Faces da Violência https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br O que está por trás dos números da segurança pública Tue, 23 Nov 2021 18:56:47 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Despolitizando as polícias https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/08/02/despolitizando-as-policias/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/08/02/despolitizando-as-policias/#respond Mon, 02 Aug 2021 18:09:08 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/17407680_PAZ-320x213.jpeg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1832 PEC 21/021 propõe restrições para militares da ativa das Forças Armadas ocuparem cargos civis. Iniciativa é boa, mas deveria ser estendida também a todos aos policiais brasileiros.

Arthur Trindade Maranhão Costa*

 

Tramita na Câmara dos Deputados uma proposta de emenda constitucional que visa impedir que militares da ativa ocupem cargos civis. A PEC 21, apresentada pela deputada Perpétua de Almeida (PCdoB – AC), foi motivada para impedir situações como a do general Pazuello, que ocupou o cargo de ministro da Saúde sendo militar da ativa. Embora proponha restrições apenas para militares da ativa das Forças Armadas, a PEC deveria ser estendida para todos os policiais brasileiros.

Pazuello não é o único caso. No atual governo federal, vários integrantes das Forças Armadas, Polícias Militares, Polícias Civis e Polícia Federal ocupam cargos civis. Mesmo estando na ativa, estes profissionais respondem por secretarias e departamentos nos diversos órgãos da administração federal como o Ministério da Justiça e Segurança Pública, Ministério da Educação, Ministério da Saúde, Ministério da Ciência e Tecnologia e IBAMA.

A situação não é nova e tampouco se restringe à administração federal. Nos governos estaduais é comum que policiais da ativa ocupem cargos civis de natureza política. Também é frequente a presença de policiais da ativa trabalhando em gabinetes de parlamentares. Até no judiciário podemos encontrar policiais da ativa servindo como assessores de desembargadores.

A prática é ruim por dois motivos. Primeiro, porque desvia policiais das atividades fim. Em alguns estados o número de policiais cedidos – esse é o termo técnico – ultrapassa a casa dos milhares. A falta de efetivos não tem servido de justificativa para diminuir as cessões. As resistências são grandes, começando obviamente pelos policiais cedidos. Parlamentares e magistrados pressionam os governadores para manter policiais como assessores. Os próprios secretários de governo também demandam pela permanência desses policiais em cargos civis.

O segundo motivo é a indesejada politização dessas instituições. Os policiais e militares que ocupam cargos civis não emprestam apenas seus conhecimentos técnicos. Eles constroem também laços de lealdade política que se estendem por vários anos. Ao ocupar cargos civis, esses profissionais ingressam em grupos políticos seletos. Mesmo que retornem para suas instituições de origem, esses laços de lealdade política permanecem e são utilizados em dois sentidos. Eles permitem que as lideranças políticas estendam sua influência para dentro das instituições policiais. Além disso, a lealdade política é utilizada por alguns policiais para obter privilégios nas promoções e nomeações.

Há policiais que passaram a maior parte das suas carreiras em cargos civis de natureza política. É o caso atual ministro da Justiça Anderson Torres. Apesar de ser delegado federal da ativa, Torres passou a maior parte dos seus 18 anos de carreira cedido a outros órgãos. Ele foi assessor no gabinete do deputado federal Fernando Francischini (PSL-PR) por oito anos e permaneceu mais dois anos como secretário de Segurança Pública do Distrito Federal. Não há dúvida que Anderson construiu uma carreira muito mais política do que policial.

Por esses motivos, a PEC 21/2021 é oportuna e deveria alcançar também os policiais. Seria um passo importante para despolitizar as polícias.

*Arthur Trindade M. Costa é professor de sociologia da Universidade de Brasília e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

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Na edição desta semana, leia também “Proteção à narrativa policial distorce julgamentos na Justiça Militar” e “Violência armada atravessa a rua e entra em casa durante a pandemia“.

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A crise de segurança pública na Amazônia https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/06/24/a-crise-de-seguranca-publica-na-amazonia/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/06/24/a-crise-de-seguranca-publica-na-amazonia/#respond Thu, 24 Jun 2021 12:54:32 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/Amazônia-faces-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1799 Cocaína entra no país pela Amazônia sem barreira física devido à falta de efetivo da Polícia Federal e pela ausência de policiamento específico de fronteira.

Mario Aufiero*

Há tempos, a falta de uma política de segurança para as fronteiras brasileiras, em especial a da Amazônia, vem caracterizando diversos problemas na segurança pública em dezenas de cidades amazônicas. Recentemente, todo o país assistiu às ações do crime organizado na cidade de Manaus, capital do maior estado da federação brasileira, o Amazonas, e em municípios vizinhos. Ataques a escolas, hospitais, ônibus, carros públicos e particulares foram realizados de forma coordenada pela facção criminosa que domina essa parte do território.

Vários especialistas na área de segurança pública como também diversos atores da segurança que vivem e trabalham nessas localidades já registraram que a droga, o cloridato de cocaína, entra em nosso país pela Amazônia, sem nenhuma barreira física ou do estado. Isso ocorre por falta de efetivo da Polícia Federal como também pela ausência de um policiamento específico de fronteira para Amazônia. Dessa forma, as facções conseguem garantir de forma fácil a entrada de entorpecentes no Brasil dentre outras atividades criminosas, apesar dos esforços das polícias estaduais em vigiar e combater esse tipo de criminalidade.

O que ocorreu em Manaus e nas cidades vizinhas na primeira semana de junho de 2021 foi uma demonstração de força do crime organizado contra o Estado, deixando milhares de pessoas com medo. Isso é inaceitável, mas deriva justamente da ausência de uma política nacional macro de segurança para a Amazônia.

Essa região do país é diferente de tudo que conhecemos no restante do Brasil. Logo, as políticas de segurança pública devem ser planejadas levando-se em conta as especificidades da região, pois suas características territoriais e sociais diferem do restante do país.

O próprio Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), que já completou três anos e ainda não foi implementado, precisa ser revisto para trazer elementos especiais de tratamento para a segurança pública na Amazônia. Assim, poderia atender velhas demandas para a área de segurança para a região, especialmente em suas regiões de fronteira.

O policiamento de fronteira na região se faz necessário há décadas. Portanto, a União tem o dever, por meio do SUSP, de criar e amparar os estados e municípios amazônicos. No momento, o reduzido efetivo da Polícia Federal não é capaz de guardar as fronteiras amazônicas.

A União e os estados amazônicos devem incentivar os munícipios da Amazônia no desenvolvimento de planos municipais de segurança como meio de prevenção, controle e repressão da criminalidade. Para tanto, é necessário alocar recursos nos municípios para que possam integrar os esforços de provisão de segurança.

A questão social também tem que ser tratada de forma especial, com ações de prevenção à violência juvenil, além do foco nas famílias em situação de vulnerabilidade social. Sem uma visão completa do problema e de ações baseadas nas características amazônicas, a possibilidade de ocorrência de eventos semelhantes não deve ser descartada.

Portanto, este é o momento de a União, por meio da Secretaria Nacional de Justiça, desenvolver políticas concretas de segurança para a região levando em consideração as suas características e a voz de seu povo. Para tanto, uma política concreta para as fronteiras deve ser estabelecida, de modo a construir um sistema efetivo de proteção da Amazônia. O problema da segurança impacta diretamente na questão ambiental, pois sem instrumentos efetivos de aplicação da lei, tais problemas permanecerão em evidência.

Por fim, a população de Manaus e dos municípios vizinhos que sofreram recentemente com os ataques das organizações criminosas não deve mais ser penalizada pela ausência de uma política concreta para a região.

*Superintendente-geral do Centro de Estudos de Segurança da Amazônia- CESAM, mestre em Administração Pública com ênfase em Segurança Pública – FGV/EBAPE, doutorando em Função Social do Direito pela FADISP e delegado de polícia PC-AM.

