Faces da Violência https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br O que está por trás dos números da segurança pública Tue, 23 Nov 2021 18:56:47 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 A Polícia Federal resiste? https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/05/28/a-policia-federal-resiste/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/05/28/a-policia-federal-resiste/#respond Fri, 28 May 2021 14:02:31 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/Salles-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1783 Ao manter sua expertise na manutenção da qualidade da investigação e ao demonstrar, via operação, que continua fazendo seu trabalho, a PF emite sinais de resistência

Andréa Lucas Fagundes*

Nos últimos tempos, a Polícia Federal tem estado no centro de disputas que envolvem diretamente o campo político. Para relembrar, os casos mais ilustrativos:

a) caso Bivar (2019), ocasião em que fizemos para o Fonte Segura uma breve revisão da PF e seu possível aparelhamento político;

b) a exoneração do então Diretor Geral, Mauricio Valeixo, alvo de acontecimentos políticos que implicaram a saída do então Ministro da Justiça e Segurança Pública do governo de Jair Bolsonaro, Sergio Moro;

c) a nomeação relâmpago do delegado Alexandre Ramagem, que não chegou a tomar posse do cargo;

d) episódio envolvendo a família Bolsonaro (esquema das rachadinhas), que coloca em xeque a independência de investigação da Polícia Federal com acusações de vazamento de informações por um delegado da PF;

e) a mudança ocorrida recentemente no Ministério da Justiça e Segurança Pública, em que assume a pasta Anderson Torres, delegado de Polícia Federal que há alguns anos vem exercendo atividades políticas e automaticamente troca o comando da Polícia Federal, hoje dirigida por Paulo Gustavo Maiurino, também delegado com perfil de articulação política;

f) o afastamento do então Superintendente da PF no Amazonas, Alexandre Saraiva, após ter enviado ao STF pedido de investigação contra Ricardo Salles, Ministro do Meio Ambiente;

g) nos últimos dias, a deflagração da operação Akuanduba, que tem entre seus investigados o Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e o presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA, Eduardo Bim, com autorização do STF, e;

h) na última sexta-feira, a notícia de proposição ao STF, pelo Diretor Geral Paulo Maiurino, de um documento propondo reestruturação interna do órgão e “implementação de mecanismos de supervisão administrativa e estruturação organizacional, nos moldes dos adotados pela PGR”, após a solicitação ao STF, pela Polícia Federal, de autorização para investigar o ministro Dias Toffoli.

Contudo, observa-se uma peculiaridade nos dois últimos casos, pois, ao contrário dos demais, a operação Akuanduba não se configura como uma ação do Executivo com tom de interferência política na instituição e sim a atuação da Polícia Federal realizando operação que tem como investigado um ministro de Estado, seguida da notícia de uma tentativa do Diretor Geral de controlar a autonomia dos delegados após pedido da PF para investigar ministro do STF. Cogita-se, então, a hipótese de uma possível resistência institucional, ou de ao menos uma parcela da instituição, à crescente interferência política na Polícia Federal. O que nos leva a revisitar alguns argumentos que vêm sendo apresentados nos últimos anos sobre o desenvolvimento institucional da PF, configurando o que acadêmicos e os próprios policiais federais consideram a independência administrativa e investigativa da Polícia Federal, frequentemente “testada” ultimamente.

Nos últimos 20 anos a instituição passou por significativo processo de mudança e desenvolvimento que envolveu reestruturação e modernização organizacional,  renovação e qualificação de seu quadro, fortalecimento da imagem institucional e especialização, culminando no refinamento da investigação via um processo que fortaleceu a capacidade de investigação e a qualidade da prova. Avanços que ocorreram mesmo enfrentando desafios como a disponibilidade orçamentária, que teve incremento na primeira metade dos anos 2000, mas que na última década e até os dias atuais passou a enfrentar cortes e restrições impostas pelo Poder Executivo.

Tal reestruturação interna colocou a PF em outro patamar institucional, tanto pelos resultados apresentados nas operações, como pela articulação com demais instituições do sistema de controle e pela imagem e confiança junto à sociedade brasileira. Entretanto, a independência administrativa e investigativa atingida parece não garantir bloqueio contra eventual ingerência do Poder Executivo, por sua subordinação ao Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), condição necessária em democracias.

Tais características institucionais e a insistente interferência do Executivo têm resultado em tensas relações entre a PF e o governo Bolsonaro, que parecem refletir a resistência de quadros do órgão, que ao longo dos anos 2000 e até o primeiro ano do governo atual, teve em sua cúpula lideranças com fortes características de atuação técnica, defensores da autonomia de investigação, que influenciaram a formação de novas gerações. Perfil que, muito provavelmente, opõe a resistência interna à gestão atual – representada pelo perfil político -, por meio da utilização de sua “maior/melhor arma”: a capacidade investigativa e qualidade da prova. Até aqui parece-nos que a instituição vem resistindo. Seja ao manter sua expertise na manutenção da qualidade da investigação e da prova, seja por demonstrações constantes, via operações, de que a PF continua fazendo seu trabalho mesmo contra grupos ligados ao presidente da República.

Contudo, os últimos acontecimentos, em especial após as mudanças no Ministério da Justiça e Segurança Pública e a entrada do Diretor Geral, Paulo Maiurino, exigem atenção. Primeiro o DG afasta um superintendente regional que opôs resistência pública e solicitou pedido de investigação envolvendo ministro e, em seguida, propõe reestruturação interna do órgão que pode tirar a autonomia dos delegados em investigações de autoridades com foro especial.

Sabe-se das clássicas disputas entre classes na PF, principalmente entre delegados e agentes. Entretanto, delegados sempre foram ferrenhos defensores da autonomia investigativa, sua principal bandeira e forte argumento de “blindagem” institucional. Movimentos como este podem acirrar disputas internas que pareciam latentes, como uma divisão entre delegados: de um lado o perfil técnico, de outro o perfil político. As manifestações de representações de classe e reações internas merecem acompanhamento e atenção. Cabe observar e verificar se a trajetória de desenvolvimento institucional da Polícia Federal, de fato, resistirá às novas diretrizes.

