Faces da Violência https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br O que está por trás dos números da segurança pública Tue, 23 Nov 2021 18:56:47 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Mortes no Amazonas indicam a influência das facções criminais na manutenção da ordem nas prisões https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/05/31/mortes-no-amazonas-indicam-a-influencia-das-faccoes-criminais-na-manutencao-da-ordem-nas-prisoes/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/05/31/mortes-no-amazonas-indicam-a-influencia-das-faccoes-criminais-na-manutencao-da-ordem-nas-prisoes/#respond Fri, 31 May 2019 18:45:39 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/05/Marlene-Bergamo-320x213.png https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=878 Por Marcelli Cipriani. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Segurança e Administração da Justiça Penal (GPESC), da PUC/RS

 

Em meio à segunda maior onda de assassinatos de presos do Amazonas, que resultaram na morte de 55 pessoas que se encontravam sob a tutela do poder público, o governador Wilson Lima deu entrevista garantindo que o sistema prisional do estado está controlado, já que não haviam fugas ou agentes estatais feridos.

Lima ainda disse que é praticamente impossível impedir confrontos como os que ocorreram em quatro unidades prisionais diferentes e que envolveram detentos abrigados em um mesmo pavilhão.

Parece haver, aí, uma contradição. Se autoridades públicas já partem do pressuposto de que não há como controlar a violência letal cometida contra os presos, como é possível afirmar que o sistema está, ou em algum momento já esteve, sob controle?

Mas essa incongruência é apenas aparente. O que aconteceu em Manaus não se tratou de “algo atípico” – em que pese a excepcionalidade de algumas das mortes terem sido cometidas durante o horário de visitação, algo raro no mundo do crime –, mas de um dos desdobramentos possíveis a uma sucessão de escolhas políticas que atravessam todas as instituições do sistema de Justiça Criminal, no âmbito dos estados e da Federação.

A importância em sustentar o aparente controle e a “ordem” do sistema é um fantasma que acompanha governadores, secretários e gestores prisionais dos variados estados do país. Com as prisões brasileiras contando com uma superlotação de 69,3% – no Amazonas, esse índice chega a 136,8% – a maioria delas operando de forma precária e oferecendo condições de vida degradantes, as instabilidades figuram sempre no horizonte.

Motins, fugas e rebeliões são “desordens” que, ao ocorrerem, desmoralizam o poder público e desnudam o mito do Estado soberano na garantia da segurança – expondo-o como incapaz de reprimir o crime mesmo no interior da instituição que, por excelência, deveria representar sua contenção.

A maneira como a “ordem” é buscada – em um sistema que opera por meio de incessantes ilegalidades e, por isso mesmo, tende à produção de “desordem” – varia em cada prisão. Em face desse cenário, o sucesso em evitar massacres semelhantes ao ocorrido nessa semana não decorre apenas da ausência de “disputas internas” a facções criminais, mas também está atrelado a características próprias à gestão prisional.

Como exemplo, o secretário de Administração Penitenciária do Amazonas, coronel PM Marcus Vinicius Almeida, declarou que “o estado não reconhece facções”, mesmo com o governador Lima ter informado que há, nas unidades daquele estado, separação dos presos de acordo com a pertença a diferentes grupos.

Apesar dos efeitos simbólicos, a falta de reconhecimento sobre o papel das facções no sistema prisional não afasta, magicamente, o poder que esses grupos exercem na prisão, tampouco elimina o fato de que eles seguem contando com esses espaços para a expansão de sua influência nas áreas urbanas.

Do ponto de vista dos presos que já estão inseridos nas redes dos grupos, a convivência em pavilhões e galerias conforma nichos de comerciantes, ampliando oportunidades para o fornecimento de drogas, a obtenção de lucro e as colaborações no mundo do crime. Quanto aos que ainda não os integram, a entrada nesses ambientes acirra a possibilidade de vinculação, em um contexto no qual a oferta de bens e serviços – muitos deles, básicos e que deveriam ser providos pelo Estado – é feita por integrantes de facções.

