Faces da Violência https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br O que está por trás dos números da segurança pública Tue, 23 Nov 2021 18:56:47 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Vida, um compromisso ético inadiável https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/11/04/vida-um-compromisso-etico-inadiavel/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/11/04/vida-um-compromisso-etico-inadiavel/#respond Mon, 04 Nov 2019 14:04:30 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/11/Tuca-Vieira-Folhapress-320x213.png https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1155 Com Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP

Todas as pessoas têm o direito de sair de casa, andar nas ruas, ir ao trabalho ou à escola sem levar tiros dos helicópteros da polícia.Tamanha obviedade nem deveria estar em pauta, considerando que até os menos informados sabem que a Constituição garante o sagrado direito à vida. Mas os disparos do céu contra a própria população fazem parte das estratégias policiais no Rio de Janeiro desde o começo do ano, sem que nenhuma instituição consiga barrar este crime.

Até setembro deste ano, 21 operações policiais foram feitas usando helicópteros como plataforma de tiro no estado, segundo dados da plataforma Fogo Cruzado. Quando esses sobrevoos ocorrem, creches e escolas precisam ser fechadas. Moradores tem que faltar ao trabalho. Crianças são pegas no meio do fogo cruzado e precisaram se esconder para não serem atingidas. Apesar das escandalosas omissões institucionais, moradores de bairros pobres do Rio de Janeiro e do Brasil continuam apostando no Estado de Direito e lutando com instrumentos democráticos para não serem vítimas de autoridades que acreditam no extermínio e na morte como solução política.

Essa luta vem sendo articulada pela sociedade civil de comunidades pobres que vivem esse drama da violência, e que nos últimos anos estão conquistando vitórias importantes.

As Redes da Maré, por exemplo, no Rio de Janeiro, onde vivem 139 mil pessoas, começaram a trabalhar na região com cursinhos preparatórios que já ajudaram a formar mais de 1.200 universitários no bairro. Em 2017, diante das mortes recorrentes e dos abusos que eram promovidos pelas incursões policiais, se articularam com a Defensoria Pública do Rio de Janeiro e entraram com uma ação civil pública para limitar os excessos. Uma liminar foi obtida para exigir o respeito aos direitos básicos da população, como identificação de policiais, ingresso somente durante o dia, acompanhamento de ambulância para o caso de haver feridos. Essas exigências contribuíram para a diminuição das mortes no bairro e do número de aulas canceladas nas escolas.

As políticas públicas devem promover a vida e não o extermínio e a guerra contra a própria população. Esse consenso vem sendo uma das bandeiras políticas da sociedade civil do Jardim Ângela desde 1996, quando o bairro foi apontado como o mais violento do mundo em um estudo feito pela Organização das Nações Unidas. 

Nos anos que se seguiram, eles passaram a organizar uma caminhada anual, no dia de Finados, e montaram o Fórum em Defesa da Vida com mais de 200 entidades do território. Depois de muita luta, os resultados começaram a aparecer. Um hospital público e moderno chegou à região, polícias educacionais, de saúde e de assistência social passaram a ser acompanhadas de perto. Três bases policiais comunitárias foram criadas.

Essas lutas contribuíram para mudar a região e a cidade de São Paulo, que se tornou a capital brasileira com menor taxa de homicídios.

No último dia 2, no dia dedicado a lembrar dos nossos mortos, outros estados, periferias e quebradas se juntaram ao Jardim Ângela para marchar e promover atos em defesa de políticas públicas que promovam a vida. Esses atos ocorrem em oito estados brasileiros, como Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco, Espírito Santo, Acre, Minas Gerais, Brasília e São Paulo. Houve slans, movimentos organizados por mães, saraus, caminhadas, construção de memoriais, entre outras atividades. São manifestações culturais e articulações criadas nas periferias para ligar com o processo virulento de violência que muitos desses territórios acabaram vivenciando.