 

*Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas na UFRGS. Mestre em Sociologia pela UFRGS.

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Na edição desta semana, leia também “Medidas estratégicas reduzem a letalidade da Polícia Militar de São Paulo” e “Dia internacional de Combate à Homofobia: o que celebrar?

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Delegados federais: entre a autonomia e a política https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/05/03/delegados-federais-entre-a-autonomia-e-a-politica/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/05/03/delegados-federais-entre-a-autonomia-e-a-politica/#respond Mon, 03 May 2021 17:32:58 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/faces03.05-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1740 Os delegados têm encontrado na aproximação com a política ou na defesa da autonomia da PF caminhos para a ascensão aos cargos mais altos da corporação e ao primeiro escalão do governo federal

Lucas Batista Pilau*

 

No último dia 30 de março, Anderson Torres, delegado federal, tomou posse como ministro da Justiça e Segurança Pública. Em um de seus primeiros atos, Torres nomeou Paulo Maiurino à Direção-Geral da Polícia Federal. Ambos apontados como delegados próximos da política brasileira, a chegada de Torres ao MJSP e de Maiurino à DG-PF indicam que as vias de ascensão dos delegados a cargos de prestígios são mais largas e difusas do que imaginávamos. De um lado, podemos situar os delegados atrelados aos discursos de autonomia e de defesa da capacidade “técnica” da instituição. De outro, estão aqueles com largo investimento político em suas carreiras.

O acúmulo histórico pelas instituições judiciais brasileiras em torno do que se pode chamar de “autonomia” reflete as aspirações corporativas de órgãos como Poder Judiciário e Ministério Público para serem vistos ao exterior das demandas do tabuleiro político. Nas últimas duas décadas, com investimentos crescentes do governo federal e a consolidação dos delegados federais no poder no órgão – após embates travados com militares e as demais carreiras da corporação – a Polícia Federal também vem encampando a bandeira da autonomia, em especial aquela sobre suas investigações.

Embora seja uma pauta antiga da instituição, a deflagração da Operação Lava Jato fez com que o discurso da autonomia ganhasse força ao desaguar na mesma retórica da luta anticorrupção. Desde o início dos anos 2000, a PF tem investido na criação de delegacias especializadas no combate à lavagem de dinheiro, em marcar presença junto à Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e Lavagem de Dinheiro (ENCCLA) e em produzir e propagar a imagem de uma polícia capaz de levar à prisão as elites políticas e econômicas do país. Esses e outros movimentos fortaleceram a posição da PF no campo jurídico e na defesa de recursos corporativos, tais como o inquérito policial e a colaboração premiada.

Em 2019, com a eleição de Jair Bolsonaro à presidência da República e a chegada de Sergio Moro ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, vários delegados da Lava Jato de Curitiba ascenderam às principais posições da PF e a cargos no MJSP. Entre eles, como casos representativos, estavam Maurício Valeixo na Direção-Geral da PF, Igor Romário de Paula na Diretoria de Investigação e Combate ao Crime Organizado (DICOR), Márcio Adriano Anselmo na Coordenação-Geral de Repressão à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (CGRC-DICOR), Erika Mialik Marena no Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI) e Rosalvo Ferreira Franco na Secretária de Operações Policiais Integradas (SEOPI).

No entanto, a construção do poder político dos delegados parece nem sempre estar atrelado às suas funções como polícia investigativa e judiciária, havendo aqueles que, durante sua carreira, transitam largamente pela burocracia estatal. Um evento ilustrativo desse fenômeno ocorreu em janeiro de 2020, quando o então DG-PF Maurício Valeixo enviou um ofício à secretaria-executiva do MJSP pedindo que a pasta adotasse medidas para o retorno de policiais federais cedidos ao governo federal, alegando um “déficit preocupante”. Na época, segundo o DG, eram 191 servidores cedidos, sendo que 60 estavam lotados no MJSP.

Segundo dados coletados no Diário Oficial da União (DOU), somente em 2020 foram identificadas 39 cessões e requisições de delegados federais para outros órgãos, confirmando uma preponderância do MJSP como destino desses agentes (48,7% do total de cessões).

Gráfico 01: Cessões e Requisições de Delegados Federais (2020)

Fonte: elaboração do autor, com base em dados coletados no Diário Oficial da União (DOU)

Como os dados coletados indicam, as cessões e requisições de delegados da PF também se estendem para outros domínios do Estado brasileiro, tais como as secretarias de segurança pública dos estados, os tribunais superiores, a presidência da República, o Conselho da Justiça Federal, entre outros. No entanto, ainda sabemos pouco sobre os efeitos desses investimentos políticos realizados pelos delegados ao longo de suas carreiras, em especial as dimensões do contato com movimentos político-partidários e as atividades junto a governos estaduais. Quais os impactos dessa circulação após o retorno dos delegados para a instituição?

Nesse ponto, o próprio ministro da Justiça e Segurança Pública, Anderson Torres, foi recrutado diretamente da secretaria de segurança pública do Distrito Federal, do governo de Ibaneis Rocha (MDB-DF). Antes disso, também havia sido chefe de gabinete do ex-deputado federal Fernando Francischini (PSL-PR), também delegado de carreira. Seu escolhido para chefiar a PF, o delegado Paulo Maiurino, apresenta uma extensa trajetória política, com passagens pela corregedoria do DEPEN, pelos governos do Distrito Federal (gestão Agnelo Queiroz, PT), de São Paulo (gestão Geraldo Alckmin, PSBD) e do Rio de Janeiro (gestão Wilson Witzel, PSC), pela secretaria de segurança do Supremo Tribunal Federal e por uma assessoria no Conselho da Justiça Federal.