Enquanto parte da sociedade regozija-se com o sofrimento a que os presos estão sujeitos, os grupos criminais promovem o acolhimento dos recém-chegados e são grandes responsáveis por tornar a vida na prisão um pouco menos dura – ajudando os presos na viabilização de visitas de familiares, no acesso a advogados e mesmo à comida de melhor qualidade. Ainda que, muitas vezes, esse auxílio não gere um ônus direto àquele que o recebe, costuma estabelecer um compromisso, posto que há expectativa de reciprocidade.

Como saldo, a política de encarceramento em massa é altamente rentável para as facções, ainda que traga enorme sofrimento e exponha a violências institucionais um sem-fim de pessoas – não só presos, como também seus familiares. De outro lado, a gestão compartilhada do sistema possibilita que, a despeito da enorme superlotação, do baixo gasto com funcionários e com a manutenção do preso como pessoa, as prisões sigam operando em “ordem”.

O poder das facções segue se manifestando no país com uma capilaridade impressionante – ainda que lideranças sejam transferidas ao sistema federal, como já era o caso dos dois líderes atribuídos às alas da Família do Norte que romperam nos últimos dias. No crime, espaços de poder não ficam vazios, e esses grupos já atingiram uma dimensão que os desobriga das determinações de indivíduos específicos.

Entretanto, a alternativa à negação – que, no Brasil, jamais é afirmada publicamente, embora perpasse pela prática de um sem-fim de unidades prisionais – implica altos custos políticos. Embora não se trate de uma novidade, ela compõe um raciocínio contra intuitivo e é largamente rechaçada pela população, que, mesmo contra todas as evidências, permanece convicta na retórica de que, se o crime continua crescendo, é porque não há aprisionamentos o suficiente, porque a lei não é rígida o bastante ou porque a prisão não é tão severa como deveria.

Ocorre que, diante do ritmo galopante de pessoas presas, o funcionamento do sistema depende do constante equilíbrio entre os antagonismos que marcam a atuação do Estado e a das facções, que controlam a maioria dos presídios. Se trata de uma verdade inconveniente, mas que já foi demonstrada reiteradamente pela potência da mobilização coletiva no interior do cárcere.

Da forma como opera no Brasil, o sistema prisional não está alheio ao crime e às facções, mas integra sua equação. Nesse sentido, não só o uso da prisão é incapaz de contribuir para o controle da violência, como também a contenção de indivíduos em unidades prisionais não impede a continuidade de dinâmicas criminais – pelo contrário, lhes serve de plataforma.

Mortes e crises como as de Manaus são consequências sempre possíveis a uma dualidade entre o legal e o ilegal, que atravessa o sistema como um todo. A partir da prisão, os grupos criminais são capazes de seguir se expandido e consolidando. Contando com a influência dos grupos criminais, o Estado pode manter sua racionalidade punitiva intacta e, ao mesmo tempo, tentar viabilizar a gestão e a manutenção de um sistema inviável em “ordem”.

]]> 0 Somos todos, sociedade e Estado, sócios do crime organizado https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/01/15/somos-todos-sociedade-e-estado-socios-do-crime-organizado/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/01/15/somos-todos-sociedade-e-estado-socios-do-crime-organizado/#respond Tue, 15 Jan 2019 10:48:50 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/01/15173423215a70ce7191940_1517342321_3x2_rt-150x150.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=567 Por Raul Jungmann. Ex-titular dos ministérios da Segurança Pública e da Defesa do Brasil.

Somos todos, sociedade e Estado, sócios do crime organizado. Nós, sociedade, por interditarmos todo e qualquer debate sobre a questão prisional e, não sendo possível a eliminação pura e simples dos bandidos, exigirmos a prisão de todos, indistintamente e para sempre.

Já o Estado, ao não garantir a vida dos apenados no interior das prisões, tão pouco assegurar o que a lei determina, as condições da sua ressocialização, permite o controle do sistema prisional pelas facções criminosas e sua reprodução desde dentro do sistema, comandando daí a criminalidade nas ruas.