A ideia do movimento foi dar um primeiro passo para que as periferias de todo o Brasil possam trocar experiências e estratégias de luta para cessar esses ciclos de homicídios e levar aos territórios que mais sofrem com a violência políticas públicas que promovam a vida. Não se trata de um desafio utópico, mas é preciso acertar a estratégia e o foco, considerando que 2,1% dos municípios concentram 50% das mortes e que 10% dos bairros dessas cidades, também registram a metade das vítimas, segundo dados do Atlas da Violência, publicação do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do IPEA.

Essa luta em defesa do Estado de Direito e por políticas que promovam a vida nos bairros mais atingidos é urgente, considerando a mentalidade genocida de algumas autoridades despreparadas e autoritárias. Se incentivar a violência é uma forma de corromper a sociedade em nome de projetos de Poder, valorizar a vida é compromisso ético inadiável. 

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Sergio Moro amplia operações da PF e reduz convênios com estados e municípios https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/06/15/sergio-moro-amplia-operacoes-da-pf-e-reduz-convenios-com-estados-e-municipios/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/06/15/sergio-moro-amplia-operacoes-da-pf-e-reduz-convenios-com-estados-e-municipios/#respond Sat, 15 Jun 2019 14:30:04 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/06/Moro-e-Bolsonaro-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=916 Faz nove dias que o Brasil foi abalroado pelos vazamentos de mensagens atribuídas aos procuradores do Ministério Público Federal em Curitiba e ao ex-Juiz Sergio Moro, pelo site The Intercept, e meio que navega à deriva e à mercê das correntezas da política. Como bem ilustrou Luis Francisco Carvalho Filho em sua coluna na Folha de hoje (15), o país vai caminhando de escândalo em escândalo para o abismo do populismo e da devastação ética.

Luis Francisco resumiu com perfeição o que é integrar o governo de Jair Bolsonaro, “político profissional que convive com milicianos, admira torturadores, […] e conspira contra povos indígenas, gays e florestas”. Segundo o colunista, integrar um governo com este perfil não é ambição de humanistas, pois temos um governo incapaz de lidar com o significado da Constituição e das cláusulas pétreas.

O que tem emergido para a superfície da relação entre justiça e política é extremamente preocupante para quem, independente das preferências partidárias e eleitorais, está preocupado com o devido processo de um Estado Democrático de Direito. Porém, para quem se dedica a pensar tecnicamente no processo de formulação e implementação de políticas mais eficientes de segurança pública, o cenário também é de expectativa e cautela.

Isso porque, se olharmos os números disponíveis, o Governo Federal, no âmbito do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, de Sergio Moro, divulgou na quarta-feira (12) a continuidade da queda dos homicídios iniciada no começo de 2018 e que, só primeiro bimestre de 2019, atingiu 23%. E, ao contrário do que matraqueiam os adeptos cegos ou interessados, o Governo Federal não é o responsável por esta queda e, pior, não tem a menor ideia do que ocorre no país para justificá-la.

Quem trabalha seriamente na área sabe que homicídio é um fenômeno multicausal e que múltiplas variáveis interferem no movimento e na tendência deste tipo de ocorrência. Na esfera estatal, não existe mágica, mas trabalho e dedicação em torno da melhoria das políticas públicas da área. E, indiscutivelmente, os estados e o Distrito Federal ocupam um papel-chave na segurança pública. Se não são os únicos responsáveis pelo setor, são eles que gerenciam as polícias Civil e Militar, encarregadas de manter a ordem pública e investigar crimes e delitos.

Temos 54 polícias estaduais que atuam no limite de suas capacidades institucionais, muitas delas sucateadas e carentes de investimentos. E isso em um contexto em que recursos para as polícias estão, dadas as condições econômicas do país, cada vez mais escassos. Com exceção de São Paulo, todas as demais Unidades da Federação dependem quase que exclusivamente de recursos federais para poderem fazer investimentos e adquirirem novos equipamentos e tecnologias.

E o que faz o Ministério da Justiça? Sobrecarrega as polícias estaduais com demandas para que efetivos sejam alocados na Força Nacional e, o que seria uma contrapartida para esse envio de homens e mulheres, praticamente não repassa recursos para as Unidades da Federação por intermédio de convênios (é necessário conferir repasses diretos fundo-a-fundo). Levantamento inédito do Fórum Brasileiro de Segurança Pública identificou que, em 2019, o MJ assinou 234 convênios com estados e municípios, sendo 228 no dia 02 de janeiro, em um claro indício de que eram parcerias que estavam sendo negociadas e analisadas na Gestão Temer. De lá para cá, somente 6 convênios foram assinados.