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Na edição desta semana, leia também “Máquina de moer gente negra” e “O invisível assédio nosso de todos os dias“.

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Em defesa da democracia https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/03/25/em-defesa-da-democracia/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/03/25/em-defesa-da-democracia/#respond Thu, 25 Mar 2021 14:46:55 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/faces25.03-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1701 Com a ascensão de um populista autoritário ao poder, nos defrontamos com o ameaçador emprego de dispositivos da Lei de Segurança Nacional incompatíveis com a Constituição de 1988. A estratégia é restringir e constranger a liberdade de expressão de críticos e opositores do atual governo

Belisário dos Santos Jr.*

Jose Carlos Dias**

Oscar Vilhena Vieira***

Passados mais de trinta anos do processo de transição do regime militar, a democracia brasileira paga neste momento um alto preço por não ter sido capaz de substituir a Lei de Segurança Nacional (Lei n. 7170/83) por uma robusta legislação de proteção das instituições do Estado Democrático de Direito.

Com a ascensão de um populista autoritário ao poder, estamos nos defrontamos com o ameaçador emprego de alguns dispositivos da LSN – incompatíveis com a Constituição de 1988 – para restringir e constranger a liberdade de expressão de críticos e opositores do atual governo.

Na ausência de uma nova lei de proteção às instituições do Estado Democrático de Direito, no entanto, é prudente que sejam preservados aqueles dispositivos da velha lei que se demonstrem compatíveis com o sistema constitucional de 1988. De forma que os inimigos da democracia não se beneficiem de lacunas em nosso ordenamento jurídico para provocar a erosão de nossa constituição.

O emprego sistemático da Lei de Segurança Nacional pelo governo Bolsonaro, com o objetivo exclusivo de coagir e intimidar seus críticos e opositores, tem se tornado cada vez mais preocupante. Jornalistas, lideranças sociais, políticos e magistrados, como Ricardo Noblat, Helio Schwartzman, Rui Castro, Sonia Guajajara, Luiz Inácio Lula da Silva, Ciro Gomes e Gilmar Mendes são apenas alguns exemplos dessa determinação do governo de calar seus críticos, por intermédio da LSN. Mais grave, essa conduta da cúpula do governo federal tem inspirado atos difusos de repressão à liberdade de expressão em diversas partes do país.

Desde o início deste governo foram instaurados cerca de 80 inquéritos com base na LSN. Número imensamente superior à utilização dessa legislação pelos governos precedentes. Não se trata, entretanto, de um problema apenas quantitativo. Ao longo das últimas três décadas, a LSN, quando invocada, o foi, sobretudo, para combater crimes relacionados ao roubo ou tráfico de armas de uso privativo das Forças Armadas. O que muito se diferencia do modo como vem sendo empregada por esse governo, que visa apenas restringir um dos pilares essenciais do jogo democrático, que é a liberdade de expressão.

Embora guarde distinção em relação aos diplomas de segurança nacional que a precederam, a Lei 7170/83 ainda possui inúmeros pontos de tensão com a Constituição Federal de 1988. Chama a atenção a incompatibilidade entre os artigos 22 e 26 da indigitada LSN, que se referem a crimes de propaganda e opinião, e o regime de ampla liberdade de expressão estabelecido pelos artigos 5º, IV e IX, e 220, caput, da Constituição Federal.

O artigo 22 da Lei 7170/83 estabelece como crime o ato de “fazer, em público, propaganda”, entre outros, “de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social”, sem estabelecer qualquer exigência de que essa “propaganda” possa ensejar “perigo real” às instituições do Estado Democrático de Direito. Nesse sentido, cria um ônus desproporcional à liberdade de expressão. A livre circulação de ideias, inclusive críticas ao regime e à ordem social, são parte essencial do núcleo de proteção da liberdade de expressão. O que ela não protege são atos de desestabilização e violência contra as instituições, que coloquem em risco a própria sobrevivência da democracia. Nesse sentido, o artigo 22, não se demostra compatível com o artigo 5º., IV e IX, da Constituição Federal.

O artigo 26 da LSN, por sua vez, estabelece como crime de segurança nacional: “Caluniar ou difamar o Presidente da República, o do Senado Federal, o da Câmara dos Deputados ou o do Supremo Tribunal Federal, imputando-lhes fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação”. Há aqui um vício fundamental que torna o respectivo dispositivo incompatível com a Constituição de 1988. Ao dar primazia à proteção da honra objetiva e da reputação daqueles que ocupam a presidência dos poderes, em detrimento das próprias instituições, o referido dispositivo inibe o debate público e a possibilidade de crítica a agentes governamentais, sem com isso promover qualquer proteção às instituições do Estado Democrático de Direito. Ademais disso, havendo ânimo de ofender, o fato já é punido pelo Código Penal.

Como a recente experiência brasileira tem mostrado, esse dispositivo abre a possibilidade para que a liberdade de expressão possa ser constrangida, sendo, portanto, incompatível com o disposto no artigo 220, parágrafo 1º., da Constituição Federal, que determina que “nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de expressão.” Logo, deve ser declarado inconstitucional também.

Na função de guarda da Constituição, caberá ao Supremo Tribunal Federal, num futuro próximo, julgar a compatibilidade da LSN com o sistema constitucional estabelecido em 1988. Seu desafio será distinguir entre os dispositivos da LSN que foram recepcionados pela Constituição de 1988 e podem ser úteis na proteção das instituições do Estado Democrático de Direito, e aqueles ofendem a Constituição e têm sido amplamente empregados para restringir o regime de liberdade de expressão por ela adotado.

A Constituição não pode ser vista como um “pacto suicida”, como alertava o Juiz Robert Jackson, da Suprema Corte Norte Americana, em 1949. Suas instituições não só podem, como devem protegê-la daqueles que almejam a sua erosão.

 

*Advogado, membro da Comissão Internacional de Juristas e da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns – Comissão Arns

**Advogado, ex-ministro da Justiça (FHC) e presidente da Comissão Arns

***Jurista, professor da Faculdade de Direito da FGV/SP e membro da Comissão Arns

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Na edição desta semana, leia também “RS Seguro mostra os bons resultados na gestão da segurança com visão social” e “A escalada das mudanças e seu impacto sobre as polícias de caráter civil”

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Brasil, uma nação de mortos-vivos https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/08/23/brasil-uma-nacao-de-mortos-vivos/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/08/23/brasil-uma-nacao-de-mortos-vivos/#respond Sun, 23 Aug 2020 14:32:28 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/A-noite-dos-mortos-vivos-320x213.gif https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1507 Vinicius Torres Freire na Folha, hoje (23), foi perfeito em sua coluna sobre o momento em que o Brasil vive e sobre a capacidade do presidente Jair Bolsonaro em se revigorar no caos criado a partir de sua eleição. Freire afirma que diante de todas as adversidades, o presidente tem conseguido vitórias e se fortalecido. E, ao final, ele diz que, o mais provável para o país, é que “o Brasil voltará a sua rotina de violência aberrante, com uma causa mortis a mais, apenas. A indiferença ao morticínio é uma vitória da mentalidade bolsonariana”.

Peço licença a Vinicius Torres Freire para aproveitar suas figuras de linguagem, pois, a meu ver, o seu argumento é irretocável, exceto por um certo otimismo em achar que o país “voltará” à sua rotina de violência e indiferença. Pelos dados disponíveis, o Brasil nunca abandonou tal rotina e, o que ocorre agora, é que o bolsonarismo foi promovido à condição de políticas de governo. Mas a mentalidade ‘bolsonariana’ esteve e está presente entre nós faz décadas. A mão do “morto-vivo que rebrota da terra na madrugada do cemitério nevoento” está na verdade viva e se faz de morta para puxar o gatilho que continua a vitimar milhares de vítimas de homicídios e para apunhalar a democracia e a cidadania.

