Faces da Violência https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br O que está por trás dos números da segurança pública Tue, 23 Nov 2021 18:56:47 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Efeito Contágio: o papel da mídia na repetição de assassinatos em massa https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/05/14/efeito-contagio-o-papel-da-midia-na-repeticao-de-assassinatos-em-massa/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/05/14/efeito-contagio-o-papel-da-midia-na-repeticao-de-assassinatos-em-massa/#respond Fri, 14 May 2021 22:04:40 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/Back-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1772 Ampla divulgação de massacres pode contribuir para a ocorrência de casos semelhantes. Jornalistas devem evitar citar o nome dos perpetradores e não publicar suas fotos

 

Caroline Back*

Mais um caso de assassinato em massa chocou o país no dia 04/05: um rapaz de 18 anos invadiu uma creche no interior de Santa Catarina e matou a golpes de facão três crianças e duas professoras, tentando em seguida cometer suicídio. A ocorrência de mais essa tragédia evidencia uma preocupação: há algo que se possa fazer para tentar evitar casos como esses?

Nesse sentido, este artigo busca trazer reflexões acerca da cobertura midiática dessas ocorrências e a possível influência em novos casos, o chamado “efeito contágio”. Além disso, oferece orientações para direcionar a cobertura de tais eventos de forma a minimizar esse efeito.

Cobertura midiática e o efeito contágio

Há muito tempo, teóricos da psicologia e sociologia sabem que comportamentos tendem a ser imitados com base nas suas consequências e esse efeito pode ser particularmente devastador no caso de comportamentos violentos.

Exemplo disso é o chamado “efeito Werther”, termo proposto pelo sociólogo David Phillips, em 1974, para descrever a influência da divulgação de atos suicidas na ocorrência de outros casos. O fenômeno foi observado na Alemanha, no final do século XVIII, após uma onda de suicídios ter sido relacionada ao trágico desfecho do personagem Werther – da célebre obra de Johann Von Goethe, publicada em 1774.

Acredita-se que o mesmo fenômeno esteja relacionado aos casos de assassinatos em massa, o chamado “efeito contágio”, indicando que a ampla divulgação dos massacres possui o efeito de gerar outros casos semelhantes, de indivíduos que buscam imitar os ataques e receber a mesma atenção.

Esse fenômeno pode ser explicado, em parte, pela ampla publicidade que se dá a tais eventos. Por exemplo, um levantamento mostrou que os autores de sete assassinatos em massa entre 2013 e 2017 receberam aproximadamente US$ 75 milhões em menções de mídia gratuitas. Esse tipo de publicidade gratuita pode ter o mesmo efeito de publicidades pagas, aumentando o número de interessados no assunto e inspirando a prática de novos casos.

Além disso, já foi demonstrada correlação positiva entre o número de vítimas e a publicidade obtida pelo agressor. Um estudo que analisou assassinos em massa entre os anos de 1976 e 1999 descobriu que aqueles que mataram e feriram mais vítimas tinham uma probabilidade significativamente maior de aparecer no jornal The New York Times em comparação aos casos em que houve menos derramamento de sangue. Ou seja, a maior atenção recebida pode ser um incentivo a mais para o criminoso matar o maior número de vítimas possível.

Tal fato tem uma explicação psicológica: acredita-se que uma das características frequentes em assassinos em massa é a presença de um traço narcísico, que os leva a querer chamar a atenção da sociedade para seus atos “grandiosos” e até mesmo uma espécie de “competição” com outros ofensores para fazerem o maior número de vítimas.

Nesse sentido, Lankford documentou 24 exemplos de perpetradores que admitiram abertamente buscar fama e citou casos adicionais em que há fortes evidências comportamentais que indicam essa intenção. Alguns desses indivíduos estavam inclusive competindo com outros para se tornar o assassino em massa mais famoso da história.

Cobertura midiática e a influência em novos casos: dados assustadores

Para compreender melhor esse fenômeno, estudos buscaram identificar a influência da divulgação midiática na ocorrência de novos ataques. A maior parte deles foi feita com base em tiroteios em massa, que é reconhecidamente a forma mais comum desses ataques. Os dados são assustadores: um estudo realizado em 2015 estimou que cada evento possa incitar pelo menos 0,30 novos casos.

Outro propôs uma metodologia para estabelecer uma relação de causa e efeito entre os eventos. Ao analisar casos entre 2013 e 2016, nos EUA, concluiu que nada menos do que 58% de todos os tiroteios em massa podiam ser explicados pela cobertura de notícias. Os estudos ainda apontam um período de quatro dias a duas semanas em que essa influência estaria presente.

Recomendações

Assim, as principais recomendações para a cobertura desses eventos na mídia são simples e práticas, mas podem ser muito efetivas:

1. Não citar o nome do perpetrador nem sua foto;

2. Em vez disso, usar o ano, local do ataque e uma palavra como “perpetrador” ou “suspeito”;

3. Não usar nomes, fotos ou imagens de perpetradores anteriores;

4. Evitar retratar o indivíduo como “competente” no seu intuito homicida;

5. Evitar retratá-lo como “agressivo” ou “perigoso”, pois pode ser uma espécie de recompensa ou atributo a ser imitado;

6. Relatar todo o restante sobre o caso, com a quantidade de detalhes desejada.

Quando o assunto for a cobertura dos assassinatos em massa: “não os nomeie, não os mostre, mas relate todo o resto”.

 

*Psicóloga na Secretaria de Segurança Pública (GMSJP – PR); Especialização em Segurança Pública; Cursando Pós-Graduação em Neurociência Criminal e Comunicação não-verbal; Graduação em Psicologia (PUCPR); Cursando Graduação em Direito (FESPPR); Membro do Conselho Comunitário de Execuções Penais de São José dos Pinhais (CCEP-SJP).

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Na edição desta semana, leia também “Rio de Janeiro e o desgoverno da segurança” e “Ministério Público e o controle da atividade policial“.

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Violência e desmatamento caminham juntos na Amazônia https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/01/28/violencia-e-desmatamento-caminham-juntos-na-amazonia/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/01/28/violencia-e-desmatamento-caminham-juntos-na-amazonia/#respond Thu, 28 Jan 2021 14:48:20 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/fotoprincipal-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1643 Territórios desmatados têm maior taxa de assassinatos rurais por 100 mil habitantes. Mais do que nunca, as áreas de segurança pública e meio ambiente precisam se integrar. 

Sofia Reinach*

Isabela Sobral**

A discussão sobre crimes ambientais na Amazônia é urgente e vem se aprofundando nos últimos anos. As evidências apontam que a situação se agrava rapidamente e que a atenção para o assunto deve ser prioridade nacional. Ao mesmo tempo, o país assiste a um cenário alarmante nos índices de violência rural e urbana. As taxas de mortes violentas intencionais, estupros e agressões justificam o medo que a população sente ao sair de casa ou definir seus trajetos cotidianos.

Apesar de ambos os cenários trágicos serem objeto de diferentes esforços e trabalhos analíticos, o olhar para a forma como crimes ambientais e crimes violentos estão relacionados na região amazônica ainda é incipiente no país. O intuito desse texto é, portanto, demonstrar como avançam os crimes violentos nas diferentes regiões amazônicas, considerando o grau de desmatamento das áreas.