E, mesmo considerando que 234 convênios foram assinados, nota-se que foram empenhados apenas cerca de R$ 168 milhões do Fundo Nacional de Segurança Pública, principal fonte de parcerias com as polícias estaduais, mas quase nenhum dinheiro desse valor ainda foi liberado. Ainda segundo o levantamento, que é preliminar, no MJ como um todo, foram empenhados cerca de R$ 355,4 milhões para os estados mas liberados irrisórios R$ 857,7 mil.

Em paralelo, organiza e coordena nacionalmente operações integradas das Polícias Civis, o que é positivo, mas apenas dá suporte de inteligência pois esta é uma atividade em que mobiliza quase nenhum recurso federal e o mérito maior deveria caber às polícias locais. O mesmo ocorre com o SINESP, que é o sistema nacional de dados e é um consórcio pactuado entre União, estados e Distrito Federal. Em seu anúncio, no começo do ano, os secretários estaduais não estavam presentes e todos os louros ficaram apenas para o Governo Federal.

E, ainda em fase de planejamento e cujo anúncio deve ocorrer por volta do dia 26/06, finaliza um plano de enfrentamento aos crimes violentos (o planejamento da Senasp (Secretaria Nacional de Segurança Pública), com detalhamento de ações, matriz de responsabilidades e definição de enfoques merece aqui elogios, pois ao contrário de outras ações improvisadas está sendo feito com grande profissionalismo. Importante saber se teremos métricas e previsão de mecanismos de monitoramento e avaliação).

No plano das atribuições exclusivamente federal, zona em que o Ministro Moro sente-se mais confortável pois não exige negociar prioridades com Governadores e Secretários Estaduais, levantamento do Professor Rogério Arantes, da Universidade de São Paulo, revela que houve um incremento de 43,3% no número de operações noticiadas pela Polícia Federal entre 01 de janeiro e 14 de junho de 2019 em relação ao mesmo período de 2018. Até ontem, a PF havia noticiado 427 operações em 2019, enquanto em 2018, no mesmo período, tinham sido noticiadas 298.

O problema aqui é que, da mesma forma como as polícias estaduais, esse crescimento é feito com o mesmo efetivo existente na PF faz anos e só recentemente o Presidente Bolsonaro anunciou a convocação de quase 1 mil novos policiais aprovados em concurso, que ainda precisam passar pela Academia Nacional de Polícia antes de serem alocados nas unidades da PF pelo Brasil. A PF está com sua capacidade operativa comprometida e tendo que dar conta das opções e políticas de segurança do Governo Bolsonaro que a sobrecarregam.

Enquanto isso, para a população, o Governo enviou um pacote de medidas legislativas que funciona mais como lance de marketing e diversionismo ao ser intitulado como “anticrime”, uma vez que quem for contra ele seria a favor da criminalidade, o que é uma estultice completa – há formas e formas legítimas de se combater o crime e o Congresso tem legitimidade e voto de propor alterações. Isso para não falar dos Decretos sobre Armas, que têm várias inconstitucionalidades já apontadas por diferentes segmentos, porém o STF parece intimidado a se manifestar e sustar ao menos o último, que autoriza porte generalizado quando uma lei o restringe.

Em suma, não existem ações ou políticas federais em curso que possam ser reconhecidas como responsáveis pela queda recente nos índices de criminalidade e violência urbana no país. Há esforços e trabalho, mas há sobretudo espuma e pirotecnia política. As polícias estão abandonadas à própria sorte e os estados precisam se virar caso queiram manter a redução da violência. O Ministério da Justiça e da Segurança Pública ainda não disse ao que veio e deu sorte de o momento ser de queda da violência. Mas, se nada for feito, a violência ainda é alta e voltará a crescer. E, politicamente, mais esta conta recairá nas costas do Ministro Sergio Moro.