A construção desse paradoxo se dá, faticamente, por termos a terceira população carcerária do mundo, com mais de 720 mil apenados, que cresce na ordem de 8.3% ao ano – será uma Porto Alegre em 2025, algo como 1,5 milhão de pessoas -, constituída de jovens de 18 a 29 anos, que representam hoje 75% dos presos. Aos quais a apenas 12% se oferece educação e trabalho a 15% deles.

Esse grave quadro se deteriora ainda mais quando se verifica que o sistema prisional tem um déficit de 358 mil vagas, já que conta com apenas 368 mil vagas disponíveis, e que os mandados de prisão em aberto já somam mais de meio milhão e crescem geometricamente.

Para que se tenha ideia dos custos necessários para cobrir o déficit do sistema e seu crescimento anual mais sua manutenção, seriam necessários algo em torno de R$ 50 bilhões, o que, diga-se, é insustentável tanto econômica, quanto fiscal ou orçamentariamente.

Pois bem, nada disso é parte do debate nacional sobre a segurança pública. Neste, em todos os níveis, os atores e agentes públicos e políticos, debruçam-se sobre a violência nas ruas, com as exceções de praxe.

Sem negar a urgência e a importância de soluções para a violência cotidiana – os assaltos, homicídios, sequestros, balas perdidas etc. Tão pouco minimizar as medidas legislativas, materiais e operacionais para enfrentá-la, resta cristalino que as ruas e o sistema prisional são faces complementares de um só problema.

Porém, esse diagnóstico é interditado por dois motivos:

O primeiro deles é que uma população com crônico déficit de segurança, exposta à violência e indefesa, por um lado deseja que tirem os bandidos das ruas por quaisquer meios e, de outro, execra e mesmo se dispõe a linchar midiática e politicamente quem propuser trazer a questão prisional a debate. Quem o fizer, será sancionado duramente como associado ou defensor de bandidos.

O segundo motivo, é que o poder público, premido pela escassez de recursos e por imensas demandas sociais reprimidas, inclusive por mais e melhor segurança nas ruas, subdimensiona, quando não colapsa, o orçamento e a manutenção das prisões, ao ponto de transformá-las em depósitos de presos.

A degradação do sistema chega a tal ponto que os governos estaduais responsáveis pelo sistema, para evitar explosões e crises, fazem um pacto não escrito com o crime, entregando, na prática, as unidades prisionais às facções. Fruto dessa “aliança”, o sistema prisional, que é estatal, se aliena da sua responsabilidade pelas unidades e vida dos apenados, é ´capturado e se torna sócio do crime organizado… E aqui chegamos ao coração das trevas.

Indefesa, a sociedade cobrará do Estado que trate o criminoso como não detentor de quaisquer direitos, dignidade ou humanidade – ainda que residuais. Já o Estado, em contrapartida, se subtrairá das responsabilidades para com apenados e o sistema prisional, cedendo o seu controle ao crime organizado sob a forma das facções de base prisional.

Nesse ponto, opera-se uma transformação funcional de todo o sistema, e por extensão da própria justiça penal, dado que de parte administrativa desta e locus da ressocialização dos delituosos, o sistema prisional passa a ser parte da reprodução ampliada do crime organizado e, em decorrência, da violência e da insegurança gerais- inclusive das ruas.

Aos incrédulos, cito dois exemplos. Em 33 vistorias realizadas em sete estados pelas Forças Armadas, em 2017, foram encontradas 11 mil armas para um total de 22 mil presos, portanto, um em cada dois dispunham de armas brancas, quase sempre. Ora, como isso seria possível sem a anuência dos que controlam o sistema? Além das armas, foram encontrados rádios-base, celulares, drogas, duchas, televisores e o que mais se imaginar, evidenciando o descontrole e a corrupção existentes.

Segundo exemplo: a atual crise por que passa o Ceará. Transformado em hub ou corredor de tráfico de drogas para o Caribe por via marítima, o estado viu e permitiu crescerem as facções, tanto nacionais como locais que, como sempre, de dentro das prisões passaram a controlar o crime nas ruas. Quando o atual governo estadual decidiu iniciar a retomada do controle dos presídios, cadeias e penitenciárias, de dentro destas partiu o salve (ordem) para o confronto com o Estado, via atos de terrorismo.