Em 2007, Celentano e Veríssimo publicaram o estudo “O Avanço da Fronteira na Amazônia: do Boom ao Colapso”, em que dividem a Amazônia em quatro zonas de cobertura: “não-florestal”, “desmatada”, “sob pressão” e “florestal”. As áreas “não florestais” são regiões cobertas por cerrados e campos, onde as principais atividades são pecuária extensiva e agricultura. As áreas “desmatadas” foram cobertas por florestas, mas já possuem mais de 70% da sua área desflorestada. As regiões “sob pressão” constituem aquelas localizadas nas novas fronteiras de ocupação e, portanto,  com maior risco de desmatamento atualmente. Por fim, as áreas “florestais” compreendem regiões mais conservadas, com apenas 5% de desflorestamento. A publicação mostra que, naquele período, havia uma maior incidência de homicídios e maior taxa de assassinatos rurais por 100 mil habitantes nas zonas “sob pressão”.

Recentemente, em conjunto com pesquisadores do Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia), em um esforço de contribuir com o trabalho da Revista Piauí num artigo sobre a Amazônia, buscamos atualizar essa informação. Para tanto, foram recalculadas as divisões das zonas de cobertura para cada ano analisado. Além disso, outros dados foram utilizados para a análise. Primeiramente, vale observar como se dá a distribuição de crimes na região da Amazônia Legal no momento mais recente. A tabela abaixo apresenta dados relacionados à violência em 2018, provenientes de diferentes fontes de dados.

Conforme é possível verificar na tabela, as zonas “sob pressão” possuem maiores taxas de violências não letais registradas pelo Sinan (Sistema de Informação de Agravos de Notificação). Tanto violência sexual, como violência física apresentam maior quantidade de notificações por 100 mil habitantes do que as outras áreas. No entanto, ao tratar de violência letal, é a zona “desmatada” que responde pela maior taxa de homicídios, seguida pela zona “sob pressão”. Considerando a conclusão do estudo de Celentano e Veríssimo (2007), houve uma mudança importante no comportamento dos índices de violência letal na zona “desmatada”. O gráfico abaixo apresenta o comportamento das taxas de homicídio nas diferentes categorias nos dois períodos.

O gráfico traz as médias das taxas de homicídio em dois períodos: 2004 a 2007 e 2015 a 2018. Ou seja, entre um conjunto de barras e o outro existe um intervalo de oito anos. É possível verificar que no primeiro período as taxas de homicídio eram significativamente maiores nas zonas “sob pressão”. No entanto, passados oito anos, a violência subiu nas áreas “não florestal”, “desmatada” e “florestal”, praticamente se igualando à taxa das zonas “sob pressão”. As áreas desmatadas apresentaram até uma média superior à taxa da zona “sob pressão”. Ou seja, é possível verificar que a violência se tornou um fenômeno mais frequente em todas as áreas amazônicas.

Apesar de todas as áreas terem visto um crescimento significativo das taxas de violência, também é digno de nota que as maiores taxas de homicídios estão em áreas que tem algum grau de desmatamento. Ou seja, apesar de essa não ser uma constatação de causalidade, pode-se afirmar que violência e desmatamento são fenômenos que caminham juntos.

O que se debate aqui, portanto, é a urgência de aprofundar os estudos e análises que relacionam crimes violentos e crimes ambientais. Existem fortes indícios de que os fenômenos possuem convergências, como apontam os dados acima. A compreensão de como a área de segurança pública pode se relacionar com a área ambiental e estas, juntas, contribuírem para a compreensão desse contexto é um desafio a ser enfrentado no país.

 

*Mestre em Administração Pública e Governo pela Fundação Getulio Vargas – SP. Graduada em Administração Pública na mesma escola. Pesquisadora do Centro de Administração Pública e Governo da Fundação Getulio Vargas e pesquisadora associada do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

**Graduada em Ciências Sociais pela USP, mestranda em Administração Pública e Governo pela Fundação Getulio Vargas e pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

 

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Na edição desta semana, leia também “A atuação da PRF nas operações do Ministério da Justiça e Segurança Pública” e “Acidentes aeronáuticos: aspectos periciais

 

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Contra a epidemia de homicídios no Brasil https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/12/01/contra-a-epidemia-de-homicidios-no-brasil/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/12/01/contra-a-epidemia-de-homicidios-no-brasil/#respond Tue, 01 Dec 2020 20:23:20 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/Jarbas-Oliveira-Folhapress-jpeg-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1603 Ao produzir mais dados sobre a investigação e a elucidação dos crimes, as polícias terão maior entendimento sobre suas próprias vulnerabilidades e necessidades no dia a dia.

 

Fabiano Contarato*

Atingido este ano por uma pandemia que já tirou a vida de mais de 170 mil brasileiros em pouco mais de 9 meses, o Brasil vive, também, uma epidemia silenciosa, geralmente resumida às estatísticas: somos um país com mais de 50 mil homicídios anuais, em média, na última década. Fato também assustador é que a “normalização” desse grande número de mortes veio acompanhada de outra “normalização”: o Brasil não é capaz de esclarecer a maioria dos homicídios, o que permite que os responsáveis por crimes graves sigam livres para reincidir e priva da justiça as famílias de vítimas.

Apresentei projeto de lei no Senado Federal para tentar mudar esta triste realidade. Na proposta, estou elencando quais informações básicas as autoridades de segurança devem recolher, sistematizar e publicar: o número de ocorrências de crimes violentos letais e informações diversas sobre as vítimas; o número de inquéritos policiais em andamento, relatados com autoria e arquivados; os recursos materiais e humanos disponíveis para investigação de homicídios; e a duração média das investigações policiais. Espera-se que uma experiência bem-sucedida na promoção de transparência nas ações de combate aos homicídios seja, posteriormente, expandida para outros crimes.

Ao produzir mais dados sobre a investigação e a elucidação de homicídios, as polícias terão maior entendimento sobre suas próprias vulnerabilidades e necessidades. Poderão, assim, planejar investimentos, alocar recursos, demonstrar publicamente eventuais deficiências e, assim, pleitear mais verbas, além de promover reformas administrativas e institucionais necessárias. Poderão, ainda, acompanhar a efetividade dessas reformas ao longo do tempo e, assim, identificar aquelas medidas que produzem mais ou menos resultados.

A sociedade civil terá um papel fundamental neste processo. Mais informação disponível gerará mais cobranças por parte dos cidadãos em relação aos seus representantes eleitos. A taxa de elucidação de homicídios será a métrica de avaliação dos governantes, e aumentá-la, promessa de campanha.

De acordo com dados do Instituto Sou da Paz, menos de um terço dos homicídios é esclarecido no país – ou seja, em apenas um de cada três homicídios é identificado o autor do crime. Se estes dados são ruins, ainda pior é saber que esse percentual retrata a realidade apenas de 10 estados e do Distrito Federal. Isso porque, em 16 estados brasileiros, não se sabe nem sequer quantos homicídios são elucidados.

Na ausência de dados, é impossível planejar, executar e monitorar políticas públicas de combate à violência letal. Como saber onde investir? Como saber se uma iniciativa está sendo bem-sucedida ou não? Como disseminar boas práticas ou eliminar aquelas que não funcionam?

Este é, afinal, um tema capaz de mobilizar a sociedade e demanda esforços multidisciplinares. A insegurança pública é uma das principais preocupações da população, especialmente em grandes cidades. A existência de informações mais claras, concretas e precisas sobre isso contribuirá para um debate público mais produtivo.

