o binômio “aliados ou contras” atingiram, recentemente, níveis críticos. Em 2016, como reação à expansão forçada dos Bala na Cara – também apelidados de “toma bocas” pela violência com que se apropriam dos pontos de comércio ilícito alheios – constituiu-se o “embolamento” dos Antibala.

Em outros termos, se formou um agregado de grupos menores, capitaneados pelos V7, com o objetivo de antagonizar com os Bala, que vinham se espraiando em ritmo veloz desde a década anterior. Nos meses que se seguiram ao surgimento da aliança, um ciclo de ataques e de execuções explodiu em bairros onde, no município, esses agrupamentos estavam presentes.

Diferentemente do que ocorre com o PCC em São Paulo, as dinâmicas do tráfico de drogas em Porto Alegre – na prisão e fora dela – são essencialmente pautadas pelo controle territorial, sujeito a uma multiplicidade de grupos. Atualmente, existem sete deles, de dimensões variáveis, distribuídos entre doze galerias da Cadeia Pública: os Manos, os Bala na Cara, os Abertos, a Conceição, a Farrapos, os Unidos Pela Paz e, mais recentemente, os V7.

Cada uma das galerias, que representa o andar de um pavilhão, agrega indivíduos oriundos das áreas em que a facção tem influência. É delas que partem as determinações sobre aliados e contras no município, cada vez mais afuniladas entre três principais frentes: Manos, Balas na Cara e Antibalas.

O primeiro, em consonância com o Comando paulista, procura se distanciar da ideia da guerra, privilegiando as negociações no lugar do uso da violência física. Os dois últimos, por sua vez, estão envolvidos em incessantes ofensivas recíprocas nas periferias da capital – não só para a tomada de pontos de comércio, mas também para a demonstração de poder.

Quanto mais extenso é o domínio de um grupo nos bairros urbanos, maior será o contingente de presos a ser levado para o seu espaço na prisão. Em contrapartida, a alocação de indivíduos nas galerias dos grupos abre espaço para o estabelecimento de novas relações comerciais, com a ampliação do abastecimento das bocas que passam a estar associadas a partir dos presídios.

Em paralelo, a fim de assegurarem que, caso encarcerados, terão onde ficar, integrantes de grupos menos expressivos precisam, na rua, fazer acordos comerciais ou estratégicos com grupos maiores – que também são os que têm melhores condições de oferecer proteção através do apoio de pessoal e armamento. Com isso, seu poder é fortalecido, a partir dos fluxos recíprocos entre a prisão e a rua.

O PCC tem como característica conferir autonomia aos indivíduos no estabelecimento de negócios no crime, dado que as atividades do grupo são de outra ordem, estando associadas a um pertencimento coletivo. Nesse sentido, suas relações também são pautadas por um discurso de união contra a opressão do Estado, e pela organização para o seu enfrentamento. Nos grupos de Porto Alegre, por sua vez, essa dimensão discursiva não foi mobilizada em torno de um ideal de emancipação, enfrentamento ou de uma tomada de consciência coletiva.

Ainda, a conjunção entre diferentes pontos de comércio que conforma os grupos está, em regra, associada com a fidelidade quanto ao fornecimento dos produtos comercializados: ou seja, a droga vendida em bocas dos Manos ou de seus aliados não pode ter sido provida pelos Bala, e vice-versa. Assim, a pluralidade de agrupamentos em disputa corrobora com a intensificação da violência, e a imposição de alinhamento interno para a compra de mercadorias acelera a corrida por controle de bocas.

Por fim, o teor da identidade partilhada entre seus membros – que, em parte relevante, está marcado pela oposição aos rivais – afasta qualquer perspectiva de pacificação das relações criminais ou de associação em nome de um inimigo comum.

Em reportagem recente, o jornalista Humberto Trezzi, do Jornal Zero Hora, apresenta documento do Ministério Público paulista, em que consta a informação de que o PCC já teria 729 “simpatizantes” no estado do Rio Grande do Sul. Segundo a matéria, que também utiliza como fonte o jornalista Bruno Paes Manso, do Núcleo de Estudos da Violência da USP, o grupo paulista teria firmado alianças com grupos gaúchos adversários dos Bala na Cara. Eles assumiriam a posição de “primos” e não de “irmãos” – aliados, mas não necessariamente batizados.

Com a transferência, no ano passado, de 27 presos para presídios federais localizados em outros estados – muitos deles, em posição de liderança nas facções gaúchas – é possível que essas aproximações tenham sido aprofundadas, também vindo a trazer novos contornos aos negócios ilícitos locais. De acordo com Camila Dias e Bruno Manso, em livro recentemente publicado, um membro do PCC caracterizou o sistema penitenciário federal de “comitê central do crime” – dado que reúne indivíduos oriundos de diferentes estados e grupos criminais, abrindo espaço para o estabelecimento de alianças e rupturas.

O domínio de facções criminais no mundo do crime é efeito da política criminal adotada no Brasil nas últimas décadas. Com a superlotação carcerária, motivada pela cada vez maior criminalização de pequenos traficantes e assaltantes, que se dá pelo predomínio das prisões em flagrante, em detrimento da investigação criminal, que poderia trazer resultados mais direcionados, por exemplo, para a responsabilização criminal dos autores de homicídio, o ambiente prisional se tornou um espaço privilegiado para as articulações entre grupos ligados aos mercados ilegais.

Para manter a ordem em presídios superlotados, o Estado abre mão de exercer um controle mais rígido, e autoriza a organização interna de grupos que atuam foram das prisões. A Cadeia Pública de Porto Alegre é o exemplo extremo, dentro da qual as alas estão há muito tempo sob o domínio das facções.

Embora a influência do PCC ainda seja pequena no Rio Grande do Sul, seu modelo já é replicado: se o Estado não atua de forma lícita, impondo uma dinâmica de violência policial nas periferias urbanas e de descontrole no cárcere, o mundo do crime se mobiliza para assegurar um mínimo de previsibilidade e segurança para seus integrantes, garantindo renda e proteção, mesmo que nas precárias condições de bandos criminais em disputa.

Violência policial, encarceramento duro e abusos praticados por agentes do Estado são o solo fértil no qual eles se disseminaram. Reverter esse quadro implicaria evidentemente adotar um outro modelo de segurança pública, com mais inteligência, foco na violência letal, profissionalismo e tratamento igualitário pelo Estado. Este o desafio colocado para os governantes eleitos em outubro. Ou o aprofundamento da barbárie.

]]>
0