Assim, como referiu o presidente da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF), Evandir Paiva, em uma entrevista concedida em janeiro de 2020, uma instituição possuir autonomia e, ao mesmo tempo, a capacidade de influenciar politicamente no Congresso Nacional, seria o “melhor dos mundos”. Fazendo uma releitura de sua resposta, observamos que a diversificação das trajetórias dos delegados em posições de prestígio tem encontrado nesse “melhor dos dois mundos” caminhos amplos para a ascensão aos cargos mais altos da Polícia Federal ou ao primeiro escalão do governo federal.

Na semana passada, o delegado Alexandre Saraiva, da SR-AM, foi trocado logo após pedir ao STF a instauração de uma investigação em desfavor do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Esse evento colocou a PF novamente no centro do debate sobre interferências políticas ou trocas rotineiras, comuns quando novas gestões são iniciadas. Nesses momentos, o que era para ser “o melhor dos dois mundos” – entre a pleiteada autonomia da instituição e a proximidade com a política – pode vir a gerar mais dúvidas sobre a capacidade da PF de se manter afastada de ingerências externas e, ao que só podemos tomar como hipótese nesse momento, se tornar uma arma poderosa para projetos políticos que visem proteger aliados e garantir a perpetuação no poder.

* Doutorando em Ciência Política na UFRGS. Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS. Membro do Núcleo de Estudos em Elites, Justiça e Poder Político (NEJUP/UFRGS)

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Na edição desta semana, leia também “Covid-19 e morte de policiais: crônica de uma tragédia anunciada” e “Tráfico de drogas na percepção policial e os custos para a sociedade”.

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Excludente de Ilicitude: o primeiro ato do novo AI 5 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/11/22/excludente-de-ilicitude-o-primeiro-ato-do-novo-ai-5/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/11/22/excludente-de-ilicitude-o-primeiro-ato-do-novo-ai-5/#respond Fri, 22 Nov 2019 13:08:38 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/11/Aliança-Pelo-Brasil-Bolsonaro-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1186 Por Alberto Kopittke*

Os primeiros comentários na grande mídia sobre o PL (veja a íntegra aqui) da excludente de ilicitude apresentado por Bolsonaro ontem (21) não compreenderam de fato do que trata o Projeto. Mesmo os comentários críticos abordaram o PL como se ele fosse uma repetição do PL do Pacote de Sergio Moro, apenas ampliado a excludente para Militares em Operações de GLO (Garantia da Lei e da Ordem).

No entanto, o Projeto praticamente não tem relação com “Segurança Pública” e com o debate sobre a letalidade policial, que polariza o país e revela o forte protagonismo das polícias militares na vida política. Apesar das Operações de GLO serem utilizadas de forma cada vez mais ampla pelos Governos do PT e agora do PSL, nos últimos 10 anos, o número de mortes provocadas em Operações GLO é muito pequeno se comparado com os números do cotidiano da segurança pública brasileira, por geralmente se tratarem de operações de estabilização de território.

O que não foi percebido, é que o PL de Bolsonaro é praticamente uma cópia do Decreto Supremo 4078 editado há 5 dias atrás pela autoproclamada Presidente da Bolívia, Jeanine Ãnez, que garantiu a excludente de ilícitude para as Forças Armadas bolivianas reprimirem os movimentos que eclodiram no país. Outro sinal que passou quase que desapercebido foi que o Ministério da Defesa e não o da Justiça e Segurança Pública é que foi acionado para construir a minuta da proposta.

Na verdade, o PL de Jair Bolsonaro não tem nenhuma preocupação com o problema da criminalidade do país. Ele tem como alvo a possibilidade de um aumento das mobilizações de rua no país, como está ocorrendo em todo o continente, autorizando policiais e as forças armadas a fazerem uso da força letal contra pessoas envolvidas em manifestações sociais. O Projeto é uma preparação para a possibilidade do Brasil viver um processo de mobilização social e segue a sugestão dada pelo filho 03 do Presidente, Eduardo Bolsonaro, há poucos dias atrás, sobre a necessidade de se tomar medidas duras, como um novo AI5 no país.

É preciso compreender que o Projeto de Lei apresentado por Bolsonaro não está isolado na história. Ele é o ápice de toda uma estrutura jurídica que vem tornando a GLO um verdadeiro regime de exceção nas mãos do Presidente da República, sem a necessidade de aprovação do Congresso Nacional. Há uma aposta na radicalização como tática diversionista de concentração de poderes pelo Presidente e esvaziamento de quaisquer agendas que não sejam por ele emuladas.

Em 2013, findadas as manifestações populares, o Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas publicou a regulamentação das Operações de GLO (Portaria Normativa nº 3.461/2013/MD). A Portaria alterou pela primeira vez desde a redemocratização o conceito de Força Oponente, que é o conceito central que autoriza o uso da força por parte das Forças Armadas, o qual desde a redemocratização era entendido como as Forças Armadas de outro país soberano que venha a atacar o território nacional. A partir dessa Portaria, a utilização do uso de força militar passou a ser autorizada contra “qualquer grupo interno que instabilize a ordem social”. Além disso, a Portaria ainda previu pérolas como a possibilidade de realizar operações psicológicas junto a população civil brasileira e a autorização para a restrição do livre exercício do jornalismo nas áreas sob intervenção.

Em razão de forte reação de movimentos sociais, a regulamentação foi suavizada (Portaria Normativa Nº 186/MD/2014), embora tenha mantido como força oponente a ideia abrangente e vaga de “agentes de perturbação da lei e da ordem”. Agora, o novo Projeto de Lei retoma o espírito da Portaria original e incluí terrorismo no rol de situações autorizativas para a excludente de ilicitude. Há uma sutil mas clara reorientação político institucional em curso e que poucos estão percebendo. A questão é que não bastam votos em uma democracia; é preciso que as instituições sejam democráticas e sujeitas a mecanismos transparentes de controle e supervisão.