Tem sido assim pelo menos desde 2006, quando o PCC paralisou São Paulo por conta da transferência do seu comando para a penitenciária de Presidente Venceslau, sem poupar praticamente nenhum estado; seja em espasmos de violência interna, as chacinas ou atos de externos de confronto com o poder público, quando os interesses estratégicos do crime organizado de base prisional são atingidos ou ameaçados.

Este estado de coisas levou o STF, em 2015, a uma decisão inédita. A de declarar o sistema prisional brasileiro em estado de inconstitucionalidade, pelo descumprimento reiterado da Constituição, a exemplo do inciso XLIX do artigo 5o, que assegura ao preso a sua incolumidade física e moral, idem a Lei de Execução Penal.

Enfrentar e mudar esse estado de coisas exige visão estratégica, planejamento e coordenação. Entendo que, sem ser exaustivo, são quatro os eixos de uma política consequente para o sistema prisional: prevenção social dirigida a juventude, em especial na faixa dos 15 aos 24 anos; repressão qualificada; reforma do sistema prisional e da política de drogas; e mudanças na orientação para o encarceramento.

Está na juventude, sobretudo das periferias, o motor da nossa tragédia de violência e insegurança. E isso é fácil de constatar: aproximadamente três em cada quatro dos que estão nas cadeias e penitenciárias são jovens, negros ou pardos, com pouca escolaridade, baixa renda e família desestruturada. Dai que é incontornável a coordenação de ações de educação, cultura, esportes, saúde, qualificação e assistência social focadas nesse grupo social.

A repressão qualificada atua com base sobretudo com base na inteligencia policial, voltada para o crime organizado, seus líderes e circuitos financeiros, que ditam a dinâmica da criminalidade e da violência nas ruas.

A reforma do sistema prisional, passa pela revisão da legislação que rege a construção, gestão e manutenção dos presídios e penitenciárias. Qualificação do pessoal especializado na sua operação e ampliação das unidades do semiaberto, da monitoração eletrônica e das centrais de penas alternativas. Imprescindível, é a organização de atividades educativas e laborais com cobertura universal, sem o que a função ressocialização do sistema simplesmente não existe. Por fim, uma política de reinserção dos egressos, pois sem ela a taxa de recaída no crime e reincidência permanecerá alta – entre 40 e 70% segundo pesquisas acadêmicas.

Na questão das drogas, é urgente a definição de um claro limite quantitativo que estabeleça uma distinção segura entre o traficante e o usuário. Essa definição, que se encontra nas mãos do STF, irá minimizar o envio massivo de jovens usuários de drogas para o regime fechado pelos juízes das varas penais, onde, para não morrer, eles terão que jurar fidelidade as facções, tornando-se parte do seu exército.

É necessário, ainda, dar prioridade no regime fechado aos delitos de maior impacto, a exemplo dos tráfico de drogas, homicídios, outros crimes hediondos, crime organizado e similares. Já os demais, de baixo impacto, devem ser objeto de medidas cautelares, privativas de direitos, regime semiaberto, monitoramento ou domiciliar. Sem essa priorização, continuaremos prendendo muito e prendendo mal, no dizer o ministro Alexandre Moraes.

Da nossa parte, nos dez meses de existência do Ministério da Segurança Pública, colocamos em prática diversas medidas na direção das política e ações acima propostas. A exemplo de uma política nacional de trabalho e renda para egressos do sistema prisional, dos convênios com o Ministério da Educação e do Trabalho para levar o ensino de jovens e adultos e iniciação laboral às prisões. Procuramos ainda enfrentar o déficit de vagas nas penitenciárias via inovadora parceria com a ONU produtos e serviços; o lançamento de edital dirigido as ONGs, igrejas e entidades de ensino para a proposição de ações e projetos voltados para egressos e apenados; além da criação do SUSP – Sistema Único de Segurança Pública, e de uma Política e um Plano Nacional de Segurança.

Com o Conselho Nacional de Justiça e o STF, desenvolvemos três ações cruciais para retirar o sistema prisional da desordem e obscuridade em que se encontra imerso. Transferimos para o Conselho um total de 90 milhões de reais para realizar a biometria de toda a população carcerária existente, a digitalização e informatização de todos os processos de execução penal do pais – mais de 2 milhões. E a instalação, funcionamento e/ou fortalecimento das centrais de penas alternativas.