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Sinal dos tempos: quase 1/5 dos seguidores de Sergio Moro no Twitter seriam robôs https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/04/28/sinal-dos-tempos-quase-15-dos-seguidores-de-sergio-moro-no-twitter-seriam-robos/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/04/28/sinal-dos-tempos-quase-15-dos-seguidores-de-sergio-moro-no-twitter-seriam-robos/#respond Sun, 28 Apr 2019 15:06:10 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/04/Twitter-Moro-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=795 Em uma semana em que a mídia dá mostras da vitalidade do jornalismo de dados e revela a queda dos homicídios dolosos, o crescimento das mortes decorrentes de intervenção policial, bem como a tragédia do nosso sistema prisional, o Brasil ficou, mais uma vez, tomado pela cortina de fumaça ideológica que o Governo de Jair Bolsonaro insiste em propagar.

São tantas as frentes de batalha que são abertas todas as semanas que os temas fundamentais de políticas públicas vão sendo esquecidos e ficam, em geral, em segundo plano, sobretudo nas redes sociais. Não discutimos como identificar boas práticas governamentais e promover avanços na melhoria da Segurança, da Saúde, da Educação, da geração de Emprego e Renda, da Economia, da Assistência Social, do Meio Ambiente, dos Direitos Humanos, entre outros temas.

Ficamos reféns da agenda bolsonarista que discute o bem contra o mal. Somos reféns da ideia equivocada de que tudo o que existe é ruim e que agora a administração Bolsonaro precisa “resgatar” o Brasil da “corrupção da esquerda” e da “depravação moral” em que fomos submersos. A gestão Bolsonaro está conseguindo avançar aceleradamente na desconstrução da institucionalidade das políticas públicas estabelecida pela Constituição de 1988, que se assenta no pressuposto de que devemos pensá-la a partir da ideia da universalidade de direitos e reconhecimento das identidades e diferenças.

Engana-se quem acha que os conflitos internos da coalizão que nos governa está impedindo – ou ao menos retardando – a reconfiguração política e institucional do Brasil.

Na ausência de uma ética pública baseada na não violência e na cidadania, tudo o que não é espelho é visto como imoral (aliás, ética é um campo da Filosofia e que agora também é combatido). Atualmente, ao que tudo indica, o governo Bolsonaro está conseguindo estabelecer, mesmo que no contraponto contínuo, o frame (as fronteiras) do debate público, em muito apoiado pelo pretenso papel democrático das redes sociais.

Diz a lenda que as redes sociais são territórios de democratização da informação, aparentemente sem donos e leis. Mas, de fato, elas são tomadas e manipuladas pelos senhores da guerra ideológica que comandam exércitos de robôs e buscam fortalecer posições, interesses econômicos e porta-vozes de seus projetos de Poder.

Análises conduzidas por João Akio, no Fórum Brasileiro de Segurança Pública, trazem dois exemplos que resumem o argumento aqui exposto. A primeira mostra que na semana da divulgação da prisão dos acusados de matar Marielle Franco, que foi alçada pela ultra direita a símbolo do que deve ser combatido em termos morais e políticos, houve um esforço de diminuir o impacto da notícia relacionando-a com questões sobre o atentando sofrido pelo Presidente Jair Bolsonaro e sobre o assassinato do ex-prefeito de Santo Andre, pelo PT, Celso Daniel.

Já a segunda análise, que teve o caráter exploratório e objetivou testar técnicas e algoritmos disponíveis para análise do comportamento das redes sociais (que não são isentos e estão sujeitos a distorções que exigem conhecimentos das Ciências Humanas, como Sociologia e Filosofia, para que não se tornem instrumentos totalitários), revelou como as autoridades públicas precisam ficar atentas.

Usando a aplicação disponível no site https://mikewk.shinyapps.io/botornot/, criada por Michael W. Kearney, professor da Escola de Jornalismo do Instituto de Informática da Universidade do Missouri, foi possível calcular a probabilidade de robôs serem seguidores do Ministro Sergio Moro. Com base nesta técnica, analisamos 583.171 seguidores do ministro em 09/04/2019 e, assumindo 75% de probabilidade de respostas positivas e refazendo a conta três vezes, com amostras diferentes, é possível dizer que ao menos 17,3% dos seguidores de Moro naquela data eram bots.