E isso fica ainda mais evidente quando constatamos que, mesmo em uma pandemia, os homicídios cresceram cerca de 6% no primeiro semestre de 2020, em relação ao mesmo período de 2019. E, talvez o mais significativo, é que já são nove meses de crescimento ininterrupto dos homicídios, segundo dados do Monitor da Violência recentemente divulgados. Os homicídios cresceram em 17 estados do país, incluindo São Paulo, que vinha de 20 anos de reduções sucessivas dos homicídios. Houve, em São Paulo, um aumento de 4,7% no mesmo período.

E isso sem contar as Mortes Decorrentes de Intervenção Policial, que, somente no estado, cresceram mais de 20% no primeiro semestre deste ano. A mesma coisa se repete com a violência contra a mulher, que segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública aumentou durante a Pandemia, mas já vinha de um longo ciclo de crescimento anual. Aliás, o FBSP alerta, faz 14 anos, para a falência do modelo de organização da segurança pública brasileira, e nos próximos dias deverá lançar a edição 2020 do Atlas da Violência, uma parceria com o IPEA, com dados que, mais uma vez, explicitará as recorrentes indiferença política e a naturalização da violência contra negros, mulheres, jovens, população LGBTQI+.

Indiferença que naturaliza, por sinal, o fato de 54% dos registros de estupros no Brasil serem de casos com vítimas com até 13 anos de idade. Crianças sem infância e reféns de uma cultura do estupro são criminalizadas por defensores dos bons costumes e da moral conservadora quando buscam seus direitos, como a menina que foi autorizada a fazer um aborto legal no Espírito Santo, sem que, no entanto, lembremos que a violência está presente no nosso cotidiano como uma das nossas marcas históricas mais perversas.

Violência que aceita a brutalidade policial nas periferias, em geral contra pardos e pretos, quase todos pobres, como na sequência de casos envolvendo a Polícia Militar de São Paulo, que a massificação das câmeras de celulares permitiu que chegasse ao conhecimento da opinião pública mas que não é novidade nenhuma nas “quebradas” paulistanas, nas favelas cariocas e/ou nas várias denominações dos bairros pobres das cidades brasileiras. Violência tão naturalizada que nos faz indiferentes ao fato dos jovens negros terem 2,5 vezes mais chances de serem assassinados e, em uma expressão carioca, ao fim e ao cabo, terem como horizonte de vida a convivência cotidiana com o temor de serem presos ou mortos em operações policiais (operações que, por sinal, colocam os próprios policiais em risco e cujos comandantes, quando questionadas, se eximem de responsabilidade e deixam o policial da ponta com o ônus exclusivo de justificar a sua conduta individual).

Violência que dizima indígenas em nome do combate ao tráfico de drogas ou que é perpetrada na defesa de um modelo de agronegócio predador, que desconsidera inclusive os avanços tecnológicos que um segmento mais moderno e consciente desenvolveu para o uso social, econômica e ambientalmente responsável de terras; incentiva a desregulação e desmonta a já precária capacidade fiscalização ambiental das instituições públicas. O caráter estratégico da Amazônia vira sinônimo de paranoia e não de planejamento responsável e análise geopolítica e ambiental de riscos efetiva, sem cabrestos ideológicos.

Violência que produz situações bizarras como mais de 30 anos de domínio cruel de territórios com milhões de brasileiros e brasileiras por facções de base prisional ou de milícias e, ao mesmo tempo, petições do Governo do Rio de Janeiro e do Ministério da Justiça e Segurança Pública contra a proibição de operações policiais em comunidades do Rio durante a pandemia que se utilizam de argumentos que beiram o surrealismo, na medida em que são tão exatos para dimensionar ameaças que justificariam tais operações como vagos para explicar as razões pelas quais outros padrões de policiamento, menos violentos e baseados na inteligência, não são adotados.

Inteligência que, nos escaninhos do poder, deu guarida à produção do dossiê contra ex-secretários e policiais antifascistas pela SEOPI (Secretaria de Operações Integradas) e que foi considerada irregular pelo STF, enquanto não há conhecimento acumulado para se compreender as causas dos homicídios e que faz com que, eternamente, fiquemos em uma disputa narrativa entre aqueles que acreditam no peso do crime organizado e os que defendem que as tendências criminais são resultado ou de políticas públicas ou de macrocausas econômicas e demográficas.

Indiferença que torna a violência cotidiana e já visível para milhões de brasileiros em algo intangível e invisível às instituições, que se preocupam mais com seus interesses corporativistas do que com a mudança do cenário de crime e violência – isso para não dizer no liberou geral das armas de fogo em curso no país. Indiferença que se fortalece nas tentações autoritárias de uma sociedade acostumada com a ideia de inimigos internos e cujas preferências antidemocráticas estavam dadas muito antes do Governo Bolsonaro.

O bolsonarismo do presente não é algo exclusivo à figura de Jair Bolsonaro. É, infelizmente, um modo de ser e de pensar que tem a adesão de milhões de pessoas e que nos faz refletir sobre quanto anos serão necessários, na melhor das hipóteses, para que a cidadania e a vida sejam valores que refundariam uma nação tão perversamente dócil com a violência e o caos. Os mortos-vivos seríamos nós e não a mão descrita de Vinicius Torres Freire.

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Acefalia e divisão na segurança pública https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/05/31/acefalia-e-divisao-na-seguranca-publica/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/05/31/acefalia-e-divisao-na-seguranca-publica/#respond Sun, 31 May 2020 14:03:00 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/05/Zanone-Frassait-Folhapress1.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1440 Há 18 dias, mesmo com pandemia e crescimento de 11% nos homicídios, governo deixa principal órgão de fomento e diálogo com as polícias estaduais sem titular, em um sinal de que, na prática, os recuos políticos se sobrepõem às prioridades da segurança pública. Para analisar esse contexto, o Faces da Violência abre espaço para o delegado federal Andrei Augusto Passos Rodrigues*

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O Brasil segue na contramão dos países desenvolvidos quando o assunto é segurança pública. A ausência de coordenação, de estratégia e de integração entre a União e seus entes federativos são exemplos de um caminho equivocado, de governança indefinida e nenhuma gestão estratégica. As crises sanitária e econômica atuais são outros fatores potenciadores dos riscos à segurança, e agravantes do já inaceitável cenário de violência experimentado pelos brasileiros.

Prover segurança pública é fundamentalmente identificar riscos, neutralizar ameaças e reduzir vulnerabilidades, o que exige coordenação, definição de estratégias, planos de ação, metas e recursos. Quais são os objetivos e as estratégias nacionais de segurança pública? Como enfrentaremos, na área de segurança pública, as consequências da crise causada pela pandemia de COVID-19? Quais são os riscos e as principais ameaças advindas desse momento? A par de algum esforço local ou regional isolado, as respostas em nível nacional são desconhecidas.

O Brasil possui uma Secretaria Nacional de Segurança Pública vinculada ao Ministério da Justiça que apresenta baixíssima efetividade. Entre suas funções, está a de coordenar e promover a integração da segurança pública no território nacional, propor e efetivar a cooperação federativa, assim como planos e programas integrados de segurança pública (Decreto 9.662/2019). Tamanha é sua insignificância, que está acéfala há mais de 15 dias, não obstante ter havido o crescimento do número de assassinatos em 11%, de acordo com os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, comparando março de 2019/2020. Para agravar o cenário, e no caminho contrário ao que recomendam práticas exitosas no Brasil e no mundo, decretos publicados este mês tendem a agravar a situação, ampliar a descoordenação e inviabilizar a necessária integração.