Em seu brilhante livro “Political (in)justice: authoritarianism and the rule of law in Brazil, Chile, and Argentina” sobre os regimes autoritários na América do Sul, o Professor Anthony Pereira, do Kings College de Londres, destaca uma peculiaridade do autoritarismo militar nacional. Diferentemente dos demais países, a ditadura brasileira, embora constitucionalmente ilegal, sempre se preocupou em garantir a legalidade formal mesmo de seus atos mais autoritários, a começar pelos diversos Atos Institucionais, cuidadosamente escritos até milhares de Inquéritos Militares, que registravam todas as perseguições totalmente arbitrárias.

Embora pudesse ter feito tudo o que fez apenas fazendo uso da força, como fizeram as Ditaduras Argentinas, Chilenas e Uruguaias, a Ditadura Brasileira preocupou-se em ser formalmente adequada, seguindo o “melhor” da tradição jurídica brasileira que prima pela forma em detrimento dos princípios do Estado Democrático de Direito.

O Projeto de excludente de Ilicitude em Operações GLO faz parte dessa tradição do legalismo autoritário brasileiro que vem ressurgindo e ganhando mais forças a cada dia no país. Num momento em que o futuro sobre nossa democracia é incerto, a única certeza é que o primeiro Projeto de Lei do novo AI5 já foi apresentado.

* Diretor Executivo do Instituto Cidade Segura e associado do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

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Um arco-iris no caminho da ultradireita populista brasileira https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/06/23/um-arco-iris-no-caminho-da-ultradireita-populista-brasileira/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/06/23/um-arco-iris-no-caminho-da-ultradireita-populista-brasileira/#respond Mon, 24 Jun 2019 01:59:00 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/06/Rodrigo-Mitsuro-Martins-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=927 Milhões de pessoas lotaram a Avenida Paulista hoje (23) em São Paulo e ativamente apresentaram-se durante a 23a. Parada do Orgulho LGBT como peças de resistência à onda de ultradireita populista e autoritária que tomou conta do Brasil a partir da eleição de Jair Bolsonaro à Presidência da República. Contra o discurso misógino, homofóbico e naturalizante de preconceitos e do ódio, milhões de pessoas deram prova de que as melhores armas são a tolerância e a promoção de uma agenda de direitos pautada no reconhecimento das múltiplas identidades e na diversidade.

Aqui no Faces da Violência já se falou bastante da pesquisa “Medo da Violência e Autoritarismo no Brasil“, realizada em 2017 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em parceria com o Datafolha. Segundo essa pesquisa, a população adulta com 16 anos de idade ou mais tinha uma propensão de adesão a valores autoritários de 8,1, em uma escala de 1 a 10. A eleição de Jair Bolsonaro comprovou que a pesquisa estava correta, uma vez que sua plataforma eleitoral foi baseada, na essência, na estética da violência e na defesa de um discurso de intolerância e polarização extrema. Bolsonaro não é causa mas sintoma do profundo “mal-estar civilizatório” que varre o ocidente e coloca em risco as democracias, como bem expôs Thiago Amparo nesta Folha, ontem (22), ao falar sobre a Hungria.

Aliás, ao falar sobre os riscos à democracia, os vazamentos de mensagens entre o ex-juiz Sergio Moro e os membros do Ministério Público Federal que integravam a Força Tarefa da Lava-Jato explicitaram a fragilidade do nosso estado de direito e, mais, mostraram o quão complexo é construir instituições verdadeiramente republicanas. Em nenhuma nação civilizada do mundo os fins justificam os meios e/ou  que a mídia esteja submetida à censura prévia dos donos do poder, mas, mesmo assim, é impressionante ver hordas de fanáticos defenderem sem nenhum pudor a punição da divulgação das mensagens. E não só, as redes sociais foram inundadas com pedidos de prisão e deportação do advogado e jornalista Glenn Greenwald, responsável pelo The Intercept.

Quando imaginávamos ter superado a ditadura de 1964, a campanha pela prisão e deportação de Greenwald nos faz lembrar do triste episódio da expulsão, em 1980, do padre Vito Miracapillo, que se recusou a celebrar missas em comemoração ao 7 de setembro. O padre italiano que trabalhava na cidade de Ribeirão, Diocese de Palmares, em Pernambuco, foi expulso do país a pedido do então prefeito da cidade, Salomão Correia Brasil, e do deputado estadual Severino Cavalcanti, então no PDS, que depois seria Presidente da Câmara Federal e terminaria envolvido no escândalo do mensalinho.

O episódio do vazamento das mensagens entre o ex-juiz e atual ministro da Justiça e Segurança Pública e os procuradores da Lava-Jato também escancara uma injustiça com os quase 700 mil policiais brasileiros. Isso porque as polícias são as instituições que levam quase que toda a culpa pela tragédia da violência e, paradoxalmente, são as instituições mais transparentes e controladas da área. Pouco sabemos sobre as engrenagens e atividades das demais instituições.

Eduardo Anizelli/Folhapress

As polícias têm demonstrado um censo de responsabilidade que merece destaque. E, retomando a pesquisa sobre autoritarismo, um dado que ainda foi pouco trabalhado e que talvez explique o comportamento das polícias e a força do movimento LGBTQ+ é que, simultaneamente ao brasileiro se mostrar propenso a aderir à pauta autoritária, uma outra bateria de perguntas deu pistas de como seria possível se contrapor ao discurso que ganhou força nas eleições e teima em querer ser hegemônico e impor seu modelo de ordem para a população.

Segundo a pesquisa, enquanto a adesão a valores ditos autoritários atingia 8,10 na escala, a propensão de aceitar a agenda de direitos civis, humanos e sociais prevista na nossa Constituição era de 7,83.

Tecnicamente essa segunda escala mostrou-se menos sólida e consolidada do que a primeira, mas se a olharmos atentamente veremos que, nela, a luta de quatro segmentos sociais ganharam destaque, a saber: os movimentos LGBTQ+; de mulheres, de negros e de luta contra a pobreza. O movimento LGBTQ+, mesmo com os altos índices de violência contra este segmento da população que o Atlas da Violência 2019 revelou, conseguiu mostrar que o homossexualismo não é crime ou doença.