Ou seja, quase 1 em cada 5 seguidores do perfil do Ministro Sergio Moro naquela data tinham as características de perfis robotizados. Em geral, esse perfis são utilizados para combater ou ampliar determinadas causas ou propostas e, por isso, todas as cautelas são necessárias quando se discute “apoios” ou “tendências” medidos pelas redes sociais. Elas podem conter vieses difíceis de serem filtrados e ponderados.

O debate político não pode e não deve se resumir a uma guerra de hashtags ou likes; não podemos resumir a vida política do país aos ecos e repercussões oriundas da manipulação da guerra de narrativas.

Mais do que nunca, política pública deve ser baseada em evidências, estudos de impacto e monitoramento. O planejamento rigoroso e a observância de uma ética pública plural e democrática podem ser aliados poderosos contra as tentações autoritárias da nossa histórica cultura política violenta e pouco afeita ao contraditório. As vozes da diferença não podem ser caladas.

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Violência, anti-intelectualismo e ética na esfera pública https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/01/08/violencia-anti-intelectualismo-e-etica-na-esfera-publica/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/01/08/violencia-anti-intelectualismo-e-etica-na-esfera-publica/#respond Tue, 08 Jan 2019 17:13:51 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/01/15463919665c2c119e26655_1546391966_3x2_rt-150x150.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=550 Com Sérgio Adorno. Professor Titular do Departamento de Sociologia da USP. Coordenador do Núcleo de Estudos da Violência.

Ao acompanharmos as recentes declarações dos novos governantes, amplamente veiculadas pela mídia, somos levados a crer que o ano começa sob a égide de flagrante anti-intelectualismo. Trata-se de um comportamento político que revela desconfianças em argumentos racionais, despreza evidências empíricas, coloca sob suspeição quaisquer afirmações de natureza científica capazes de questionar fé e crenças.

Toda uma série de outros corolários associam-se a tal comportamento político, como sejam a recusa a aceitar a pluralidade das formas de organização social da vida, consagradas em nossa Constituição bem como a construção social dos “inimigos da pátria”, considerados assim todos os que manifestam visões de mundo distintas daqueles que hoje ocupam as posições de comando e decisão política no país.

Como toda visão de mundo e comportamento político que advogam a unidade e a homogeneidade, contra a diferença e a diversidade, as contradições vão se sucedendo e se tornando explícitas. Tome-se, por exemplo, o caso da segurança pública e da defesa pessoal. Os motivos apresentados para sustentar a pertinência da posse e uso de armas remetem à defesa inconteste dos direitos individuais.

No entanto, não há qualquer contestação séria e consistente dos argumentos científicos, disseminados em copiosos estudos, que demonstram relação de causalidade entre acesso individual às armas de fogo e a maior prevalência de homicídios. Portanto, para garantir a ordem pública, una, indivisível, homogênea, propõe-se justamente a predominância dos interesses individuais em segurança pessoal contra a segurança pública de maior número.

As reações à crise na segurança pública do Ceará são um outro exemplo, na medida em que a cobrança histórica de envolvimento do governo federal na área passa a ser vista, por vários segmentos conservadores, como uma conspiração contra o atual governo – os vários textos do Faces da Violência em 2018 já indicavam esta questão, muito antes das eleições. A dimensão histórica parece ser deixada de lado e só valer os argumentos do imediato.

E as contradições não param. Na fala dos governantes, o nacionalismo deve prevalecer sobre o “globalismo”. Como sugerem, “o Brasil acima de tudo”. Mas não parece estranho que, em nome da defesa desse nacionalismo, pretenda-se justamente apoiar a instalação de uma base militar americana em território nacional? Tal decisão sinaliza em sentido contrário, isto é o país não estaria em condições de assegurar seu território e de manter a soberania nacional. Por certo, tal pressuposto está em confronto com as tradições das Forças Armadas no Brasil e desconectado com as reais ameaças existentes. Diante da repercussão, em aparente gesto de bom senso e racionalidade política, o governo parece estar abandonando esse propósito.