Veja-se que a já deficitária Senasp foi cindida, para a criação de uma nova Secretaria (Decreto 10.379/2020), sem que se conheçam os estudos técnicos ou embasamento em evidências para esta transformação. Em síntese, no momento em que o mundo alinha a gestão estratégica dos recursos humanos com as estratégias institucionais, a Senasp se desconectou da área de capacitação e ensino, que passaram a uma nova Secretaria; o mesmo ocorre com a separação das áreas de pesquisa e estatística, assim como os recursos, que estarão alocados em uma Secretaria, e outra definirá as políticas públicas.

Some-se a isso uma terceira Secretaria vinculada ao Ministério da Justiça, responsável por atividades de inteligência e operações policiais, dando um caráter operacional ao Ministério que deveria ser estratégico. E, não sendo esse desarranjo suficiente, foi atribuída à Casa Civil da Presidência a coordenação das ações governamentais na área de segurança pública (Decreto 10.372/2020), num claro e evidente conflito de atribuições com o Ministério da Justiça.

A título comparativo, a União Europeia – UE, bloco formado por 27 países e mais de 400 milhões de habitantes, definiu uma estratégia comum de segurança para todas as nações, parâmetro para estratégias nacionais, seguidas por estratégias temáticas com respectivos planos de ação, metas e controles, suportadas por volumosos recursos. Dito de outra maneira, a Governo Federal no Brasil deveria fazer o que a UE realiza: liderar, integrar e coordenar seus 27 Estados, definindo objetivos, construindo estratégias e investindo recursos tecnicamente. Ou seja, tratando o tema com a responsabilidade que exige – uma política de Estado, independente de governos da ocasião. A UE possui taxa de homicídios 30 vezes menor que a brasileira.

O Brasil tem boas práticas a serem seguidas, e recentemente demonstrou que é possível atingir níveis de excelência internacionais de segurança, por ocasião da Copa do Mundo FIFA 2014 e os Jogos Rio 2016. Foram estudadas, planejadas e adotadas as melhores práticas, com um forte processo de coordenação, de integração interagências e cooperação internacional, gestão e governança, ancoradas em estratégias e recursos. Além disso, foram realizados fortes investimentos em capacitação e treinamento, ademais de  outros em recursos técnico-materiais, a exemplo do Sistema Integrado de Comando e Controle, que deveria estar em pleno funcionamento no enfrentamento às crises. Infelizmente não houve a continuidade das boas práticas, o que trouxe uma perda significativa no processo de coordenação nacional, na cooperação internacional e na integração interna.

Ocorre que a pandemia de COVID-19 chegou às comunidades carentes e às pequenas cidades do interior, onde a pouca infraestrutura, a vulnerabilidade das pessoas, as precárias condições de moradia e a alta densidade demográfica são potenciadores da sua propagação, sendo plausível pressupor um cenário de acirramento da violência. O crime organizado aproveita-se das fraquezas estatais, e a ocorrência de homicídios, golpes, roubos e furtos já é uma realidade. As já saturadas instituições de segurança pública terão mais esta imensa tarefa e um papel social de extrema relevância para a sociedade.

Este cenário crítico exige a definição – coordenada e nacional, de estratégias, viabilizando a atuação das instituições alicerçada em conhecimento, a partir da integração e da definição de objetivos, promovendo uma gestão transparente e monitorável, com base em análises geopolíticas, qualificação dos servidores, adoção de boas práticas, inteligência, tecnologia e cooperação internacional, com respeito aos direitos fundamentais e ao Estado democrático e de direito. Tudo o que o Brasil não está fazendo.

 

* Andrei Augusto Passos Rodrigues é Delegado de Polícia Federal, formado em direito e mestrando em Alta Gestão de Segurança Pública Internacional (Universidade Carlos III e Centro Universitário da Guardia Civil em Madrid/Espanha). Foi Oficial de Ligação da Polícia Federal em Madrid/Espanha, Secretário Extraordinário para Segurança para Grandes Eventos do Ministério da Justiça (2013-2017) e Coordenador-Geral de Repressão a Crimes Fazendários da Polícia Federal. Atualmente é Chefe da Unidade de Gestão Estratégica da Diretoria de Tecnologia e Inovação da Polícia Federal.

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A Polícia Federal, o SISBIN e a Democracia https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/05/24/a-policia-federal-o-sisbin-e-a-democracia/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/05/24/a-policia-federal-o-sisbin-e-a-democracia/#respond Sun, 24 May 2020 22:28:33 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/05/ISAC-NÓBREGA.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1436 Em meio ao agravamento das tensões entre Poderes e às tentativas de instrumentalização da PF, o Faces da Violência republica texto de autoria de Marco Cepik (UFRGS), publicado originalmente no fontesegura.org.br, que discute o papel da Polícia Federal no Sistema Brasileiro de Inteligência e que ajuda a compreender os movimentos políticos atuais.

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Bolsonaro tentou indicar o atual diretor da ABIN, delegado Alexandre Ramagem, para dirigir a Polícia Federal. Barrado pelo juiz Alexandre Moraes no STF, no dia 04/05/2020 o presidente empossou o delegado Rolando Alexandre de Souza, até então secretário de planejamento na ABIN, como diretor da PF. Além da controvérsia imediata sobre a existência de desvio de finalidade por causa da proximidade de Ramagem com a família Bolsonaro, o episódio nos obriga a refletir sobre as diferenças entre as funções investigativas e de inteligência na PF.

Primeiro, houve a invocação imprópria pelo presidente do decreto 9.881/2019 que alterou o funcionamento do Sistema Brasileiro de Inteligência (SISBIN), como justificativa para querer pedir informações diretamente para a PF. Ora, a principal alteração trazida por aquele decreto foi a instituição de um Conselho Consultivo do SISBIN, como órgão de assessoramento do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República (GSI/PR). De fato, a Polícia Federal participa daquele Conselho. Mas o faz por meio da Diretoria de Inteligência Policial (DIP).

As demais diretorias da PF têm atribuições distintas e específicas (técnico-científica, administrativa e logística, tecnologia da informação, gestão de pessoal, corregedoria e, principalmente, investigação e combate ao crime organizado). No caso, as funções de polícia judiciária da União e a atividade investigativa da PF são regulamentadas pelo Código de Processo Penal e pela Lei 10.446/2002, certamente não pela Lei 9.883/1999 que instituiu o SISBIN. As funções investigativas e de inteligência da PF, em tese, não se confundem. A inteligência tem função de assessoramento para decisões estratégicas. Enquanto o foco da investigação é o crime e os criminosos, o foco da inteligência é (ou deveria ser) a criminalidade.

Um segundo aspecto decorre justamente da precária regulamentação das operações de inteligência no Brasil, algo particularmente grave na área de segurança pública. Em 2016, foi divulgada uma Política Nacional de Inteligência (PNI) por meio do Decreto 8.793. No ano seguinte, um Decreto sem número de 15 de dezembro de 2017 oficializou uma Estratégia Nacional de Inteligência (ENINT). Embora a criminalidade organizada, a corrupção e as ações contrárias ao Estado Democrático de Direito tenham sido incluídas no rol de ameaças com potencial para colocar em perigo a integridade da sociedade e a segurança nacional, nenhum dos dois documentos avança na especificação de missões prioritárias ou próprias de cada órgão do SISBIN.

No caso da ENINT, um dos objetivos estratégicos fala apenas em “criar protocolos específicos para atuação integrada em relação às seguintes ameaças: corrupção, crime organizado, ilícitos transnacionais e terrorismo”. O problema é que o número de órgãos federais que participam do SISBIN aumentou de 22 em 2002 para 42 em 2020. No caso do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, além da DIP participam do Conselho do SISBIN a Diretoria de Inteligencia da Secretaria de Operações Integradas (SEOPI), a Diretoria de Inteligência do DEPEN, a SENASP, o DRCI, a PRF e a CONPORTOS. Isso para não falar do Subsistema de Inteligência de Segurança Pública (SISP), criado pelo Decreto 3695/2000 e que envolve principalmente as forças estaduais.