Ou seja, o movimento LGBTQ+, entre outros, consolidou a agenda de direitos como uma narrativa forte a fazer oposição ao projeto de poder da família Bolsonaro e seu exército de seguidores. E, por esta razão, nada mais natural, politicamente falando, do que ver a Parada do Orgulho LGBT como uma prova de força e resistência.

Entretanto, para avançar, a pesquisa revelou que a defesa de direitos e da cidadania não pode ficar circunscrita à luta de um segmento, por mais justo e legítimo que este seja. Precisamos oferecer uma renovada narrativa sobre a incorporação de todos enquanto sujeitos de direitos; uma narrativa que reconheça e respeite as diferenças mas que não deixe o discurso da nação apenas para os órfãos da ditadura.

O problema é que teremos que lidar com o discurso autoritário, que tem usado o necessário combate à corrupção como cortina para empreender enormes esforços de conquista da hegemonia e tem flertado com medidas que soam (e são) como contrassenso (retirada de radares nas rodovias, proibição de multas para quem anda com crianças sem cadeirinhas de proteção, volta do passaporte com o brasão da República, ampliação do porte de arma, estudo para diminuição dos impostos dos cigarros, ampliação da excludente de ilicitude, cortes de orçamento na educação, fim da tomada de três pinos, entre outros “shows de bobagens” reconhecidos até pelo General Santos Cruz) porém mobilizam e batem fundo nas representações sociais e nos valores da população, reforçando-os.

Há muito o que ser feito e é positivo ver o movimento LGBTQ+ assumindo seu protagonismo nesta batalha civilizatória.

 

 

 

 

 

 

 

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O SUSP e a hora e a vez da segurança pública no Brasil https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/07/10/o-susp-e-a-hora-e-a-vez-da-seguranca-publica-no-brasil/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/07/10/o-susp-e-a-hora-e-a-vez-da-seguranca-publica-no-brasil/#respond Wed, 11 Jul 2018 02:56:46 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/07/150815779259e4a960a3639_1508157792_3x2_md-150x150.jpg http://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=111 Após 16 anos de idas e vindas, nesta quarta, dia 11/07, entra em vigor a lei que criou o Sistema Único de Segurança Pública – SUSP. Pensado inicialmente em 2002 por Benedito Mariano, atual ouvidor das Polícias de São Paulo; Luiz Eduardo Soares, ex-Secretário Nacional de Segurança Pública; e Roberto Aguiar, Ex-Secretário de Segurança do DF e Professor da UNB, o SUSP era uma proposta que pretendia uma profunda reengenharia constitucional da arquitetura federativa e republicana sobre a qual estão assentadas as respostas públicas frente ao crime, à violência e ao pleno exercício da cidadania.

Mas a ideia de reforma ampla não conseguiu apoio e nunca vingou. O jogo de soma zero que é jogado na área tem vencido esta partida repetidamente. Enquanto isso, desde 2002, vários projetos, planos e propostas que visam discutir a integração de esforços têm sido trazidas ao debate e contribuído para manter viva a ideia de integração. E, nesse processo, vários têm sido os policiais e não policiais que reiteradamente alertam para este ponto e que, neste momento, valem ser lembrados até como forma de valorizar a crença na boa gestão.

Alba Zaluar; Jacqueline Muniz; Fábio Sá e Silva; Arthur Trindade; Guaracy Mingardi; Ursula Peres; Alexandre Schneider, Ana Sofia S. Oliveira; Marco Viniciu Petrelluzzi; Rodney Miranda; Paulo Sette Câmara; Servilho Paiva; Cláudio Beato; Flávia Carbonari; Dino Caprirolo; Alvaro Duboc; Leonarda Musumeci; Delci Teixeira; Marcelo Durante; Carolina Ricardo; Daniel Cerqueira; Helder Ferreira; Alberto Kopittke; Marcos Rolim; Michel Misse; Ignácio Cano; Pedro Strozenberg; César Barreira; José Luiz Ratton; Luis Otávio Milagres; Eduardo Pazinato; Érica Machado; Marcos Veloso; Maristela Baioni; Paulina Duarte; Oscar Vilhena; Reinaldo Gomes; Valdir Assef; Joana Monteiro; Rodrigo Ghiringelli de Azevedo; Sandro Avelar; Luís Fernando Correia; Ricardo Balestreri; Ricardo Henriques; Regina Miki (Regina De Lucca); Fernanda dos Anjos; Sérgio Abreu; Paulo Mesquita Neto; Cristina Villanova; André Garcia; Vasco Furtado; José Mariano Beltrame; José Vicente Tavares dos Santos; Gustavo Camilo; Túlio Kahn; Silvia Ramos; Luis Flávio Sapori; Isabel Figueiredo; Roberto Sá; Eduardo Battituci; Julita Lemgruber; Élcio Trindade, entre muitos outros nomes.

Seja como for, passados alguns anos, por iniciativa dos Presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, Rodrigo Maia e Eunício de Oliveira, respectivamente, a ideia do SUSP foi resgatada e, a pedido deles, uma Comissão Especial tratou de reunir as diversas propostas em tramitação e sistematizar uma versão com os pontos consensuais. A orientação foi fugir de temas polêmicos e priorizar pontos que já eram convergentes entre os vários segmentos que militam na segurança pública.

Exatamente em função desta estratégia, o SUSP deixa diversos pontos descobertos e avança pouco na articulação, por exemplo, dos fluxos de informação e cooperação com o Ministério Público e com o Poder Judiciário. Porém, mesmo que a Lei não seja um instrumento revolucionário de modernização da segurança pública brasileira, o SUSP é um passo que vale ser mais elogiado do que criticado.
Afinal, ele é a tradução daquilo que o atual Ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, tem afirmado, ou seja, de que é chegada a hora da segurança pública no Brasil. Segundo o Ministro, se nas décadas de 1980, 1990 e 2000, o Estado brasileiro criou capacidades institucionais que dessem conta de atender aos demais direitos sociais previstos na Constituição (Saúde, Educação, Assistência Social, etc), na década de 2010 é chegado o momento do país enfrentar seus medos e tabus e modernizar sua segurança pública.