Porém há muito mais a se fazer para que o sistema prisional brasileiro, hoje nas mãos e sob o controle das facções, deixe de ser a oficina do diabo que leva medo, terror, violência e morte as ruas de nossas cidades. Uma sociedade indefesa rumo a barbárie ameaça, no limite, a própria democracia.

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Tendência indica que próxima grande rebelião prisional pode ocorrer em breve https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/11/09/tendencia-indica-que-proxima-grande-rebeliao-prisional-pode-ocorrer-em-breve/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/11/09/tendencia-indica-que-proxima-grande-rebeliao-prisional-pode-ocorrer-em-breve/#respond Fri, 09 Nov 2018 13:03:50 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/11/15414528535be0b435bbe17_1541452853_3x2_md-150x150.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=400 Passadas as eleições e começada a montagem das equipes governamentais que irão cuidar, nos estados e no Governo Federal, da coordenação do sistema de segurança pública e de justiça criminal, é hora de descer do palanque e se dedicar aos riscos reais e imediatos. Se olharmos o que tem ocorrido nos últimos anos e considerarmos as declarações do novo governo de Jair Bolsonaro prometendo o fim da progressão de regime de presos, é fundamental que as autoridades considerem que uma grande rebelião nos presídios brasileiros pode ocorrer entre o Natal e o meio de janeiro.

Desde as cenas abomináveis de Pedrinhas, em janeiro de 2014, quando presos filmaram decapitações de inimigos, o país tem presenciado recorrentes rebeliões e mortes em presídios sempre no começo de cada ano, sem que maiores soluções tenham sido endereçadas.

O ápice deste processo deu-se em 2017, com 56 mortes nos dois primeiros dias do ano no Compaj (Complexo Penitenciário Anísio Jobim), em Manaus. Ainda na primeira semana daquele ano tivemos 33 mortes no presídio de Monte Cristo, em Roraima e, menos de 10 dias depois, a rebelião de Alcaçuz, no Rio Grande do Norte, que resultou em 26 mortes.

Já em São Paulo, em meio às informações de que existiria um plano de resgate de chefes do PCC, equipes da Rota, tropa especializada da Polícia Militar de São Paulo que tem como missão atuar em operações de “contraguerrilha urbana”, estão recebendo treinamento para o uso de armamento de guerra em operação no interior do estado. Porém, o que seria sinal de união de esforços e trabalho preventivo, mostra-se também fonte de preocupação, já que revela que planos de contingência existem, mas muito focados na ideia de que basta partir para o ataque.

Prova disso é que, ao perceberem a presença de drones sobrevoando os presídios, viaturas da ROTA os associaram ao PCC e iniciaram perseguiram na tentativa de abatê-los, mas os policiais perderam o contato com os aparelhos na cidade vizinha de Caiuá.

No afã de mostrar força e poder bélico, os dados públicos indicam que o Estado desconsiderou nos levantamentos de inteligencia que a sofisticação do crime organizado hoje no país poderia, sem grandes teorias conspiratórias, envolver recursos tecnológicos e táticos que tão somente estejam “testando” capacidade de resposta do Poder Público. Os policiais não estavam equipados para bloquear os sinais dos drones e/ou não consideraram que estes equipamentos poderiam ser “iscas” para mapear tempo de reação e mobilização das forças de segurança.

E, em meio a todo este cenário e às promessas eleitorais do governo Jair Bolsonaro de acabar com a saídas temporárias e endurecer a progressão de regime para líderes de facções, Sérgio Moro, indicado para ser o Ministro da Justiça e da Segurança Pública, deu ontem (8) declarações vagas sobre o sistema prisional. Ainda no plano das platitudes, ele defendeu a criação de vagas e criticou o “tratamento leniente para crimes praticados com extrema gravidade, caso de homicídio qualificado“. Dito desta forma, poucas pessoas serão contra. O drama é que, em uma das versões do provérbio alemão, “o demônio mora nos detalhes”.