A Lei 13675/2018 que criou o SUSP fala em inteligência de segurança pública e defesa social, mas também em inteligência policial. Seja como for, nenhum dos órgãos estaduais ou federais com atuação nessas áreas tem regulamentadas as operações de inteligência no território nacional ou no exterior. Por razões tecnológicas, organizacionais e culturais, tanto na esfera militar quanto na policial há uma tendência para uso tático e não estratégico dos conhecimentos produzidos pela inteligência. E, como aprendemos na crise institucional em torno da Operação Satiagraha (2011), há risco moral, jurídico e político quando as duas atividades se confundem.

Portanto, o terceiro aspecto diz respeito ao controle externo das atividades de inteligência dos órgãos que compõem o SISBIN. Prevista em lei desde 1999, a Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência do Congresso Nacional (CCAI) funcionou precariamente desde então e só teve seu regimento interno aprovado em 2013 (Resolução 02-CN). As atribuições da CCAI abrangem todos os órgãos do SISBIN, incluindo “todas as ações referentes à supervisão, verificação e inspeção das atividades de pessoas, órgãos e entidades relacionados à inteligência e contrainteligência no Brasil”. Na prática, porém, não há evidências de que consiga ser efetiva. Mesmo no caso da ABIN, uma agência civil e que alcançou um alto nível de profissionalização e transparência (compatível com o segredo governamental), a assertividade da CCAI é baixa.

A ABIN conta com um Assessor de Controle Interno (ACI), que tem a atribuição de acompanhar o atendimento das recomendações e determinações da Secretaria de Controle Interno da Presidência de República (CISET/PR) e do Tribunal de Contas da União (TCU). Mas a função da CCAI vai além da fiscalização sobre a conformidade legal, constituindo na prática o único locus possível de construção de legitimidade e de integração dos interesses burocráticos diversos em uma visão cidadã das prioridades estratégicas e governança democrática. A inteligência militar, policial e financeira atuam hoje sem nenhum tipo de controle congressual. A CCAI atualmente é presidida pelo senador Nelsinho Trad (PSD/MS), tendo com vice-presidente justamente o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL/SP).

Como diz o ditado chinês, do outro lado da moeda existe outro lado. A fragilidade dos órgãos de controle externo da atividade de inteligência pode levar a dois tipos de abuso. Da parte de governantes com interesses e agendas imediatos. Mas também das próprias corporações, protegidas pela complexidade técnica e pelo segredo legal em suas atividades. Nesse sentido, a autonomia funcional da PF para cumprir sua dupla função na manutenção da segurança pública e no provimento de justiça criminal não deveria ser de modo algum confundida com “independência” para se evadir de prestar contas e justificar para o público suas prioridades e as consequências de suas ações. A democracia depende de sermos capazes de evitar ambos os tipos de abuso.

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O risco da militância política de policiais sem controle https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/05/17/o-risco-da-militancia-politica-de-policiais-sem-controle/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/05/17/o-risco-da-militancia-politica-de-policiais-sem-controle/#respond Sun, 17 May 2020 16:25:29 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/05/jair-bolsonaro-ao-lado-de-alexandre-ramagem-1589719519419_v2_900x506.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1425 A revelação feita pelo empresário Paulo Marinho em entrevista para a jornalista Mônica Bergamo publicada pela Folha de S.Paulo neste domingo (17) de que um Delegado de Polícia Federal antecipou a Flávio Bolsonaro que seu braço direito, Fabrício Queiroz, seria alvo da operação Furna da Onça da PF, e, ainda segundo a versão de Marinho, a deflagração da operação foi adiada para não prejudicar o então candidato Jair Bolsonaro é mais um capítulo da excessiva politização das polícias, excessivamente nocivo para elas próprias e para a sociedade brasileira.

Este não é um fenômeno recente. O episódio narrado por Paulo Marinho lembra bastante o do Delegado Agílio Monteiro Filho, que era filiado ao PSDB durante a sua gestão à frente da Direção Geral da PF, entre 2001 e 2003, no governo de Fernando Henrique Cardoso, e depois foi trabalhar como gestor da área prisional de Minas Gerais, sob o comando do então governador Aécio Neves.

Monteiro Filho foi militante partidário ao mesmo tempo que ocupava o principal cargo da Polícia Federal e continuou prestando seus serviços ao PSDB após sua saída do cargo. Era um homem de confiança do partido do então presidente. Em tempos mais recentes, o filho do atual presidente, Eduardo Bolsonaro, é escrivão licenciado da Polícia Federal e dois vices-líderes do governo na Câmara dos Deputados são policiais: os deputados Ubiratan Antunes Sanderson (policial federal eleito pelo PSL/RS) e Fabiana Silva de Souza Poubel (Major da PMERJ eleita pelo PSL/RJ).

E é neste ambiente que temos que analisar as tentativas de aparelhamento da Polícia Federal pelo governo de Jair Bolsonaro, que não tiveram início apenas a partir do pedido de demissão do ex-ministro Sergio Moro do cargo de Ministro da Justiça e Segurança Pública, no dia 24 de abril. Mas, ao sair atirando, o ex-ministro explicitou que a instrumentalização da Polícia Federal é um risco que há muito tem preocupado os operadores da área.

É verdade que, desde 2003, quando o delegado Paulo Lacerda deu início a um amplo projeto de modernização da PF, com a contratação de novos quadros e investimento em tecnologia e inovação, a corporação reforçou seu projeto institucional de independência e autonomia. Porém, também é fato que é sabido pelos políticos o caráter estratégico de ter um aliado na direção geral da corporação.

Isso porque, mesmo arredia a influências diretas, a PF tem uma estrutura organizacional que dá grande poder ao diretor-geral e aos superintendentes, que podem, no limite, nomear delegados para investigações específicas e/ou fixar os recursos logísticos que cada inquérito poderá contar, bem como definir quando uma operação será deflagrada. Isso mostra que nenhuma instituição é imune ao uso político, ainda mais quando seus próprios integrantes militam e fazem parte de um projeto político de poder.

Ao mesmo tempo, se a proximidade da polícia com a política é um fato normal da vida republicana, quando ela não é regulada e regrada, abre espaço para potenciais conflitos de interesse, dúvidas e indicações políticas. Não há indicadores transparentes e métricas de sucesso que sejam tecnicamente robustas e que poderiam fortalecer mecanismos independentes de controle e supervisão que viabilizariam a ideia dos mandatos para os cargos de direção das polícias sem, no entanto, a delegação de poderes absolutos para uma instituição de força.

Quando a política entra nas polícias, carreiras podem ser comprometidas e tudo vira uma enorme zona de sombras e desconfianças, como nos filmes de conspiração e espionagem de Hollywood. Muitos são os policiais que conectam suas carreiras nas corporações com a defesa de projetos políticos e eleitorais específicos.

O número de policiais que se candidataram a cargos eletivos e não foram eleitos, por exemplo, chega à casa de milhares no país e é um dilema organizacional gigantesco para o bom planejamento e supervisão da atividade policial cotidiana. Uma vez não eleitos, a maioria desses mesmos profissionais, que não estão sujeitos a regras de quarentena, voltam para as suas corporações, que têm, por sua vez, que gerir demandas de segurança pública e pressões internas sobre os rumos das políticas públicas.

E esse movimento revela um quadro de politização extrema e de falta de foco nas políticas efetivas de prevenção e enfrentamento da violência e da criminalidade, mas também reforça que é imperioso destacar que o Brasil conta com diversos policiais amplamente qualificados e que merecem respeito e valorização.

O drama é que, somado à incerteza político-institucional que toma conta do país, essa valorização fica relegada ao plano dos discursos e há um reforço de um modelo que funciona como um sistema de vetos perfeito, que impossibilita mudanças estruturais e estimula conflitos. Questões técnicas transformam-se em arenas de disputas ideológicas e políticas.