O país não aguenta mais soluções simples e falsas para problemas difíceis. O projeto de lei que apresentamos não transformará a realidade do dia para a noite, mas, caso aprovado e vire lei, promoverá a transparência das informações sobre segurança pública e tem o potencial de desencadear uma profunda transformação na forma como se combate homicídios no Brasil.

 

* Fabiano Contarato é Senador da República (Rede-ES).

 

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Na edição desta semana, leia também: “Como enfrentar as atuais ameaças à segurança: com estratégia ou com pólvora?”.

 

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Homicídios no Brasil: um desastre aéreo por dia https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/09/01/homicidios-no-brasil-um-desastre-aereo-por-dia/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/09/01/homicidios-no-brasil-um-desastre-aereo-por-dia/#respond Tue, 01 Sep 2020 21:29:15 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/09/15786460715e183a3725591_1578646071_3x2_rt-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1516 A média diária de assassinatos no país equivale, em números, às mortes ocasionadas pela queda de um avião comercial com cerca de 160 passageiros.

Por Pablo Lira*

O Atlas da Violência, publicado na última semana, revelou que em 2018 foram registrados aproximadamente 58 mil homicídios no Brasil. A média diária de assassinatos no Brasil equivale, em números, às mortes ocasionadas pela queda de um avião comercial com cerca de 160 passageiros. São seis homicídios cometidos a cada hora. Com base nesse diagnóstico inicial, o país se destaca como a nação mais violenta do mundo.

Com uma taxa de 27,8 assassinatos por 100 mil habitantes, o Brasil também ostenta as primeiras posições no triste ranking da violência. Na comparação entre os anos de 2017 e 2018, o índice nacional reduziu em -12,0%. Todavia, a taxa brasileira evidenciou aumento de 4,0% entre 2008 e 2018. Nesse período, foram mais de 628 mil pessoas assassinadas.

Do total de homicídios computados em 2018, 91,8% das pessoas mortas eram do sexo masculino. No recorte de faixa etária, 53,3% das vítimas eram jovens com idades de 15 a 29 anos. A desigualdade racial da violência é corroborada quando se constata que 75,7% das vítimas de homicídio em 2018 eram negras. Entre 2008 e 2018 ocorreu aumento de 11,5% nos assassinatos de negros. No mesmo intervalo de tempo, houve redução -12,9% das mortes dos não negros. Para cada não negro assassinado, 2,7 pessoas negras são vítimas de homicídios. Sobre o instrumento empregado para cometer as violências, cabe ressaltar que 71,1% dos assassinatos foram praticados com armas de fogo.

Em síntese, o perfil demográfico destaca que as principais vítimas são homens jovens, negros, mortos por armas de fogo. Estudos no campo da segurança pública indicam que tais características são muito semelhantes ao perfil dos agressores. A condição de uma baixa escolaridade configura outra característica comum a esses dois grupos. No conjunto de vítimas do sexo masculino, 74,3% dos indivíduos tinham alcançado no máximo 7 anos de estudo, o que equivale no melhor dos cenários ao ensino fundamental incompleto. Na porção das vítimas do sexo feminino, esse percentual foi de 66,2%.

Em relação à violência de gênero, insta salientar que 4.519 mulheres foram assassinadas em 2018, ou seja, uma mulher é morta violentamente a cada duas horas no Brasil. Com 4,3 mortes por 100 mil mulheres, o país destaca uma das taxas mais elevadas do mundo. Sobre as violências psicológica, física, tortura e outros tipos praticados contra pessoas LGBTQI+, cabe destacar que em 2018 foram registradas 9.223 notificações no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) do Ministério da Saúde. Esse número foi 19,8% superior em comparação ao valor observado no ano anterior.

O Atlas da Violência é uma das principais ferramentas que garante amplo acesso às informações e análises sobre perspectivas da segurança pública. Ele é produzido em parceria pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Se caracteriza como uma ferramenta essencial para lançar luz sobre o quadro da violência brasileira e possibilitar, por meio dos diagnósticos estabelecidos, o desenvolvimento e aprimoramento de políticas públicas de prevenção e repressão qualificada.

 

*Doutor em Geografia, Mestre em Arquitetura e Urbanismo, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), pesquisador do Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN) e professor da Universidade Vila Velha (UVV)

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Brasil, uma nação de mortos-vivos https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/08/23/brasil-uma-nacao-de-mortos-vivos/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/08/23/brasil-uma-nacao-de-mortos-vivos/#respond Sun, 23 Aug 2020 14:32:28 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/A-noite-dos-mortos-vivos-320x213.gif https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1507 Vinicius Torres Freire na Folha, hoje (23), foi perfeito em sua coluna sobre o momento em que o Brasil vive e sobre a capacidade do presidente Jair Bolsonaro em se revigorar no caos criado a partir de sua eleição. Freire afirma que diante de todas as adversidades, o presidente tem conseguido vitórias e se fortalecido. E, ao final, ele diz que, o mais provável para o país, é que “o Brasil voltará a sua rotina de violência aberrante, com uma causa mortis a mais, apenas. A indiferença ao morticínio é uma vitória da mentalidade bolsonariana”.

Peço licença a Vinicius Torres Freire para aproveitar suas figuras de linguagem, pois, a meu ver, o seu argumento é irretocável, exceto por um certo otimismo em achar que o país “voltará” à sua rotina de violência e indiferença. Pelos dados disponíveis, o Brasil nunca abandonou tal rotina e, o que ocorre agora, é que o bolsonarismo foi promovido à condição de políticas de governo. Mas a mentalidade ‘bolsonariana’ esteve e está presente entre nós faz décadas. A mão do “morto-vivo que rebrota da terra na madrugada do cemitério nevoento” está na verdade viva e se faz de morta para puxar o gatilho que continua a vitimar milhares de vítimas de homicídios e para apunhalar a democracia e a cidadania.

E isso fica ainda mais evidente quando constatamos que, mesmo em uma pandemia, os homicídios cresceram cerca de 6% no primeiro semestre de 2020, em relação ao mesmo período de 2019. E, talvez o mais significativo, é que já são nove meses de crescimento ininterrupto dos homicídios, segundo dados do Monitor da Violência recentemente divulgados. Os homicídios cresceram em 17 estados do país, incluindo São Paulo, que vinha de 20 anos de reduções sucessivas dos homicídios. Houve, em São Paulo, um aumento de 4,7% no mesmo período.

E isso sem contar as Mortes Decorrentes de Intervenção Policial, que, somente no estado, cresceram mais de 20% no primeiro semestre deste ano. A mesma coisa se repete com a violência contra a mulher, que segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública aumentou durante a Pandemia, mas já vinha de um longo ciclo de crescimento anual. Aliás, o FBSP alerta, faz 14 anos, para a falência do modelo de organização da segurança pública brasileira, e nos próximos dias deverá lançar a edição 2020 do Atlas da Violência, uma parceria com o IPEA, com dados que, mais uma vez, explicitará as recorrentes indiferença política e a naturalização da violência contra negros, mulheres, jovens, população LGBTQI+.

Indiferença que naturaliza, por sinal, o fato de 54% dos registros de estupros no Brasil serem de casos com vítimas com até 13 anos de idade. Crianças sem infância e reféns de uma cultura do estupro são criminalizadas por defensores dos bons costumes e da moral conservadora quando buscam seus direitos, como a menina que foi autorizada a fazer um aborto legal no Espírito Santo, sem que, no entanto, lembremos que a violência está presente no nosso cotidiano como uma das nossas marcas históricas mais perversas.