O exemplo que Sérgio Moro escolheu para justificar sua posição revela, de um lado, que o futuro ministro está chegando e corretamente está tomando pé da situação e dos desafios. Por outro, é importante alerta-lo que políticas públicas de segurança não são sinônimo de políticas criminais e penitenciárias apenas, pois para além da interpretação jurídica e doutrinária das leis, o sistema de justiça e segurança pública precisa de gestão e de governança. O combate ao crime organizado exige muito mais do que direito penal e processual penal; exige direito administrativo e novas doutrinas e estratégias de segurança pública, que contemplem aperfeiçoamento da capacidade de investigação e de repressão qualificada de crimes e da violência.

Olhando os homicídios citados por Moro, enquanto a população prisional brasileira mais que dobrou entre 2005 e 2016, segundo dados do Depen (Departamento Penitenciário Nacional), os presos por homicídios mantiveram uma tendência de cerca de 11% do total de pessoas presas no país. Ou seja, o sistema prisional está em crise mas não é porque estamos prendendo mais homicidas ou autores de crimes bárbaros e graves.

Aliás, o Brasil vive um enorme paradoxo nesta seara, já que temos altas taxas de impunidade para crimes violentos e, ao mesmo tempo, prendemos muito mal e atolamos as prisões com pessoas detidas em flagrantes, quase sempre jovens e negros das periferias, envolvendo drogas. Só que o que tem mais apelo eleitoral e midiático é prometer medidas legislativas duras, mesmo sabendo que elas só atingirão um pequeno pedaço do problema e muito provavelmente não incidirão sobre a ineficiente arquitetura federativa e republicana (relação entre Poderes e órgãos de Estado como as polícias e os MP).

Hoje gastamos recursos policiais, prisionais, dinheiro e tempo com situações que, concretamente, poderiam ter tratamentos alternativos para que, de fato, o medo e a violência que assolam a população fossem priorizados e crimes bárbaros investigados e punidos. Estudo do Instituto Sou da Paz indica que metade das ocorrências policiais de tráfico de maconha do estado de São Paulo envolve pessoas que portam, no máximo, 40 gramas da erva. A quantidade é equivalente a dois bombons. Enquanto policiais passam horas envolvidos na burocracia de registro e processamento destes delitos, estupradores, latrocidas e homicidas vagam à procura de suas próximas vítimas quase que impunimente.

Mas dificilmente o novo Ministro irá pautar um debate sobre política de drogas, mesmo quando nos EUA esta discussão avança em ritmo acelerado. O tema é tabu e iria contra uma das bandeiras eleitorais do presidente eleito. Aqui quem faz debate sobre a racionalidade e os impactos das políticas sobre drogas ainda é taxado de ser contra a família e de ser apologista ao uso de substâncias ilegais, sendo inclusive ameaçado.

Para além do discurso moral sobre as drogas, o crime organizado não será vencido apenas com metralhadoras .50 e com revisões para se aumentar o rigor penal. Não minimizo que medidas pontuais nesta direção possam ser parte de uma política de segurança pública mais integrada e inteligente, que contemplem a coordenação de múltiplas esferas de governo, instituições e Poderes. Investimentos em inteligência financeira, evidências, monitoramento e em governança são fundamentais.

Pouco falamos que quase toda a legislação que organiza e estrutura o sistema de segurança e justiça criminal do país é anterior à Constituição Federal de 1988 e que estamos atuando do mesmo modo que nossos bisavós e avós enquanto o crime se moderniza, usa drones, redes sociais e se comunica por meio do Whatsapp e outros aplicativos. Mas insistimos no modelo tradição, família e propriedade, que veda inovações e fica hermeticamente ensimesmado em valores morais e não constrói uma ética pública baseada na cidadania e na liberdade.

Em resumo, a força faz parte da atividade de segurança pública e não deve ser demonizada a priori. Mas somente músculos e valentias retóricas não ganham guerras ou salvam a Nação. E por falar em tradição, ainda dá tempo de irmos contra a corrente e o “Sistema” e evitarmos que as rebeliões continuem a fazer parte da cena política no início de 2019.