Uma saída que poderia ser articulada seria a costura de um amplo e único projeto de lei orgânica das polícias brasileiras, que regulamentasse, enfim, o parágrafo sétimo do Artigo 144 da CF. Só assim poderíamos focar em reduzir a violência e o crime no país. Um projeto que contemple pontos comuns da gestão das polícias e, ao mesmo tempo, garanta as especificidades de cada corporação.

É fundamental e urgente deixarmos mais claros os mandatos, as competências, o grau de autonomia, as regras de quarentena e transição entre as carreiras policiais e a política, bem como os mecanismos de supervisão de cada uma delas. Ou seja, sem antes pactuarmos regras claras e transparentes de accountability e blindarmos as decisões operacionais de policiais engajados em projetos político-eleitorais, falar de autonomia da PF agora é um risco ainda maior para o país; um risco de jogarmos fora anos de investimentos na profissionalização da corporação e  incentivarmos a militância partidária de policiais sem controle.

 

*Este artigo aproveita, em parte, reflexão feita na edição 37 do Boletim Fonte Segura, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (www.fontesegura.org.br)

 

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Homicídios crescem pelo sétimo mês consecutivo no país https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/04/29/homicidios-crescem-pelo-setimo-mes-consecutivo-no-pais/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/04/29/homicidios-crescem-pelo-setimo-mes-consecutivo-no-pais/#respond Wed, 29 Apr 2020 12:54:07 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/11/1709227-150x150.jpeg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1402 Em coautoria com Samira Bueno*

Com sete meses ininterruptos de crescimento dos crimes violentos letais intencionais (homicídios dolosos, lesões corporais seguidas de morte e latrocínios) no país, a gestão de Jair Bolsonaro bate um recorde de meses consecutivos de alta da criminalidade violenta, de acordo com série histórica de dados compilados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública e do Monitor da Violência desde janeiro de 2016.

Mesmo que em patamares ainda menores do que aqueles observados no final de 2017, este é o período de meses mais longo da série histórica analisada e pode indicar o esgotamento dos efeitos das estratégias e políticas adotadas entre 2017 e 2018 e que permitiram a redução dos assassinatos a partir de janeiro de 2018.

E, mais, esse período pode ser o início dos efeitos de medidas como o esforço ideológico inconsequente que o governo Bolsonaro faz de desregulação e ampliação da posse e o porte de armas de fogo e munições, entre outras ações formuladas em sua gestão para a área. Esforço esse que culminou, agora em abril, com a determinação do presidente para a revogação de portarias do Exército Brasileiro que estabeleciam regras para rastreamento e identificação de armas de fogo no Brasil, mesmo após o Exército alertar para o fato de que a medida atentaria aos interesses da segurança nacional.

 

 

No plano subnacional, dados  do Monitor da Violência, parceria do Fórum Brasileiro de Segurança Pública com o NEV/USP e o G1, revelam que 20 das 27 Unidades da Federação apresentaram crescimento de assassinatos entre janeiro e fevereiro de 2020, em relação ao mesmo período de 2019. No total Brasil, comparando os mesmos períodos, houve um crescimento de 7,6% nos assassinatos.

Dessas 20 Unidades da Federação, chama atenção o Ceará, que enfrentou uma greve/motim de policiais militares em fevereiro que resultou, entre outras questões, no aumento abrupto dos homicídios durante o movimento paredista e que quase anulou o ganho de cerca de mais de 50% de queda nas mortes que o estado havia obtido no ano passado. Mas, tão grave quanto a situação do Ceará, destacamos o crescimento dos crimes violentos letais intencionais em UF que estavam conseguindo, até então, reduzir seus índices de violência criminal por vários anos, a exemplo do Distrito Federal, Santa Catarina, Bahia, Pernambuco, Paraíba, Espirito Santo e São Paulo.

 

É muito revelante que quase todas essas Unidades da Federação possuem sistemas de metas e/ou bonificação por resultados e são caracterizadas pelo esforço de articulação e integração entre suas polícias. A capacidade incremental e gerencial que os governos estaduais detêm na segurança pública ficou fortemente constrangida, ao que tudo indica, pela incapacidade do governo federal em articular respostas federativas às novas dinâmicas da violência e do crime organizado, bem como pela crise fiscal que reduziu a margem para o financiamento de um sistema historicamente desfuncional.

Também contribuiu para este quadro um ambiente de excessiva politização das forças policiais que, em nome de justas reivindicações por melhores condições de salário e trabalho, passaram a defender pautas com forte carga corporativista e ideológica. A política invadiu os quartéis e as unidades das polícias e a atividade cotidiana de segurança pública ficou em segundo plano.  E, se esse movimento já vinha sendo estimulado desde os governos do PT, foi sob Jair Bolsonaro e Sergio Moro que a segurança virou de vez bandeira político-partidária.

Em artigo de balanço de gestão de Sergio Moro à frente da pasta da Justiça e Segurança Pública publicado na edição da Folha do último sábado, alguns pontos objetivos foram descritos. Porém, a disputa por protagonismo dos dois políticos mais populares da atualidade teve, como efeito colateral, o abandono da segurança como política pública e o descaso com as demandas histórica de modernização e reforma da área no país.

Como exemplo, o Ministério da Justiça e Segurança Pública, que legalmente é quem coordena as políticas de segurança pública do país, ficou a reboque do Planalto na discussão sobre a já citada ampliação do porte e posse de armas de fogo e munições. Também teve uma atuação omissa no combate às milícias e referendou a mensagem leniente com o uso desproporcional da força letal, com o tecnicamente falso discurso presidencial da excludente de ilicitude para integrantes das forças de segurança. De igual modo, reduziu suas conversas com os secretários de segurança e defesa social dos estados; e não participou das conversas para a modernização do R200, decreto que regula as Polícias Militares no país, que estão sendo tocadas pelo Palácio do Planalto e pelo Ministério da Defesa, e que visam a proposição de Projeto de Lei que instituí a Lei Orgânica das Polícias Militares.

O governo Bolsonaro diminuiu o número de operações da Força Nacional de Segurança Pública em áreas indígenas e de proteção ambiental, com sérias implicações diplomáticas e econômicas. Para se ter uma ideia, vale relembrar que, em 2019, as ações ambientais e/ou em terras indígenas responderam por 12% das operações da FNSP. Em 2018, por 24%. Já dados do Portal da Transparência sobre Execução Orçamentária da União, em 2019, corrigidos pelo IPCA revelam que o Ministério da Justiça e da Segurança Pública reduziu em 24,9% os gastos com a FUNAI.

Da mesma forma, Sergio Moro rivalizou com governadores para assumir protagonismo da queda de crimes observada até meados de 2019 e sumiu quando percebeu que vários índices voltaram a crescer e que seria cobrado por isso. Ele também politizou demais, no começo do ano, o episódio em torno do motim da Polícia Militar no Ceará, dificultando as negociações do governo estadual com os policiais amotinados. A transferência de lideranças de facções de base prisional para presídios federais foi estimulada mas, sozinha, ela não resolveu a estrutural crise carcerária, com superlotação e domínio das prisões por parte do crime organizado.

O governo Bolsonaro igualmente não apresentou nenhuma política de enfrentamento para a violência contra a mulher, que agora mostra sua face durante a pandemia de Covid-19, quando crescem os feminicídios ao mesmo tempo em que os serviços de acolhimento às mulheres vítimas de violência estão sucateados. Os Ministérios da Justiça e da Saúde não dialogaram entre si e não tiveram a capacidade de planejamento e aquisição em tempo hábil de EPI para as polícias diante da pandemia.

Nesse processo, jabutis começaram a brotar em árvores, como a proposta do DEPEN (Departamento Penitenciário Nacional) apresentada ao Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP para, diante da pandemia de Covid-19,  acomodar presos em contêineres, relembrando as “prisões de lata” dos anos 2000 e, ainda, o alojamento incendiado das categorias de base do Flamengo, no “ninho do Urubu”.