Violência que aceita a brutalidade policial nas periferias, em geral contra pardos e pretos, quase todos pobres, como na sequência de casos envolvendo a Polícia Militar de São Paulo, que a massificação das câmeras de celulares permitiu que chegasse ao conhecimento da opinião pública mas que não é novidade nenhuma nas “quebradas” paulistanas, nas favelas cariocas e/ou nas várias denominações dos bairros pobres das cidades brasileiras. Violência tão naturalizada que nos faz indiferentes ao fato dos jovens negros terem 2,5 vezes mais chances de serem assassinados e, em uma expressão carioca, ao fim e ao cabo, terem como horizonte de vida a convivência cotidiana com o temor de serem presos ou mortos em operações policiais (operações que, por sinal, colocam os próprios policiais em risco e cujos comandantes, quando questionadas, se eximem de responsabilidade e deixam o policial da ponta com o ônus exclusivo de justificar a sua conduta individual).

Violência que dizima indígenas em nome do combate ao tráfico de drogas ou que é perpetrada na defesa de um modelo de agronegócio predador, que desconsidera inclusive os avanços tecnológicos que um segmento mais moderno e consciente desenvolveu para o uso social, econômica e ambientalmente responsável de terras; incentiva a desregulação e desmonta a já precária capacidade fiscalização ambiental das instituições públicas. O caráter estratégico da Amazônia vira sinônimo de paranoia e não de planejamento responsável e análise geopolítica e ambiental de riscos efetiva, sem cabrestos ideológicos.

Violência que produz situações bizarras como mais de 30 anos de domínio cruel de territórios com milhões de brasileiros e brasileiras por facções de base prisional ou de milícias e, ao mesmo tempo, petições do Governo do Rio de Janeiro e do Ministério da Justiça e Segurança Pública contra a proibição de operações policiais em comunidades do Rio durante a pandemia que se utilizam de argumentos que beiram o surrealismo, na medida em que são tão exatos para dimensionar ameaças que justificariam tais operações como vagos para explicar as razões pelas quais outros padrões de policiamento, menos violentos e baseados na inteligência, não são adotados.

Inteligência que, nos escaninhos do poder, deu guarida à produção do dossiê contra ex-secretários e policiais antifascistas pela SEOPI (Secretaria de Operações Integradas) e que foi considerada irregular pelo STF, enquanto não há conhecimento acumulado para se compreender as causas dos homicídios e que faz com que, eternamente, fiquemos em uma disputa narrativa entre aqueles que acreditam no peso do crime organizado e os que defendem que as tendências criminais são resultado ou de políticas públicas ou de macrocausas econômicas e demográficas.

Indiferença que torna a violência cotidiana e já visível para milhões de brasileiros em algo intangível e invisível às instituições, que se preocupam mais com seus interesses corporativistas do que com a mudança do cenário de crime e violência – isso para não dizer no liberou geral das armas de fogo em curso no país. Indiferença que se fortalece nas tentações autoritárias de uma sociedade acostumada com a ideia de inimigos internos e cujas preferências antidemocráticas estavam dadas muito antes do Governo Bolsonaro.

O bolsonarismo do presente não é algo exclusivo à figura de Jair Bolsonaro. É, infelizmente, um modo de ser e de pensar que tem a adesão de milhões de pessoas e que nos faz refletir sobre quanto anos serão necessários, na melhor das hipóteses, para que a cidadania e a vida sejam valores que refundariam uma nação tão perversamente dócil com a violência e o caos. Os mortos-vivos seríamos nós e não a mão descrita de Vinicius Torres Freire.

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Por que o Brasil caiu 3 posições no Índice Global de Paz? https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/08/05/por-que-o-brasil-caiu-3-posicoes-no-indice-global-de-paz/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/08/05/por-que-o-brasil-caiu-3-posicoes-no-indice-global-de-paz/#respond Wed, 05 Aug 2020 14:31:38 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/Armas1-320x213.gif https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1499 Dos 163 países ranqueados, o Brasil está na posição 126, tendo caído três posições em relação ao ano anterior.

Por Carolina Ricardo*

Na semana passada foi lançado no Brasil o Global Peace Index (Índice Global de Paz – IGP) de 2020, que compara 163 países em relação a nível de paz encontrado em cada um deles, elaborado pelo Institute of Economics and Peace (Instituto de Economia e Paz), com sede em Sidney, na Austrália. O IGP é uma medida interessante, sendo um indicador complexo que articula três dimensões: 1) Conflitos internos e internacionais em curso no país; 2) Segurança social e pública; e 3) Militarização. Seu objetivo é promover um entendimento mais compreensivo do nível de paz encontrado nos países, sendo um esforço para categorizar a paz para além da presença ou ausência de guerras nos países.

A primeira dimensão inclui indicadores como quantidade e duração de conflitos internos, número de pessoas mortas em conflitos externos e participação do país nesses mesmos conflitos internacionais. Já a segunda, mais ampla e mais complexa, envolve indicadores tais como números de refugiados, escala de terror político (práticas autoritárias), nível dos crimes violentos, taxa de homicídios por 100 mil habitantes, probabilidade de manifestações públicas violentas, população prisional por 100 mil habitantes e policiais por 100 mil habitantes, acesso individual a armas de fogo. E, por fim, a terceira dimensão envolve indicadores como percentual dos gastos militares em relação ao PIB, total de militares por 100 mil habitantes, volumes de armas exportadas e importadas por 100 mil habitantes. É uma metodologia complexa e que se encontra muito bem detalhada no relatório  , assim como a descrição das fontes para cada indicador que compõe o índice. De toda forma, é uma forma ousada e inovadora de avaliar a paz.

O balanço geral do IGP 2020 é de que o nível de paz global sofreu uma deterioração em relação ao ano anterior, de 0,34%. Sendo a nona queda dos últimos 12 anos. Os aspectos que contribuíram para essa deterioração em nível global foram o aumento do terror político, aumento de refugiados e da intensidade de conflito internos. Dos 163 países ranqueados, o Brasil está na posição 126, tendo caído três posições em relação ao ano anterior. Na dimensão conflitos em curso, a posição do Brasil é a mais positiva entre as três, ocupando a 88ª posição. Já na dimensão segurança, o Brasil apresenta o pior resultado, estando em 145º e na dimensão militarização, em 120º.

O que explica a queda brusca na dimensão segurança, é a piora no indicador de crimes violentos, homicídios, terrorismo político (práticas autoritárias) e acesso às armas individuais. Ainda que os homicídios tenham caído entre 2018 e 2019, nossos números absolutos desse crime ainda são inaceitáveis. Segundo o relatório sobre homicídios do UNODC publicado em 2019, o Brasil tem a segunda maior taxa de homicídios por 100 mil habitantes da América do Sul, só perdendo para a Venezuela.

Em relação ao indicador acesso às armas individuais, o IGP cria um ranking que categoriza os níveis de acesso às armas de fogo. Dadas às medidas de flexibilização do acesso às armas implementadas desde janeiro de 2019 , com cerca de 10 decretos e um sem número de portarias editadas nesse sentido, que já possibilitaram a entrada de cerca de 140 mil novas armas de fogo em circulação só no primeiro semestre de 2020 e a venda de 2 mil munições por hora no mês de maio, fica claro porque esse indicador ajudar a jogar o Brasil para baixo no IGP

Para revertemos esse quadro é imperativo fortalecer a política de controle de armas de fogo, priorizar a prevenção e o esclarecimento de homicídios, enfrentar com inteligência e planejamento os outros crimes violentos e, sobretudo, enfrentar o terrorismo político, por meio da defesa incessante das práticas democráticas e de respeito ao rule of law.