O maior mérito do SUSP é situar as políticas de segurança pública no rol das políticas públicas e, como consequência, associa-las ao debate acerca da eficiência e da efetividade das ações dos direta ou indiretamente responsáveis por prover segurança e direitos no país. O SUSP traz duas inovações fundamentais: institucionaliza o uso intensivo de dados e evidências para o planejamento de ações e incorpora a avaliação e a parametrização de padrões de conformidade técnica e organizacional.

É verdade que o Sistema é, acima de tudo, ainda uma grande declaração de princípios, mas é também digno de nota que o SUSP significa um avanço em relação às propostas salvacionistas e voluntaristas que têm marcado a área nos últimos anos.

Mas é inegável que há muito a ser feito ainda. Isso porque, ao longo do século XX, as questões relativas à segurança pública quase sempre foram tratadas essencialmente como responsabilidade dos governadores de estados, posto que a maior parte do trabalho de polícia é realizado pelas polícias civis e militares estaduais. Entretanto, o tema não é apenas de responsabilidade dos estados ou, mesmo, só do Poder Executivo. Além disso, a atividade policial também é condicionada pelo direito penal e processual penal, assuntos de competência exclusiva da União e que envolvem o Ministério Público, o Poder Judiciário e o Sistema Prisional.

E, não só, muitas destas atividades são reguladas e/ou fiscalizadas por órgãos Federais como, por exemplo, o Exército brasileiro, que é quem cuida da definição, das autorizações de aquisição e controle das armas de fogo e equipamentos balísticos de todas as forças policiais do país, bem como fiscaliza a produção, comercialização e o armazenamento de explosivos. O Exército tem várias outras atribuições que impactam diretamente na segurança pública, porém não é o único, sendo que Marinha e Aeronáutica, Banco Central, Agências Reguladoras (ANATEL, CVM, etc.) também são instituições e órgãos federais envolvidos.

Assim, se queremos modernizar a área e pacificar o Brasil, um sistema integrado e coordenado de segurança pública no Brasil deve, se o objetivo é que ele seja efetivo na transformação do quadro de medo e violência, criar mecanismos de governança capazes de articular União, Estados, Distrito Federal e Municípios, mas, necessariamente, precisa criar condições para a coordenação de ações entre Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, bem como entre Ministérios Públicos, Polícias Civil, Militar, Federal, Rodoviária Federal, Guardas Municipais, Forças Armadas, Tribunais de Contas e Sistema Prisional.

E, para tanto, considerando o cenário de medo da violência, risco e vitimização presente hoje no país e, em especial, a dificuldade de coordenar tantas frentes no curto prazo (até pela vedação de PEC este ano em função da Intervenção Federal no RJ), temos que valorizar alguns vetores estratégicos de mudança e mobilização (Informação/Transparência, Financiamento, novas doutrinas; foco territorial e participação social). São eles que permitirão que as questões estruturantes da área possa ser exploradas e boas políticas públicas formuladas

Para se ter uma ideia da complexidade desta operação, se somarmos todas as diferentes instituições e órgãos públicos cujo trabalho gera impacto direto na segurança pública, teremos quase 1.400 organizações públicas envolvidas. Isso para não dizer na supervisão de atores não estatais envolvidos com o setor e que acabam, muitas vezes, determinando ações e sentidos das políticas públicas (setor privado, bancos, ONG, mídia, igrejas, organizações criminosas, entre outras). Equacionar o dilema de coordenação e governança antecede quaisquer propostas finalísticas e precisa ser priorizado em seu encaminhamento.

Em suma, se queremos reduzir a violência no Brasil, temos que ter em mente que o dia 11 de julho de 2018 marca não só o início da vigência do SUSP, mas também a promulgação da Lei que criou o Ministério da Segurança Pública. Este dia poderá vir a ser chamado do “dia D da segurança pública”, porém, para isso, é necessário que fiquemos atentos para que as disputas de poder (o veto do Presidente Michel Temer ao Instituto Nacional de Estudos em Segurança Pública, previsto na Lei que criou o Ministério, é forte exemplo) e os ruídos de competência não boicotem a janela de oportunidades criada. E, mais especialmente, é preciso insistir com que quem ganhar as eleições de outubro que não é necessário reinventar a roda e/ou voltar à época das cavernas na segurança pública brasileira.

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Rotas da insegurança e da violência no Brasil – parte 1 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/07/01/rotas-da-inseguranca-e-da-violencia-no-brasil-parte-1/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/07/01/rotas-da-inseguranca-e-da-violencia-no-brasil-parte-1/#respond Sun, 01 Jul 2018 20:38:38 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/07/PCC-150x150.jpeg http://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=92 Faz 30 anos que o Brasil acordou um contrato social democrático, traduzido em nossa Constituição de 1988, que buscava selar as pazes entre Estado e sociedade e propor um pacto social pautado na garantia de direitos civis e humanos. Após décadas de regime ditatorial, o país emergia disposto a construir um projeto de reformas modernizantes que o colocaria em linha com as nações mais desenvolvidas do mundo e que incorporasse milhões de brasileiros a um novo modelo de desenvolvimento mais digno e justo.

Infelizmente, essa energia de mudança não enfrentou todos os nossos fantasmas e há temas quase que intocados até hoje. E, como consequência, em meio a um profundo quadro de desalento em relação às políticas públicas, “mitos” são criados e venerados, sem que as pessoas se atentem para o fato de que as instituições brasileiras são refratárias a quaisquer movimentos de mudança brusca que lhe retirem poderes e/ou privilégios.