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A influência do PCC: o exemplo das facções criminais do Rio Grande do Sul https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/09/22/a-influencia-do-pcc-o-exemplo-das-faccoes-criminais-do-rio-grande-do-sul/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/09/22/a-influencia-do-pcc-o-exemplo-das-faccoes-criminais-do-rio-grande-do-sul/#respond Sun, 23 Sep 2018 02:09:42 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/09/16211670-150x150.jpeg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=285 Texto de Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo e Marcelli Cipriani, da PUC/RS, que busca mostrar a influência do modelo PCC na organização das facções criminais no Rio Grande do Sul e que serve de exemplo e alerta para pensarmos estratégias mais eficientes de repressão qualificada do crime organizado no Brasil.

***

Na terceira galeria do pavilhão F, dentro da Cadeia Pública de Porto Alegre, celulares apitavam. Em mensagem recebida pelos presos dos Bala na Cara, principal facção criminal gaúcha, a foto de um indivíduo estava acompanhada da pergunta cuja resposta selaria o seu destino: alguém conhece esse cupinxa? Momentos antes, o sujeito transitava pelo bairro Bom Jesus – reduto da facção na capital – quando foi interpelado por integrantes do grupo que estranharam sua presença na região.

Levado a uma residência e mantido sob cárcere privado, seria então fotografado para que a imagem circulasse pela galeria prisional. Sua vida, dali em diante, dependia de uma identificação. Se ninguém soubesse de quem se tratava, provavelmente ele seria um contra, um inimigo que tinha de ser eliminado.

Embora as relações criminais na capital gaúcha venham sendo pautadas, a partir de meados dos anos 90, por grupos em conflito, a generalização dessas dinâmicas entre o binômio “aliados ou contras” atingiram, recentemente, níveis críticos. Em 2016, como reação à expansão forçada dos Bala na Cara – também apelidados de “toma bocas” pela violência com que se apropriam dos pontos de comércio ilícito alheios – constituiu-se o “embolamento” dos Antibala.

Em outros termos, se formou um agregado de grupos menores, capitaneados pelos V7, com o objetivo de antagonizar com os Bala, que vinham se espraiando em ritmo veloz desde a década anterior. Nos meses que se seguiram ao surgimento da aliança, um ciclo de ataques e de execuções explodiu em bairros onde, no município, esses agrupamentos estavam presentes.

Diferentemente do que ocorre com o PCC em São Paulo, as dinâmicas do tráfico de drogas em Porto Alegre – na prisão e fora dela – são essencialmente pautadas pelo controle territorial, sujeito a uma multiplicidade de grupos. Atualmente, existem sete deles, de dimensões variáveis, distribuídos entre doze galerias da Cadeia Pública: os Manos, os Bala na Cara, os Abertos, a Conceição, a Farrapos, os Unidos Pela Paz e, mais recentemente, os V7.

Cada uma das galerias, que representa o andar de um pavilhão, agrega indivíduos oriundos das áreas em que a facção tem influência. É delas que partem as determinações sobre aliados e contras no município, cada vez mais afuniladas entre três principais frentes: Manos, Balas na Cara e Antibalas.

O primeiro, em consonância com o Comando paulista, procura se distanciar da ideia da guerra, privilegiando as negociações no lugar do uso da violência física. Os dois últimos, por sua vez, estão envolvidos em incessantes ofensivas recíprocas nas periferias da capital – não só para a tomada de pontos de comércio, mas também para a demonstração de poder.

Quanto mais extenso é o domínio de um grupo nos bairros urbanos, maior será o contingente de presos a ser levado para o seu espaço na prisão. Em contrapartida, a alocação de indivíduos nas galerias dos grupos abre espaço para o estabelecimento de novas relações comerciais, com a ampliação do abastecimento das bocas que passam a estar associadas a partir dos presídios.

Em paralelo, a fim de assegurarem que, caso encarcerados, terão onde ficar, integrantes de grupos menos expressivos precisam, na rua, fazer acordos comerciais ou estratégicos com grupos maiores – que também são os que têm melhores condições de oferecer proteção através do apoio de pessoal e armamento. Com isso, seu poder é fortalecido, a partir dos fluxos recíprocos entre a prisão e a rua.