Sergio Moro não obteve êxito em fazer avançar suas principais vitrines, o Pacote “Anticrime” e o programa “Em Frente Brasil”. O primeiro foi alterado no Congresso com apoio tácito do Palácio do Planalto e, o segundo, ficou na esfera da boa intenção, sem ganhar escala e efetividade. Ainda é importante destacar que o ex-ministro sempre manteve rota de conflitos com parcela do STF e do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), tensionando as relações entre os poderes e diminuindo o espaço para ações coordenadas.

Os recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública foram bloqueados por Paulo Guedes e o STF precisou determinar a liberação do dinheiro para que ele pudessem ser repassado aos estados. A Polícia Federal, por uma questão de restrição orçamentária, diminuiu o número de operações especiais. O Fundo Nacional Anti-drogas recebeu mais recursos a partir da facilitação da venda de bens apreendidos, mas eles não foram executados ou foram convertidos em medidas concretas de prevenção.

E, por fim, o Governo Bolsonaro, alegando que uma consultoria da CGU teria encontrado problemas de desenho institucional da Política Nacional de Segurança Pública aprovada no final de 2018 paralisou a implementação do SUSP (Sistema Único de Segurança Pública), que tentava, exatamente, criar um novo ambiente federativo de cooperação e aperfeiçoamento da área. Com a desculpa de que a legislação era falha, o que não é fato, medidas que estavam sendo conduzidas na direção da coordenação federativa foram abandonadas.

Em suma, construir uma política de segurança eficiente leva anos e é obrigatoriamente uma construção coletiva. Porém, destruí-la é sempre muito rápido e quase sempre decorrente da irresponsabilidade política ou institucional de quem prefere surfar na onda da sua fugaz popularidade e/ou de quem fica cego por concepções ideológicas toscas e não mede as consequências de seus atos na vida real da população.

Várias hipóteses podem ser mobilizadas para compreendermos essa reversão de tendência, mas, em uma síntese política, a aliança entre Jair Bolsonaro e Sergio Moro teve, na prática, resultados pífios para a segurança pública. Ao contrário do que disse o ex-ministro Sergio Moro no início de janeiro deste ano, na segurança não existe Mago Merlin ou feitiços prestidigitadores mas evidências e trabalho árduo.

 

*Diretora Executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

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A política está entrando nos quartéis https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/04/22/a-politica-esta-entrando-nos-quarteis/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/04/22/a-politica-esta-entrando-nos-quarteis/#respond Wed, 22 Apr 2020 21:31:26 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/04/15665864475d60364fdecb4_1566586447_3x2_rt.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1391 Texto de autoria de Arthur Trindade Maranhão Costa*

Desde 1985, na Nova República, a política esteve afastada dos quartéis. No entanto, este cenário tem mudado radicalmente e são cada vez mais frequentes manifestações políticas dentro das unidades militares. As vivandeiras estão de volta.

 

Certa vez o Marechal Humberto Castelo Branco disse que “vivandeiras alvoroçadas, vêm aos bivaques bolir com os granadeiros e provocar extravagâncias do Poder Militar”. Castelo Branco se referia aos frequentes movimentos políticos que tentavam cooptar os militares e instrumentalizar o Exército. Como disse o antigo chefe militar, isso não era novidade, acontecia desde 1930. O fato é que as vivandeiras estão de volta, e elas não se resumem ao presidente Jair Bolsonaro, cuja coluna de Élio Gaspari de hoje (22) já analisou.

Se é verdade que o apoio de Bolsonaro aos manifestantes que foram às ruas neste domingo (19) pedir intervenções no Supremo Tribunal Federal e no Congresso Nacional não é por meio de discursos abertos e que, posteriormente, ele tenha declarado para os jornais que é favorável a democracia e respeita as instituições, a simples presença do presidente àquela manifestação tem significados muito mais profundos.

O simbolismo militar nos protestos é evidente. Muitos manifestantes usavam boinas e brevês das tropas Paraquedistas, além de insígnias e lemas militares. Para os familiarizados com o mundo da caserna, a conexão simbólica que Bolsonaro busca é nítida. Vale que lembrar que o ex-capitão se apropriou de um dos lemas da Brigada Paraquedista na sua campanha eleitoral: Brasil Acima de Tudo.

Protestar contra medidas adotas pelos governantes é um dos direitos políticos fundamentais numa democracia. Mesmo que estes protestos sejam contra as vacinas. Nesse caso, só podemos lamentar e nos perguntar como chegamos a este nível de negação da ciência.

Entretanto, a exemplo das semanas anteriores, os protestos de domingo têm um aspecto diferenciador. Além de pedirem o fechamento do Congresso e do STF, os protestos têm contado com o apoio do Presidente da República. Obviamente isto é perigoso. Presidentes não podem atentar contra às instituições fundamentais da democracia, mesmo que só em gestos e não diretamente em palavras.

O último presidente que subiu num palanque para apoiar manifestações políticas foi João Goulart. No dia 13 de março de 1964, Jango participou de um comício na Central do Brasil para pressionar o Congresso a aprovar as reformas de base. O comício não era contra as instituições. Naquele tempo, as vivandeiras estavam alvoraçadas.

Havia grupos de direita e de esquerda que pretendiam cooptar os militares e levar a política para dentro dos quartéis. Alguns buscavam uma cooptação por cima, tentando se aproximar dos comandantes militares. Outros tentavam cooptar por baixo, doutrinando as praças dentro dos quartéis. A ideia era dar uma formação política aos sargentos. A história nos mostrou que isso não acabou bem.

Além da participação do presidente, as manifestações de domingo tiveram outro componente explosivo: elas ocorram nas portas dos quartéis. Nada é mais simbólico do que Bolsonaro ter participado de um protesto no Setor Militar Urbano. Bolsonaro, literalmente, foi participar de uma manifestação na porta do Quartel General do Exército.

Desde 1985, na Nova República, a política esteve afastada dos quartéis. A vivandeiras embora existissem, não estavam alvoroçadas. No entanto, este cenário tem mudado radicalmente. Nos últimos anos, a política entrou nos quartéis. Hoje são cada vez mais frequentes manifestações políticas dentro das unidades militares.

O Exército parece que estar assistindo hoje o que as Polícias Militares têm vivenciado nas últimas décadas. As tentativas de instrumentalização política das polícias não são novidade. Lideranças políticas têm buscado promover greves e protestos de policiais militares para desestabilizar os governadores. O irônico é que ao invés de desmilitarizar as Polícias, como muitos insistem, podemos estar assistindo um processo inverso: a politização do Exército como já ocorre nas polícias militares.

Por certo, isto ainda está longe de ocorrer. Menos por vontade de Bolsonaro e seus aliados e mais pelos esforços dos comandantes militares. O que se assiste hoje é uma grande confusão entre os militares e o governo. Há os militares enquanto instituição. São os militares da ativa que buscam seguir com cumprimento das missões. Há também os militares enquanto governo: além dos generais que fazem parte do ministério, existem centenas de oficiais ocupando cargos na alta burocracia de Brasília. E há o presidente e as vivandeiras alvoroçadas.

O resultado das interações entre esses três grupos irá impactar diretamente o cenário político nacional. Bolsonaro vem tentando levar a política para dentro dos quartéis, numa espécie de cooptação por baixo. Por ora, este movimento não tem recebido apoio dos militares enquanto governo. Embora tenham sido convidados para participar das manifestações de domingo, os Generais Fernando Azevedo e Luiz Eduardo Ramos decidiram não comparecer. Mas vale lembrar, que em outra ocasião, o General Augusto Heleno subiu no carro de som e discursou para os manifestantes na Esplanada dos Ministérios em Brasília e já atacou diretamente o Congresso em evento público com outros ministros e o presidente.