*Advogada e socióloga. Diretora Executiva do Instituto Sou da Paz

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Homicídios crescem pelo sétimo mês consecutivo no país https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/04/29/homicidios-crescem-pelo-setimo-mes-consecutivo-no-pais/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/04/29/homicidios-crescem-pelo-setimo-mes-consecutivo-no-pais/#respond Wed, 29 Apr 2020 12:54:07 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/11/1709227-150x150.jpeg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1402 Em coautoria com Samira Bueno*

Com sete meses ininterruptos de crescimento dos crimes violentos letais intencionais (homicídios dolosos, lesões corporais seguidas de morte e latrocínios) no país, a gestão de Jair Bolsonaro bate um recorde de meses consecutivos de alta da criminalidade violenta, de acordo com série histórica de dados compilados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública e do Monitor da Violência desde janeiro de 2016.

Mesmo que em patamares ainda menores do que aqueles observados no final de 2017, este é o período de meses mais longo da série histórica analisada e pode indicar o esgotamento dos efeitos das estratégias e políticas adotadas entre 2017 e 2018 e que permitiram a redução dos assassinatos a partir de janeiro de 2018.

E, mais, esse período pode ser o início dos efeitos de medidas como o esforço ideológico inconsequente que o governo Bolsonaro faz de desregulação e ampliação da posse e o porte de armas de fogo e munições, entre outras ações formuladas em sua gestão para a área. Esforço esse que culminou, agora em abril, com a determinação do presidente para a revogação de portarias do Exército Brasileiro que estabeleciam regras para rastreamento e identificação de armas de fogo no Brasil, mesmo após o Exército alertar para o fato de que a medida atentaria aos interesses da segurança nacional.

 

 

No plano subnacional, dados  do Monitor da Violência, parceria do Fórum Brasileiro de Segurança Pública com o NEV/USP e o G1, revelam que 20 das 27 Unidades da Federação apresentaram crescimento de assassinatos entre janeiro e fevereiro de 2020, em relação ao mesmo período de 2019. No total Brasil, comparando os mesmos períodos, houve um crescimento de 7,6% nos assassinatos.

Dessas 20 Unidades da Federação, chama atenção o Ceará, que enfrentou uma greve/motim de policiais militares em fevereiro que resultou, entre outras questões, no aumento abrupto dos homicídios durante o movimento paredista e que quase anulou o ganho de cerca de mais de 50% de queda nas mortes que o estado havia obtido no ano passado. Mas, tão grave quanto a situação do Ceará, destacamos o crescimento dos crimes violentos letais intencionais em UF que estavam conseguindo, até então, reduzir seus índices de violência criminal por vários anos, a exemplo do Distrito Federal, Santa Catarina, Bahia, Pernambuco, Paraíba, Espirito Santo e São Paulo.

 

É muito revelante que quase todas essas Unidades da Federação possuem sistemas de metas e/ou bonificação por resultados e são caracterizadas pelo esforço de articulação e integração entre suas polícias. A capacidade incremental e gerencial que os governos estaduais detêm na segurança pública ficou fortemente constrangida, ao que tudo indica, pela incapacidade do governo federal em articular respostas federativas às novas dinâmicas da violência e do crime organizado, bem como pela crise fiscal que reduziu a margem para o financiamento de um sistema historicamente desfuncional.

Também contribuiu para este quadro um ambiente de excessiva politização das forças policiais que, em nome de justas reivindicações por melhores condições de salário e trabalho, passaram a defender pautas com forte carga corporativista e ideológica. A política invadiu os quartéis e as unidades das polícias e a atividade cotidiana de segurança pública ficou em segundo plano.  E, se esse movimento já vinha sendo estimulado desde os governos do PT, foi sob Jair Bolsonaro e Sergio Moro que a segurança virou de vez bandeira político-partidária.

Em artigo de balanço de gestão de Sergio Moro à frente da pasta da Justiça e Segurança Pública publicado na edição da Folha do último sábado, alguns pontos objetivos foram descritos. Porém, a disputa por protagonismo dos dois políticos mais populares da atualidade teve, como efeito colateral, o abandono da segurança como política pública e o descaso com as demandas histórica de modernização e reforma da área no país.

Como exemplo, o Ministério da Justiça e Segurança Pública, que legalmente é quem coordena as políticas de segurança pública do país, ficou a reboque do Planalto na discussão sobre a já citada ampliação do porte e posse de armas de fogo e munições. Também teve uma atuação omissa no combate às milícias e referendou a mensagem leniente com o uso desproporcional da força letal, com o tecnicamente falso discurso presidencial da excludente de ilicitude para integrantes das forças de segurança. De igual modo, reduziu suas conversas com os secretários de segurança e defesa social dos estados; e não participou das conversas para a modernização do R200, decreto que regula as Polícias Militares no país, que estão sendo tocadas pelo Palácio do Planalto e pelo Ministério da Defesa, e que visam a proposição de Projeto de Lei que instituí a Lei Orgânica das Polícias Militares.

O governo Bolsonaro diminuiu o número de operações da Força Nacional de Segurança Pública em áreas indígenas e de proteção ambiental, com sérias implicações diplomáticas e econômicas. Para se ter uma ideia, vale relembrar que, em 2019, as ações ambientais e/ou em terras indígenas responderam por 12% das operações da FNSP. Em 2018, por 24%. Já dados do Portal da Transparência sobre Execução Orçamentária da União, em 2019, corrigidos pelo IPCA revelam que o Ministério da Justiça e da Segurança Pública reduziu em 24,9% os gastos com a FUNAI.

Da mesma forma, Sergio Moro rivalizou com governadores para assumir protagonismo da queda de crimes observada até meados de 2019 e sumiu quando percebeu que vários índices voltaram a crescer e que seria cobrado por isso. Ele também politizou demais, no começo do ano, o episódio em torno do motim da Polícia Militar no Ceará, dificultando as negociações do governo estadual com os policiais amotinados. A transferência de lideranças de facções de base prisional para presídios federais foi estimulada mas, sozinha, ela não resolveu a estrutural crise carcerária, com superlotação e domínio das prisões por parte do crime organizado.

O governo Bolsonaro igualmente não apresentou nenhuma política de enfrentamento para a violência contra a mulher, que agora mostra sua face durante a pandemia de Covid-19, quando crescem os feminicídios ao mesmo tempo em que os serviços de acolhimento às mulheres vítimas de violência estão sucateados. Os Ministérios da Justiça e da Saúde não dialogaram entre si e não tiveram a capacidade de planejamento e aquisição em tempo hábil de EPI para as polícias diante da pandemia.

Nesse processo, jabutis começaram a brotar em árvores, como a proposta do DEPEN (Departamento Penitenciário Nacional) apresentada ao Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP para, diante da pandemia de Covid-19,  acomodar presos em contêineres, relembrando as “prisões de lata” dos anos 2000 e, ainda, o alojamento incendiado das categorias de base do Flamengo, no “ninho do Urubu”.