Mais do que isso, se olharmos os dados disponíveis, a maior e mais imediata ameaça não é externa. Trata-se da normalização da violência letal, que mesmo apresentando uma queda significativa nos primeiros nove meses de 2018, em relação a igual período de 2017, ainda nos faz ser um dos países em que mais se mata no mundo.

Bradando contra ideologias e declarando guerra a todos que não se subjugam à sua visão de mundo, o governo Bolsonaro é reflexo de um problema bem mais profundo que afeta o Ocidente: a conturbada relação entre ética, moral e violência na esfera pública.

Ética e moral representam dois universos interligados, porém distintos. A ética diz respeito às normas que devem orientar a conduta de uns em relação aos outros, no sentido de respeitar as diferenças e os direitos adquiridos, promover a solidariedade e cooperação, evitar desfechos violentos nos conflitos interpessoais, reconhecer a justiça.

Já a moral está relacionada ao universo de valores que tornam certos hábitos reconhecidos como legítimos e imperativos. Abrange os comportamentos julgados desejáveis e esperados de uns em relação aos outros.

No âmbito da ética, deve-se considerar tantos os códigos quanto o modo como eles são aplicados segundo interpretações subjetivas dos atores. As políticas públicas, em essência, dependem de uma ética pública baseada no respeito às leis, ao jogo democrático e ao diferente. É nela que as polícias devem basear suas condutas e protocolos de ação.

No caso da moral, trata-se de ajustar princípios gerais de conduta (não matar, não humilhar terceiros, etc.) aos costumes e hábitos vigentes em uma sociedade em momento determinado de sua história. Se a moral pode ser pensada tanto em termos de particularismos (dos clãs, dos grupos sociais, de grupos religiosos) com a emergência do mundo moderno, ela se afirma mais em mais em termos universais. Não sem razão, a centralidade dos direitos humanos na agenda política dos organismos internacionais.

Bem, o problema que queremos ressaltar é como pensar todas essas questões relativamente à violência. Parece-nos que, do ponto de vista ético, não é difícil encontrar justificativas para condenar o uso indiscriminado da violência. No entanto, do ponto de vista da moralidade privada e pública, os problemas aparecem. E, diante deles, a ponte entre os dois universos fica turva e a violência, não raro e para alguns segmentos da sociedade brasileira, passa a ser defendida moralmente como legítima mesmo sob contexto democrático.

Basta ver as promessas no campo da segurança defendidas pelo atual Presidente da República. Seu símbolo – a mão em formato de arma de fogo – parece traduzir sentimentos, ao que parece com grande repercussão social, de que o uso da violência para garantir ordem e autoridade é moralmente desejável e válido.

E isso ocorre em um ambiente em que mudanças sociais alteraram as relações entre classes sociais, entre gêneros, entre gerações, entre raças e etnias. Nele, a ordem social surge como esgarçada e o pânico moral ganha contornos ao redor das múltiplas configurações e demandas identitárias e de reconhecimento de direitos.

Diante das incertezas, trinca-se o imaginário social do Brasil como uma sociedade única, uniforme, integrada, internamente solidária. E, para resgatá-lo, só haveria duas alternativas contra esse mundo em fragmentação e sob permanente guerra cultural: a) a difusão de um pensamento conservador, até mesmo reacionário, do tipo do defendido por Olavo de Carvalho, que remete seus argumentos ao universo moral, como se este fosse a fonte mesma da verdade; b) e/ou a valorização do senso comum, este espaço carente de mediações entre o pensar e a ação; este espaço no qual prevalece a fake news em detrimento da informação e da evidência.

Evidências científicas e uma ética pública baseada no direito e nas leis são deslegitimadas como fonte de autoridade: tudo é tosco, instantâneo, colado no osso das coisas, sem pele ou veias de circulação. Nesse movimento, como diria acertadamente Hanna Arendt, o poder definha e, em seu lugar, emerge a violência, não apenas como desejo de ordem, mas também como substituição do poder; emerge a postura de guerra contra os pecadores e os inimigos da moral.

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