O PCC tem como característica conferir autonomia aos indivíduos no estabelecimento de negócios no crime, dado que as atividades do grupo são de outra ordem, estando associadas a um pertencimento coletivo. Nesse sentido, suas relações também são pautadas por um discurso de união contra a opressão do Estado, e pela organização para o seu enfrentamento. Nos grupos de Porto Alegre, por sua vez, essa dimensão discursiva não foi mobilizada em torno de um ideal de emancipação, enfrentamento ou de uma tomada de consciência coletiva.

Ainda, a conjunção entre diferentes pontos de comércio que conforma os grupos está, em regra, associada com a fidelidade quanto ao fornecimento dos produtos comercializados: ou seja, a droga vendida em bocas dos Manos ou de seus aliados não pode ter sido provida pelos Bala, e vice-versa. Assim, a pluralidade de agrupamentos em disputa corrobora com a intensificação da violência, e a imposição de alinhamento interno para a compra de mercadorias acelera a corrida por controle de bocas.

Por fim, o teor da identidade partilhada entre seus membros – que, em parte relevante, está marcado pela oposição aos rivais – afasta qualquer perspectiva de pacificação das relações criminais ou de associação em nome de um inimigo comum.

Em reportagem recente, o jornalista Humberto Trezzi, do Jornal Zero Hora, apresenta documento do Ministério Público paulista, em que consta a informação de que o PCC já teria 729 “simpatizantes” no estado do Rio Grande do Sul. Segundo a matéria, que também utiliza como fonte o jornalista Bruno Paes Manso, do Núcleo de Estudos da Violência da USP, o grupo paulista teria firmado alianças com grupos gaúchos adversários dos Bala na Cara. Eles assumiriam a posição de “primos” e não de “irmãos” – aliados, mas não necessariamente batizados.

Com a transferência, no ano passado, de 27 presos para presídios federais localizados em outros estados – muitos deles, em posição de liderança nas facções gaúchas – é possível que essas aproximações tenham sido aprofundadas, também vindo a trazer novos contornos aos negócios ilícitos locais. De acordo com Camila Dias e Bruno Manso, em livro recentemente publicado, um membro do PCC caracterizou o sistema penitenciário federal de “comitê central do crime” – dado que reúne indivíduos oriundos de diferentes estados e grupos criminais, abrindo espaço para o estabelecimento de alianças e rupturas.

O domínio de facções criminais no mundo do crime é efeito da política criminal adotada no Brasil nas últimas décadas. Com a superlotação carcerária, motivada pela cada vez maior criminalização de pequenos traficantes e assaltantes, que se dá pelo predomínio das prisões em flagrante, em detrimento da investigação criminal, que poderia trazer resultados mais direcionados, por exemplo, para a responsabilização criminal dos autores de homicídio, o ambiente prisional se tornou um espaço privilegiado para as articulações entre grupos ligados aos mercados ilegais.

Para manter a ordem em presídios superlotados, o Estado abre mão de exercer um controle mais rígido, e autoriza a organização interna de grupos que atuam foram das prisões. A Cadeia Pública de Porto Alegre é o exemplo extremo, dentro da qual as alas estão há muito tempo sob o domínio das facções.

Embora a influência do PCC ainda seja pequena no Rio Grande do Sul, seu modelo já é replicado: se o Estado não atua de forma lícita, impondo uma dinâmica de violência policial nas periferias urbanas e de descontrole no cárcere, o mundo do crime se mobiliza para assegurar um mínimo de previsibilidade e segurança para seus integrantes, garantindo renda e proteção, mesmo que nas precárias condições de bandos criminais em disputa.

Violência policial, encarceramento duro e abusos praticados por agentes do Estado são o solo fértil no qual eles se disseminaram. Reverter esse quadro implicaria evidentemente adotar um outro modelo de segurança pública, com mais inteligência, foco na violência letal, profissionalismo e tratamento igualitário pelo Estado. Este o desafio colocado para os governantes eleitos em outubro. Ou o aprofundamento da barbárie.

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