Sergio Moro não obteve êxito em fazer avançar suas principais vitrines, o Pacote “Anticrime” e o programa “Em Frente Brasil”. O primeiro foi alterado no Congresso com apoio tácito do Palácio do Planalto e, o segundo, ficou na esfera da boa intenção, sem ganhar escala e efetividade. Ainda é importante destacar que o ex-ministro sempre manteve rota de conflitos com parcela do STF e do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), tensionando as relações entre os poderes e diminuindo o espaço para ações coordenadas.

Os recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública foram bloqueados por Paulo Guedes e o STF precisou determinar a liberação do dinheiro para que ele pudessem ser repassado aos estados. A Polícia Federal, por uma questão de restrição orçamentária, diminuiu o número de operações especiais. O Fundo Nacional Anti-drogas recebeu mais recursos a partir da facilitação da venda de bens apreendidos, mas eles não foram executados ou foram convertidos em medidas concretas de prevenção.

E, por fim, o Governo Bolsonaro, alegando que uma consultoria da CGU teria encontrado problemas de desenho institucional da Política Nacional de Segurança Pública aprovada no final de 2018 paralisou a implementação do SUSP (Sistema Único de Segurança Pública), que tentava, exatamente, criar um novo ambiente federativo de cooperação e aperfeiçoamento da área. Com a desculpa de que a legislação era falha, o que não é fato, medidas que estavam sendo conduzidas na direção da coordenação federativa foram abandonadas.

Em suma, construir uma política de segurança eficiente leva anos e é obrigatoriamente uma construção coletiva. Porém, destruí-la é sempre muito rápido e quase sempre decorrente da irresponsabilidade política ou institucional de quem prefere surfar na onda da sua fugaz popularidade e/ou de quem fica cego por concepções ideológicas toscas e não mede as consequências de seus atos na vida real da população.

Várias hipóteses podem ser mobilizadas para compreendermos essa reversão de tendência, mas, em uma síntese política, a aliança entre Jair Bolsonaro e Sergio Moro teve, na prática, resultados pífios para a segurança pública. Ao contrário do que disse o ex-ministro Sergio Moro no início de janeiro deste ano, na segurança não existe Mago Merlin ou feitiços prestidigitadores mas evidências e trabalho árduo.

 

*Diretora Executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

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Entreguem as armas https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/02/24/entreguem-as-armas/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/02/24/entreguem-as-armas/#respond Mon, 24 Feb 2020 13:33:56 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/02/15821392305e4d875e4a81d_1582139230_3x2_rt-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1310 Com Arthur Trindade Maranhão Costa*

O Faces da Violência tem 20 meses de vida e, em vários textos publicados neste espaço, temos alertado para a desfuncionalidade do modelo de polícia brasileiro e os riscos que a emergência do projeto populista de poder que dá sustentação à parceria Jair Bolsonaro e Sergio Moro oferece para o Estado Democrático de Direito no Brasil. Não é de hoje que os ingredientes da crise que agora mais uma vez assola o Ceará (mas que é nacional) estão fermentando um quadro grave e que deveria exigir mais atenções das autoridades e da sociedade.

Assim, não foi novidade ver a escalada de confronto e violência provocada pelo ato insano e irresponsável do Senador Cid Gomes, que em texto anterior publicado no site da Revista Piaui, chamamos de atentado e que, por isso, fomos bastante criticados por parcela que parece não querer ver que estamos diante de uma enorme encruzilhada histórica. Segundo o dicionário Houaiss, entre outras acepções, atentado, é um substantivo masculino para descrever  “ato criminoso ou tentativa de sua perpetração contra pessoas, ideias etc”.

E por que criminoso? Pelo simples fato de que, naquela situação, supostos policiais encapuzados estavam invadindo prédios públicos e danificando viaturas. Além disso, ao optarem por esconder seus rostos e, ao mesmo tempo, continuarem armados não mais estavam representando o Estado ou cumprindo funções de manutenção da ordem pública. Afinal, um dos conceitos-chave da teoria de polícia sobre o mandato e a função desta fundamental instituição é o de autoridade pública constituída. E, na medida em que policiais optaram por cobrir seus rostos e descumprir ordens de comando, eles não mais estavam constituídos de autoridade pública. Eles estavam ali como cidadãos.

E, diante de uma demanda legítima por salário e condições de trabalho, a luta por direitos não pode ser feita repetindo táticas do crime organizado ou com as armas do Estado sob o risco de tornar sociedade e instituições reféns do medo e de interesses corporativos.

A única saída para esse dilema legal, seria o depósito das armas no quartéis e a reivindicação de que os policiais sejam tratados como cidadão comuns e que possam, daí sim, se manifestar com total liberdade. Esse seria um gesto muito mais poderoso e radical. Infelizmente, ao contrário, falsos profetas ficam incentivando confrontos e antagonismos.

Outro ponto que suscitou debate no nosso artigo na Piauí foi o alerta que fizemos sobre o papel das forças policiais na ruptura da ordem em vários países sul-americanos. Como previsto, um dos muitos dos gatilhos ideológicos da polarização foi acionado, ou seja, ouvimos que falar das Polícias do Chile e da Bolívia e não citar a Venezuela, o país mais anti-democrático da América do Sul, seria prova de que nossa análise seria, no mínimo, parcial.

O que os defensores deste ponto de vista não se atentaram foi que, na Venezuela, o regime bolivariano se baseia no exército e nas milícias. Desde a tentativa de golpe fracassada contra seu governo em 2002, Hugo Cháves decidiu reforçar seu apoio junto às FFAA. Mas, em 2008, Chávez também criou a Milícia Nacional Bolivariana, uma espécie de exército político do regime. A MNB é um corpo de cerca de um milhão de pessoas treinadas com cassetetes e rifles, que prometem dar suas vidas pela Revolução. Assim, a Venezuela é um caso de ditadura que abduz todas as instituições de força para seu projeto.

Mas a lembrança da Venezuela nos faz reforçar nosso argumento de fundo. No passado, as Forças Armadas eram os atores centrais para a manutenção dos regimes autoritários. Na década de 1970, a maioria dos regimes autoritários era governada por militares. Com a terceira onda de democratização e o fim dos regimes autoritários, houve uma reacomodação da relações civis-militares. Via de regra, os militares voltaram aos quarteis se afastando da disputa política.

Talvez por isso, quando analisamos os atuais governos populistas, voltemos imediatamente para entender o que se passa nas Forças Armadas. Mas esquecemos que nos atuais regimes populistas são as policias, mais do que as Forças Armadas, que desempenham papel central. Obviamente, o apoio das FFAA continua sendo relevante, mas é a instrumentalização do aparato policial que diferencia os regimes populistas.

Na Hungria, os policiais são um dos principais grupos de sustentação do governo populista de Viktor Orban. Desde que chegou ao poder 2010, o líder do partido Fidesz tem buscado construir laços de lealdade com as forças policiais do pais. Em 2019, Órban incentivou a criação da Legião Nacional, uma espécie de milícia uniformizada, voltada para resgatar os ideais nacionalistas da antiga Guarda Húngara, proscrita em 2008.

Nas Filipinas, as polícias são atores centrais na política de guerra às drogas de Rodrigo Duterte. Entre 2016 e 2019, estima-se que as policias tenham matado cerca de 12 mil civis. O governo admite oficialmente 5100 mortes. Desde 2018, lideranças da oposição tem denunciado a criação de esquadrões da morte voltados para perseguir e eliminar a dissidência política.