Torço para que os comandantes militares consigam conter as tentativas de instrumentalização do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. Não seria nada bom para as Forças Armadas, que levaram mais de 20 anos para reconquistar a confiança da população, e seria o caos para o país se isso acontecesse. O exemplo mais recente de cooptação politica dos militares é o regime bolivariano implantado pelo Tenente Coronel Hugo Chaves e atualmente liderado por Nicolas Maduro.

Professor da UNB e integrante do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

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Bolsonaro e o risco de um golpe policial https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/04/20/bolsonaro-e-o-risco-de-um-golpe-policial/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/04/20/bolsonaro-e-o-risco-de-um-golpe-policial/#respond Mon, 20 Apr 2020 20:54:44 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/04/Bolsonaro-e-o-apoio-policial.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1386 Texto de autoria de Rafael Alcadipani*

Todas as vezes em que emerge um arroubo golpista de Jair Bolsonaro, há questionamentos se as Forças Armadas brasileiras bancariam uma aventura autoritária do Presidente. Porém, pouco se tem falado das polícias que, na prática, possuem um efetivo na ativa bem maior do que as próprias Forças Armadas e que, em larga medida, votaram e apoiaram com entusiasmo Bolsonaro nas últimas eleições. O que, em outras palavras, coloca-nos a questão se, a depender das condições políticas, os policiais se rebelariam contra a democracia e ajudariam o presidente a fechar o Congresso e o STF?

Vale relembrar que Bolsonaro utilizou quartéis da PM, unidades da Polícia Civil e da Polícia Federal como verdadeiros palanques. Inúmeros policiais utilizaram e utilizam as redes sociais para defender Bolsonaro e suas ideias. Diante de todo este explícito apoio, com a conivência dos comandos das polícias, a pergunta faz todo sentido. Porém, é preciso perguntar por que policiais apoiam em peso Bolsonaro. Tal apoio se deve a dois fatores principais. Primeiro, policiais se sentem incompreendidos e desconsiderados pela imprensa e pela sociedade em geral. Isso se alia a condições de trabalho extremamente desafiadoras e questões ligadas a baixa remuneração. Segundo, Bolsonaro tem um claro discurso de “bandido bom é bandido morto” algo que é implícita e explicitamente aceito por parte da sociedade brasileira e por policiais. Diante disso, será que este apoio se reverteria em uma sublevação policial pró golpe Bolsonarista?

Para responder a estas perguntas precisamos lembrar que temos várias polícias no Brasil com características próprias e especificidades tanto institucionais-operacionais quanto regionais. Da ditadura para os dias de hoje, todas as forças policiais se profissionalizaram e ficaram mais técnicas. Mas, a Polícia Federal é a polícia mais estruturada, organizada e técnica do país e o seu profissionalismo extremo tende a deixá-la mais longe de aventuras. Porém, o número de policiais federais é muito menor do que de policiais civis e de PMs e teria, sozinha, dificuldades para impedir um movimento golpista das demais instituições policiais.

Nos Estados, temos as Polícias Civis e Militares. As Polícias Civis possuem características culturais muito diferente das PMs. Além disso, elas foram sucateadas ao longo dos anos e hoje estão debilitadas tanto em termos de efetivo quanto de materiais. As Polícias Civis são comandadas por bacharéis em direito, o que lhes gera uma tendência de apoio a institucionalidade jurídica. Além disso, policiais civis tendem a ter uma mentalidade mais flexível e realizaram uma transição mais forte da ditadura para a democracia em suas práticas cotidianas. Na realidade, isso significa que tais instituições estariam menos propensas a seguir uma radicalização política na prática. Porém, o efetivo da Polícia Civil é quase 1/3 do efetivo das PMs.

O grande fiel da balança para um golpe pró-Bolsonaro está nas PMs, pois são as maiores forças policiais do país. Policiais em geral e as PMs em particular tendem a serem vistos de forma única pelas pessoas. A noção de PMs como pessoas pouco estudadas não se sustenta na realidade. Em muitos Estados do Brasil, PMs exigem um diploma universitário para o ingresso na carreira. Há inúmeros PMs graduados em direito, tanto nas praças quanto entre os oficiais. Há uma longa formação nas academias e a progressão na carreira depende de cursos. Os oficiais, em especial, tendem a ser muito bem preparados e capacitados.

Embora Bolsonaro personifique todos os estereótipos que os militares buscam evitar, a defesa do militarismo por Bolsonaro é muito bem-visto dentro das PMs. Mas, seus arroubos cada vez mais frequentes têm reduzido sua aceitação. A despeito dos inúmeros casos de abusos de PMs que surgem na mídia, as instituições possuem em seu curriculum disciplinas de Direitos Humanos. Além disso, a maioria dos milhões de atendimentos das PMs no Brasil não geram não conformidades. As PMs enfrentam um problema importante: a imagem dos PMs políticos eleitos que tendem a ser explícita ou implicitamente pró-Bolsonaro e contra os governadores estaduais colou nas instituições.

Além disso, a boa maioria dos parlamentares das PMs que são eleitos possuem um discurso em prol da violência e dos abusos policiais. Além disso, muitos PMs da reserva radicalizaram o discurso pró-Bolsonaro. A voz dos PMs radicais ecoa muito mais do que a voz dos moderados, principalmente nas mídias sociais. Os comandos das polícias são extremamente lenientes com as postagens radicais de seus policiais e isso afeta a imagem da instituição. Tudo isso gera a sensação de que as PMs fariam qualquer coisa para defender o “mito”. Mas, será?

Muitos oficiais da PM dizem que a “hierarquia e a disciplina são nossa maior virtude e nosso maior defeito”. Diante disso, PMs estariam dispostos a romper a hierarquia e a disciplina, pilares centrais da instituição, para uma aventura Bolsonarista? O rompimento da hierarquia e disciplina pode esfacelar uma organização militar e teria um efeito direto nos comandantes. Além disso, uma tentativa de golpe frustrado teria efeitos devastadores na reputação institucional das PMs e há poucas coisas que um PM respeita mais do que a própria instituição.

Outro ponto a se destacar é que PMs se percebem como pessoas que seguem as leis à risca e respeitam as instituições. Diante disso, é muito pouco provável que instituições policiais brasileiras apoiem uma aventura bolsonarista. A atual geração que comanda as polícias brasileiras ainda sofreu o rechaço social pela atuação de suas instituições na ditadura militar brasileira e sabem que o golpismo gera uma dívida histórica muito difícil de pagar.

Entretanto, nas polícias de nosso país há uma prevalência de questões psicológicas e psiquiátricas que muitas vezes são ignoradas ou negligenciadas. Por isso, há a possibilidade real de que “lobos solitários” extremamente radicalizados atuem em defesa de Bolsonaro de duas formas.

A primeira caso Bolsonaro proponha um golpe, estes elementos radicalizados podem tentar sublevar unidades policiais específicas a favor do Presidente. Muito possivelmente as próprias polícias resolveriam o problema. Mas, haveria uma grande repercussão. A segunda forma seria que algum indivíduo radicalizado e totalmente desequilibrado atentasse contra a vida de um governador, por exemplo. O próprio atentado contra Bolsonaro mostra o risco de um lobo solitário.

Anos de questões salariais e de negligência dos governos estaduais para com as polícias tem gerado tensões entre policiais e governantes. Bolsonaro explora isso muito bem. No atual momento, estas tensões podem aflorar e gerar repercussões desastrosas pela ação de um indivíduo. Se por um lado as nossas polícias tendem a ser garantidores de nossa democracia, por outro a facilidade com que as ideologias autoritárias navegam nestas instituições precisa ser combatida. Afinal, não é nada normal cogitar que polícias possam apoiar um Presidente golpista.

*Professor da FGV-EAESP e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

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