Ninguém, absolutamente ninguém que vier a ser eleito Presidente ou Governador nas próximas eleições de outubro, terá plenos poderes para impor democraticamente sua agenda de reformas, ainda mais no campo da ordem e da segurança públicas. O resultado das eleições de outubro não significará, nem mesmo com a eventual escolha de Jair Bolsonaro e suas propostas ultra-raivosas, em uma carta branca para a revogação do Estado de Direito no Brasil.

Quem for eleito chefiará o Poder Executivo, mas terá que compor e negociar com órgãos de Estado como os Ministérios Públicos e com o Poder Judiciário. Há limites que não podem ser transpostos; há cláusulas pétreas da Constituição que precisam ser observadas, implementadas e respeitadas.

Dito isso, é importante analisarmos que algumas de nossas mais graves mazelas e dramas sociais mostram-se como persistentes marcas históricas de nossa cultura política e da nossa identidade nacional. E, entre elas, com certeza está a violência, seja ela emanada do Estado, do crime organizado ou aquela presente no cotidiano das nossas relações sociais. Só em assassinatos, por exemplo, a violência alcança faz quase uma década o patamar de 60 mil mortes anuais.

Somos uma sociedade profundamente fraturada e violenta, que aceita ser dividida entre “cidadãos de bem” e “bandidos” e, consequentemente, aceita que alguns tenham seus direitos garantidos e acesso à segurança pública e, outros, sejam vistos como inimigos a serem eliminados, na lógica da “segurança interna”. Não interditamos a violência nem moral, nem politicamente no Brasil.

Como resultado, as políticas públicas e criminais vigentes, ao longo dos anos, preferem focar mais no “criminoso” do que no “crime”; preferem incentivar um modelo de segurança pública baseado no enfrentamento e que, na prática, faz vítimas de todos os lados e nos faz ter a polícia que mais mata no mundo e uma das que mais tem seus profissionais mortos. A ênfase não está na investigação eficaz de crimes e punição dos seus responsáveis, mas na identificação e neutralização de delinquentes.

Temos um modelo de segurança pública com baixíssima eficácia organizacional, que apresenta taxas de esclarecimentos de crimes e tempos de processamento de casos muito ruins. E, para completar, a violência assume novas feições com o crescimento das facções criminosas, sobretudo do PCC (Primeiro Comando da Capital).

Surgido no início dos anos 1990, o PCC nasceu da organização de um grupo de presos por roubo a bancos, que no mundo da delinquência tem características próprias e identidade “profissional” muito definidas. Só a partir da sua segunda geração de líderes, em meados da década de 2000, é que o PCC vai caminhar para o modelo de negócios lastreado no tráfico de drogas – digno de nota, modelo que privilegia o médio atacado da droga, por sinal.

E, ao contrário do que a fama que foi sendo construída em torno do PCC, o controle por ele exercido da atividade criminosa vai se dando menos pelo rígido controle territorial de determinadas localidades, a exemplo das comunidades cariocas dominadas pelo Comando Vermelho, pelo Terceiro Comando, e/ou pelas milícias compostas por policiais e guardas municipais. A força do PCC está no domínio dos presídios, pois, por seu intermédio, há o controle do fluxo das atividades criminosas em uma determinada região e há a cooptação moral da população de presos e familiares.

O PCC, ao contrário de boa parte das demais facções do país, tem o seu modelo de negócios pautado pelo controle do atacado e não do varejo da droga. Isso significa que ele não vai influenciar necessariamente no comércio da droga na ponta, na “biqueira”, desde que todos os responsáveis pelo varejo comprem dele o que for definido pela cúpula. Não há exclusividade, mas redes de dependência. O traficante local até pode adquirir drogas de outros fornecedores, porém terá uma quota de drogas que precisará comprar do PCC. E, por esta dependência, há o entendimento que polícia perto gera problemas para os negócios e isso impacta nos lucros, disso derivando a opção por manter a “paz” nas biqueiras.

O PCC adota um rígido controle de condutas, com um modelo hierárquico de tomada de decisões. Uma vez dominados um presidio e sua área de influência, todos os presos, mesmo os não “batizados” (os que não integram formalmente o PCC) e toda a população próxima aos pontos de tráfico estão sujeitos às regras impostas pela cúpula da organização. Isso exige capilaridade, uma forte estrutura organizacional e um poderio bélico e de dissuasão cada vez maior. Já as demais facções não necessariamente trabalham na lógica do batismo e atuam como franquias de facções famosas; atuam sem estruturas hierárquicas tão rígidas e permitem maior autonomia local na tomada de decisões.

Em outras palavras, o PCC endereça suas atividades e adota a dissuasão e o domínio moral como ferramentas de manutenção do poder. Trata-se de uma estratégia sofisticada e que não pressupõe tão somente disputas por rotas, áreas e pontos de comércio e distribuição de drogas.

A tática é a de ocupação de posições e a de substituição do confronto com o Estado por uma pax monopolista que, se num primeiro momento mostra-se como violenta na tomada do poder, na sequência “pacifica” e “coopta” população e autoridades para o seu modelo de negócios, que busca administrar os conflitos locais e regular o mercado da morte por meio dos tribunais, afastando a polícia e maximizando ganhos. Este modelo de negócios é completamente diferente (e aqui não cabe avaliar qual é melhor ou pior) do carioca, por exemplo, cuja briga por territórios tem sido uma constante desde a década de 1970.

Mas é inegável que o PCC, e muitas outras facções, surgiu e cresceu como subproduto perverso das precárias condições de aprisionamento dos mais de 720 mil presos em regime fechado no Brasil. O crime organizado cresceu nas franjas da atual política de drogas e da política criminal de superencarceramento vigentes no país, oferecendo apoio e organizando a população carcerária e suas famílias diante da incompetência do poder público em cumprir a legislação – e aqui reside a contradição das propostas que advogam maior “rigor” como sinônimo do que já temos, sem inovar em propostas baseadas em soluções efetivas de problemas.