Nestes países, a instrumentalização do aparato policial passa pela extensão de benefícios previdenciários, aumento de salários e distribuição de cargos nos governos para policiais. A dimensão simbólica é fundamental. Os líderes populistas procuram aparecer sempre ao lado de policiais, portando armas e usando uniformes. O objetivo é conquistar apoio político quase que incondicional dos policiais. Além da lealdade dos policiais, esses líderes populistas também buscam o controle direto das polícias, passando por cima de prefeitos e governadores.

E é neste contexto que devemos olhar para os riscos da crise do Ceará ganhar corpo e ser justificativa para atos de ruptura por parte de apoiadores do projeto populista de Bolsonaro. Não se trata de uma crise isolada, provocada pelas idiossincrasias e disputas locais ou nacionais da família Gomes, mas de um movimento que retoma a agenda de transparência, controle e supervisão de instituições autorizadas a manter e impor, se necessário, a ordem pública e social prevista na nossa Constituição.

Na atual toada, a visita à Fortaleza programada para hoje (24) dos ministros Fernando Azevedo e Silva (Defesa) e Sergio Moro (Justiça e Segurança Pública) merece toda a atenção. A depender da modulação do discurso de ambos, saberemos o quanto o Governo Federal está disposto a escalar ainda mais esse delicado momento em que vivemos. Moro foi rápido para nacionalizar o mérito da queda dos homicídios em 2019 e, com isso, terá muito trabalho para se desvincilhar de responsabilidade neste momento.

Seja como for, os episódios desta última semana mostram que o projeto populista de poder em torno de Bolsonaro é muito mais amplo do que as tentativas de cooptar as polícias e conta com apoios em outras instituições de Estado. O que, em outras palavras, significa dizer que o Brasil sob Bolsonaro está muito mais próximo do bolivarianismo venezuelano do que muitos gostariam de assumir.

A torcida é para que as polícias percebam este movimento e não caiam em um canto da sereia perigoso e violento, onde todos temos muito a perder.

*Professor da UNB e membro do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

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Estudo da ONU traz dados que desmitificam a retórica da ‘guerra contra o crime’ no Brasil https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/07/21/estudo-da-onu-traz-dados-que-desmitificam-a-retorica-da-guerra-contra-o-crime-no-brasil/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/07/21/estudo-da-onu-traz-dados-que-desmitificam-a-retorica-da-guerra-contra-o-crime-no-brasil/#respond Sun, 21 Jul 2019 15:34:08 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/07/Avener-Prado-RN-320x213.jpeg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=984 Teve pouco destaque no Brasil o lançamento, no último dia 8, do estudo global do Escritório das Nações Unidas para Crime e Drogas – UNODC sobre homicídios. Segundo o levantamento, o número total de pessoas vítimas de um homicídio no aumentou de 395,542 em 1992 para 464.000 em 2017.

No entanto, como houve crescimento populacional maior que o de vítimas de homicídio registrados no período, o risco de ser morto em homicídios diminuiu. Isso fez com que a taxa global de homicídios, por 100.000 pessoas, declinasse de 7,2 em 1992, para 6,1, em 2017. O mundo observa uma redução no números de homicídios e isso precisa ser explicitado, já que vai contra o senso comum e atrapalha os discursos populistas estruturados a partir do medo e do pânico.

Redução que, no Brasil, vem sendo observada desde 2018 e que indica que estamos diante de um fenômeno bem mais amplo do que o discurso valente de ocasião de algumas autoridades e políticos que tentam pegar carona e receber os dividendos desta queda. É necessário monitorar tendências e analisar diversas variáveis antes de acharmos que governo A ou governo B; polícia C ou polícia D são a grande causa da redução (ou do crescimento) do crime e da violência. Estamos diante de um fenômeno bem mais complexo do que o debate polarizado, volátil e efêmero sugere.

E isso é agravado pela forma opaca com que ainda lidamos com dados sobre violência no país. Quem se dedica ao monitoramento de dados precisa ou compilar e padronizar diversas informações ou se contentar com retratos parciais que emergem da boa vontade de alguns dirigentes. Quem cobra transparência ainda é visto como inimigo.

Por certo transparência e informações fidedignas são inimigas dos pensamentos mágicos que voltaram a povoar o Ocidente e que agora mobilizam multidões em novas cruzadas morais que visam conquistar territórios culturais e aniquilar o pluralismo democrático e civilizatório (sim, pluralismo deve ser fundado em valores universais conquistados depois dos horrores de guerras e do sangue de milhões de vítimas da violência). Líderes populistas estressam as instituições e a sociedade com diversionismos absurdos e, sorrateiramente, vão impondo suas agendas e interesses.

A metralhadora verbal de Bolsonaro esta semana é exemplo de que ele está, a meu ver, seguindo um roteiro minuciosamente planejamento para desviar a atenção da opinião pública e garantir que suas ações reais se consolidem, como o decreto das armas de fogo ou o terraplanismo ambiental que seu governo tem implementado. Estamos errando feio na forma como lidamos com o que julgamos devaneios do Presidente mas que são, de fato, ações políticas coordenadas e que visam a fins específicos.

Mas os erros não são apenas políticos. Quando observamos o Estudo Global sobre Homicídios, do UNODC, um dado chama atenção para o fosso entre o que é percebido e o que é realidade na segurança pública. Segundo o UNODC, há condições de afirmar que o crime organizado é responsável por 19% de todos os homicídios do mundo. Ou seja, de cada 5 homicídios cometidos no mundo todo, em 2017, apenas 1 foi causado pelo crime organizado.

E, como no Brasil não temos sistemas de dados criminais transparentes e detalhados de cada crime ou morte cometida, quase todo o debate sobre segurança é debitado na conta das organizações criminosas (ORCRIM), midiaticamente conhecidas como facções.

Muitas autoridades públicas, quando questionadas sobre razões para o movimento da criminalidade, não pensam duas vezes em atribuir às ORCRIM a primazia para a explicação da violência. No imaginário coletivo do país, são tais organizações as vilãs que justificam pacotes “anticrime” e de combate à corrupção que sustentam o discurso do medo e a defesa de padrões de enfrentamento ao estilo “atirar na cabecinha” e/ou “só matando”.

Sim, elas são um enorme problema para o Poder Público, colocam milhões de pessoas no meio do fogo cruzado e as fazem reféns pelo domínio e controle territorial (aliás, neste processo, são muito parecidas com a Milícias). Elas também caçam policiais como em um vendeta, sem que o Estado consiga colocar um fim no poder das facções e das milícias.

Enquanto ficarmos com discursos pueris e diversionistas, que visam mais os interesses políticos e de poder de algumas pessoas e instituições, não será possível avançarmos em estratégias para fazer do país uma nação civilizada menos violenta e valorizarmos os profissionais da área. Hoje, estamos falhando no combate das ORCRIM e das milícias; estamos também minimizando o crescimento da violência contra a mulher e dos conflitos interpessoais. E não estamos falando dos padrões de trabalho que provocam taxas de suicídios policiais muito maiores do que a da população em geral.

A segurança pública é condição para o exercício pleno da cidadania (caput do Art. 5o. da Constituição Federal) e não pode ficar refém seja do crime organizado, das milícias e/ou de líderes com causas pré-iluministas e projetos medievais de poder. Em suma, a violência precisa ser encarada de frente pelas políticas públicas, seja ela cometida por quem for. Uma nação forte e verdadeiramente democrática não pode aceitar a violência ou ter malvados de estimação.

 

 

 

 

 

 

 

 

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Sergio Moro amplia operações da PF e reduz convênios com estados e municípios https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/06/15/sergio-moro-amplia-operacoes-da-pf-e-reduz-convenios-com-estados-e-municipios/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/06/15/sergio-moro-amplia-operacoes-da-pf-e-reduz-convenios-com-estados-e-municipios/#respond Sat, 15 Jun 2019 14:30:04 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/06/Moro-e-Bolsonaro-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=916 Faz nove dias que o Brasil foi abalroado pelos vazamentos de mensagens atribuídas aos procuradores do Ministério Público Federal em Curitiba e ao ex-Juiz Sergio Moro, pelo site The Intercept, e meio que navega à deriva e à mercê das correntezas da política. Como bem ilustrou Luis Francisco Carvalho Filho em sua coluna na Folha de hoje (15), o país vai caminhando de escândalo em escândalo para o abismo do populismo e da devastação ética.

Luis Francisco resumiu com perfeição o que é integrar o governo de Jair Bolsonaro, “político profissional que convive com milicianos, admira torturadores, […] e conspira contra povos indígenas, gays e florestas”. Segundo o colunista, integrar um governo com este perfil não é ambição de humanistas, pois temos um governo incapaz de lidar com o significado da Constituição e das cláusulas pétreas.

O que tem emergido para a superfície da relação entre justiça e política é extremamente preocupante para quem, independente das preferências partidárias e eleitorais, está preocupado com o devido processo de um Estado Democrático de Direito. Porém, para quem se dedica a pensar tecnicamente no processo de formulação e implementação de políticas mais eficientes de segurança pública, o cenário também é de expectativa e cautela.

Isso porque, se olharmos os números disponíveis, o Governo Federal, no âmbito do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, de Sergio Moro, divulgou na quarta-feira (12) a continuidade da queda dos homicídios iniciada no começo de 2018 e que, só primeiro bimestre de 2019, atingiu 23%. E, ao contrário do que matraqueiam os adeptos cegos ou interessados, o Governo Federal não é o responsável por esta queda e, pior, não tem a menor ideia do que ocorre no país para justificá-la.

Quem trabalha seriamente na área sabe que homicídio é um fenômeno multicausal e que múltiplas variáveis interferem no movimento e na tendência deste tipo de ocorrência. Na esfera estatal, não existe mágica, mas trabalho e dedicação em torno da melhoria das políticas públicas da área. E, indiscutivelmente, os estados e o Distrito Federal ocupam um papel-chave na segurança pública. Se não são os únicos responsáveis pelo setor, são eles que gerenciam as polícias Civil e Militar, encarregadas de manter a ordem pública e investigar crimes e delitos.

Temos 54 polícias estaduais que atuam no limite de suas capacidades institucionais, muitas delas sucateadas e carentes de investimentos. E isso em um contexto em que recursos para as polícias estão, dadas as condições econômicas do país, cada vez mais escassos. Com exceção de São Paulo, todas as demais Unidades da Federação dependem quase que exclusivamente de recursos federais para poderem fazer investimentos e adquirirem novos equipamentos e tecnologias.

E o que faz o Ministério da Justiça? Sobrecarrega as polícias estaduais com demandas para que efetivos sejam alocados na Força Nacional e, o que seria uma contrapartida para esse envio de homens e mulheres, praticamente não repassa recursos para as Unidades da Federação por intermédio de convênios (é necessário conferir repasses diretos fundo-a-fundo). Levantamento inédito do Fórum Brasileiro de Segurança Pública identificou que, em 2019, o MJ assinou 234 convênios com estados e municípios, sendo 228 no dia 02 de janeiro, em um claro indício de que eram parcerias que estavam sendo negociadas e analisadas na Gestão Temer. De lá para cá, somente 6 convênios foram assinados.

E, mesmo considerando que 234 convênios foram assinados, nota-se que foram empenhados apenas cerca de R$ 168 milhões do Fundo Nacional de Segurança Pública, principal fonte de parcerias com as polícias estaduais, mas quase nenhum dinheiro desse valor ainda foi liberado. Ainda segundo o levantamento, que é preliminar, no MJ como um todo, foram empenhados cerca de R$ 355,4 milhões para os estados mas liberados irrisórios R$ 857,7 mil.

Em paralelo, organiza e coordena nacionalmente operações integradas das Polícias Civis, o que é positivo, mas apenas dá suporte de inteligência pois esta é uma atividade em que mobiliza quase nenhum recurso federal e o mérito maior deveria caber às polícias locais. O mesmo ocorre com o SINESP, que é o sistema nacional de dados e é um consórcio pactuado entre União, estados e Distrito Federal. Em seu anúncio, no começo do ano, os secretários estaduais não estavam presentes e todos os louros ficaram apenas para o Governo Federal.

E, ainda em fase de planejamento e cujo anúncio deve ocorrer por volta do dia 26/06, finaliza um plano de enfrentamento aos crimes violentos (o planejamento da Senasp (Secretaria Nacional de Segurança Pública), com detalhamento de ações, matriz de responsabilidades e definição de enfoques merece aqui elogios, pois ao contrário de outras ações improvisadas está sendo feito com grande profissionalismo. Importante saber se teremos métricas e previsão de mecanismos de monitoramento e avaliação).

No plano das atribuições exclusivamente federal, zona em que o Ministro Moro sente-se mais confortável pois não exige negociar prioridades com Governadores e Secretários Estaduais, levantamento do Professor Rogério Arantes, da Universidade de São Paulo, revela que houve um incremento de 43,3% no número de operações noticiadas pela Polícia Federal entre 01 de janeiro e 14 de junho de 2019 em relação ao mesmo período de 2018. Até ontem, a PF havia noticiado 427 operações em 2019, enquanto em 2018, no mesmo período, tinham sido noticiadas 298.

O problema aqui é que, da mesma forma como as polícias estaduais, esse crescimento é feito com o mesmo efetivo existente na PF faz anos e só recentemente o Presidente Bolsonaro anunciou a convocação de quase 1 mil novos policiais aprovados em concurso, que ainda precisam passar pela Academia Nacional de Polícia antes de serem alocados nas unidades da PF pelo Brasil. A PF está com sua capacidade operativa comprometida e tendo que dar conta das opções e políticas de segurança do Governo Bolsonaro que a sobrecarregam.

Enquanto isso, para a população, o Governo enviou um pacote de medidas legislativas que funciona mais como lance de marketing e diversionismo ao ser intitulado como “anticrime”, uma vez que quem for contra ele seria a favor da criminalidade, o que é uma estultice completa – há formas e formas legítimas de se combater o crime e o Congresso tem legitimidade e voto de propor alterações. Isso para não falar dos Decretos sobre Armas, que têm várias inconstitucionalidades já apontadas por diferentes segmentos, porém o STF parece intimidado a se manifestar e sustar ao menos o último, que autoriza porte generalizado quando uma lei o restringe.

Em suma, não existem ações ou políticas federais em curso que possam ser reconhecidas como responsáveis pela queda recente nos índices de criminalidade e violência urbana no país. Há esforços e trabalho, mas há sobretudo espuma e pirotecnia política. As polícias estão abandonadas à própria sorte e os estados precisam se virar caso queiram manter a redução da violência. O Ministério da Justiça e da Segurança Pública ainda não disse ao que veio e deu sorte de o momento ser de queda da violência. Mas, se nada for feito, a violência ainda é alta e voltará a crescer. E, politicamente, mais esta conta recairá nas costas do Ministro Sergio Moro.

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