Ou seja, o poder do PCC ou das Milícias não seria tão intenso se o Estado cumprisse com os requisitos mínimos previstos na Lei de Execuções Penais, de 1984. O risco maior está menos nas porosas fronteiras do país, mas na forma pouco eficaz e efetiva com que as políticas públicas são pensadas e implementadas. Não que as fronteiras não sejam um problema, muito pelo contrário, mas elas conectam-se com a forma como administração segurança e justiça no país.

E, por esta forma, vamos construindo antagonismos e inimigos que nos afastam de um ideal de convivência cidadã. Na ânsia de sermos resgatados do julgo do medo e da violência, estamos prestes a chocar o Ovo da Serpente que engolirá nossa já pequena liberdade.

(continua na próxima postagem)

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A lei é para todos https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/05/30/a-lei-e-para-todos/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/05/30/a-lei-e-para-todos/#respond Wed, 30 May 2018 16:22:59 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/05/15275478655b0c87d9bc320_1527547865_3x2_md-150x150.jpg http://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=12

A forma como o Brasil está enfrentando a crise no transporte rodoviário de cargas, que em muito já ultrapassou as demandas dos caminhoneiros autônomos do país, é evidência cabal da fragilidade das instituições democráticas no Brasil, com ruidosos e agressivos grupos a favor da intervenção militar ganhando um perigoso protagonismo e revelando muito sobre o tempo social em que vivemos.

As tentações autoritárias se multiplicam e, infelizmente, confirmam os achados antecipados em artigo publicado em junho do ano passado na Ilustríssima (Violência e Medo Insuflam Defesa de Autoritarismo-no-brasil).

Nesse artigo, dados de pesquisa realizada pelo Datafolha e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública indicam que o país é terreno fértil para ideias e líderes autoritários. Diante do medo provocado pela violência urbana, propostas salvacionistas dão o tom do debate eleitoral: enquanto se valorizam líderes pretensamente capazes de restaurar a ordem e recolocar a sociedade nos trilhos, a democracia perde espaço.

Porém, o paradão dos caminhões, que conseguiu aglutinar demandas legítimas de um segmento profissional com toda sorte de interesses político-ideológicos e insatisfações difusas com o governo de Michel Temer e a classe política, trouxe um elemento adicional que ganhou pouco destaque e que pretendo refletir aqui com todos os leitores e leitoras.

Refiro-me à forma como as polícias e as Forças Armadas lidaram até aqui com a situação. Em paralelo ao crescente esfarelamento da autoridade do governo federal, as instituições mostraram-se bastante reticentes em conter e reprimir atos de quebra da ordem, como bloqueios de pistas, ameaças a quem queria trabalhar e crimes. Mesmo após a decisão do Ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal), ter autorizado, se necessário, o uso da força e, sobretudo, multas de R$ 100 mil, essas instituições não quiseram assumir o ônus envolvido na dispersão de um movimento visto como legítimo por parcela significativa da população (pesquisa Datafolha de hoje mostra que os caminhoneiros, face mais visível desta crise, contam com 87% de apoio entre a população).

E, como resultado, a Polícia Rodoviária Federal, por exemplo, não quis colocar automaticamente em prática a decisão do STF e escudou-se no argumento da necessidade de uma posição da AGU (Advocacia Geral da União). A Polícia Federal, contrariando sua estratégia de comunicação de máxima exposição midiática, está sendo muito cautelosa e evitando dar detalhes de sua atuação. O mesmo estamos vendo nas Forças Armadas e nas Polícias Militares, que foram incumbidas de escoltar cargas vitais e desobstruir pistas, mas evitaram confrontos e estão sendo super-diplomáticas no trato com os manifestantes.

As forças de segurança deveriam ter agido de outra forma? É cedo para fazermos afirmações peremptórias. Mesmo após 10 dias de paralisação, falta-nos dados mais amplos sobre o que de fato está em jogo nesta semana de crise. A princípio, gerenciar crises é sempre mais saudável do que reprimi-las. Mas, como instituições republicanas, é essencial que sejam guiadas por métricas públicas e que prestem contas do que foi e do que está sendo feito. Não há margem para dois pesos e duas medidas. A mesma lei vale para todos.

E porque eu digo isso? Se olharmos para os padrões recentes de atuação dessas instituições, o movimento mostra uma inflexão em relação à narrativa que vem dominando o país e que defende confrontos abertos com “bandidos” e a criminalização de movimentos sociais. Se os grupos políticos fossem outros e a narrativa da criminalização das reivindicações sociais estivesse em pauta, a atitude das polícias teria sido diferente?

Afinal, como relata reportagem do UOL publicada na segunda (28), alguns caminhoneiros estavam se apropriando das cargas para poderem se alimentar nos acostamentos das estradas. E, no limite, se o uso de cargas pelos caminhoneiros foi consentido pelos donos das cargas, teríamos neste ato provas do locaute, que é quando empresários incentivam seus trabalhadores a fazerem greve e é um crime no país. Se eles não pediram, temos um furto qualificado, que também é crime. Em ambos os casos, estamos presenciando situações que autorizariam investigações celeres, detenções e, se fosse o caso, flagrantes. Mas a empatia com a causa dos caminhoneiros modulou até aqui a ação pública e torna o quadro bastante opaco e incerto.

E, por trás dessa aparente mudança de narrativa e de postura, esconde-se uma complexa teia de gargalos e dilemas de governança e coordenação do sistema de segurança pública e justiça criminal que, muitas vezes, funciona em uma lógica fragmentada, pouco transparente e demasiadamente autônoma em relação à ordem social inaugurada pela Constituição de 1988. Teia esta que nos motiva a debater os rumos e sentidos das respostas públicas frente ao crime, à violência, ao medo e à manutenção da ordem social democrática do Brasil contemporâneo.

O blog Faces da Violência pretende, exatamente, ser um espaço que buscará analisar o que está por trás dos números da tragédia de medo e violência que nos assola e, com isso, pensar soluções mais efetivas para todos estes movimentos. Violência, segurança e ordem serão, portanto, debatidas a partir de uma perspectiva que valoriza a vida e a cidadania e que acredita no Brasil.

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