Faces da Violência https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br O que está por trás dos números da segurança pública Tue, 23 Nov 2021 18:56:47 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Passadas as eleições, a hora dos planos municipais de segurança https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/11/18/passadas-as-eleicoes-a-hora-dos-planos-municipais-de-seguranca/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/11/18/passadas-as-eleicoes-a-hora-dos-planos-municipais-de-seguranca/#respond Wed, 18 Nov 2020 18:03:13 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/11/17023268-320x213.jpeg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1587 As eleições foram uma boa oportunidade para discutir o papel dos municípios na Segurança Pública. Agora é hora de planejar as ações.

Arthur Trindade Maranhão Costa*

No último domingo (15/11), os brasileiros foram às urnas escolher os novos prefeitos e vereadores dos quase 5600 municípios do país. Como das últimas vezes, as eleições transcorreram num clima de tranquilidade e a apuração dos votos aconteceu dentro da lisura de costume. Mais uma vez pudemos dizer que foi uma festa da democracia.

A segurança pública esteve entre os principais temas do debate eleitoral, o que não chega a ser uma novidade. Desde os anos 2000, os municípios vêm aumentando sua participação na segurança pública. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, entre 2002 e 2019 verificou-se um crescimento de 286% no total de gastos com segurança pública, que saltaram de cerca de R$ 1,7 bilhões para R$ 6,4 bilhões. Entretanto, a participação municipal varia significativamente de acordo com o estado.

O aumento da participação municipal se deveu a três fatores. Primeiro, houve uma mudança da percepção do eleitorado com relação a responsabilidade pela segurança pública. Até a década de 90, questões relativas à segurança pública eram tratadas essencialmente como responsabilidade dos governadores de estados. A partir da década de 2000 este quadro se alterou. E, com isso, passou-se a cobrar maiores investimentos em segurança pública, reforma nas estruturas das polícias e implantação de políticas públicas mais eficientes.

Segundo, houve uma forte indução do governo federal para que os governos municipais se engajassem mais no tema. A partir de 2002, o Fundo Nacional de Segurança Pública e, mais tarde, o PRONASCI, passaram a transferir recursos para aqueles municípios que contassem com estruturas administrativas voltadas para segurança pública. Esse dinheiro, em certa medida, acabou, considerando que a União tem reduzido suas despesas com segurança pública – ainda segundo o Anuário do FBSP, entre 2018 e 2019, a União reduziu em 3,8% o gasto com a área.

A principal resposta dos prefeitos foi a criação das guardas municipais. O crescimento das guardas foi significativo. Segundo a Munic/IBGE, entre 1980 e 2015, último ano com dados disponíveis, o número de guardas municipais cresceu de 120 para 1081. Onde já existiam guardas municipais foram contratados mais efetivos e adquiridos viaturas e equipamentos.

Mas não só. Um terceiro fator precisa de atenção. Com a estagnação dos investimentos estaduais na área e com a necessidade de dar respostas à população, muitas cidades optaram por criar programas de bonificação e pagamento de horas de trabalho dos policiais estaduais em suas folgas. Em outras palavras, muitas cidades aumentaram seus gastos aportando recursos para a manutenção e ampliação do policiamento em seus territórios.  Não à toa, dos 5570 municípios existentes no país, 2423 declararam gastos com segurança pública em 2019.

Analisando as guardas municipais brasileiras, podemos distinguir pelo menos três funções desempenhadas por elas. Algumas seguem o modelo de guarda patrimonial. Estas guardas possuem atribuições bem delimitadas: defesa do patrimônio, do espaço público e proteção dos prédios municipais. Outras, atuam como se fossem polícias municipais. Estas guardas têm assumido as funções de policiamento ostensivo, substituindo as outras organizações policiais. Elas realizam o patrulhamento das ruas, buscando aplicar a lei aos comportamentos desviantes. Há também as guardas que atuam como força apaziguadora. Elas utilizam seu poder de polícia para administrar conflitos, prevenir crimes e solucionar problemas colocados pelo público. As atividades de repressão são raras e controladas.

Quanto à organização, embora os municípios tenham liberdade de estruturar suas guardas da forma que acharem conveniente, na prática eles seguem o modelo organizacional das polícias militares. Isso se deve aos processos de mimetismo aos quais estas organizações foram submetidas. Em muitos casos, os primeiros comandantes das guardas foram oficiais das polícias militares que acabaram por copiar as carreiras, os manuais e os protocolos utilizados pelas suas instituições de origem.

O papel dos municípios na segurança pública não se resume à criação das guardas municipais. Talvez a maior vocação dos municípios sejam as políticas de prevenção de violências. Alguns municípios desenvolveram políticas sociais de prevenção de violências muito bem-sucedidas. Especialmente onde estas iniciativas foram abrangentes e tiveram foco em áreas, grupos e situações de risco.

Mas, para implantar políticas abrangentes, foram elaborados planos estratégicos de segurança municipais, articulando as ações dos diversos órgãos e agências municipais, estaduais e até mesmo federais. Os planos também incluíam indicadores de acompanhamento e metas de desempenho, além de estabelecerem claramente as responsabilidades de cada um dos atores envolvidos na política pública.

Resumindo. Passada a festa da vitória, é hora de trabalhar e planejar as ações de segurança pública. Não basta contratar efetivos e comprar viaturas e equipamentos. É preciso elaborar planos estratégicos que definam claramente objetivos, metas e indicadores. Parabéns aos vencedores e boa sorte!

*Professor da UnB e conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

 

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Na edição desta semana, leia também“Violência política no Brasil: da negligência ao estímulo”

 

 

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A hora de descer dos palanques chegou https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/12/23/a-hora-de-descer-dos-palanques-chegou/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/12/23/a-hora-de-descer-dos-palanques-chegou/#respond Sun, 23 Dec 2018 13:42:52 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/12/31516834_10215772151124550_2169766041410863104_n-150x150.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=516 Dedico este texto à memória do soldado da Polícia Militar do Rio Grande do Norte, João Maria Figueiredo da Silva, assassinado em uma emboscada ainda não esclarecida, no último dia 21, em São Gonçalo do Amarante, na Grande Natal.

João Maria era associado do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e entusiasta de transformações radicais no modelo de segurança pública brasileira. Sua morte é uma daquelas mortes que, a exemplo de Marielle Franco, nos revelam o grau de crueldade e violência que fomos aceitando conviver no campo da segurança pública nas últimas décadas.

Não à toa, é muito difícil não ser repetitivo quando falamos dos problemas e das soluções na segurança pública brasileira.

Assim, começo citando afirmação feita em outro artigo recente, na qual reiteramos que, quando falamos dos dados sobre segurança pública e violência no Brasil, acostumamo-nos com números assustadores e crescentes da nossa guerra particular. O país, nos últimos anos, foi se dando conta de que estava deitado não em berço esplêndido, mas, sobretudo, em um leito de sangue de milhares de jovens pobres e negros dizimados pela violência letal.

Com suporte das informações compiladas pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e por outras organizações da sociedade civil, não foram poucas as contribuições ao debate em 2018 que nos alertam para a ineficiência fática das políticas criminais e penitenciárias hoje vigentes.

Na segurança, trabalha-se muito, porém cada instituição que compõe o chamado sistema de justiça criminal e segurança pública atua em uma direção e de acordo com diretrizes pouco articuladas. Quase não há coordenação ou integração e, diante disso, quem acaba dando o rumo da área são as emergências e os flagrantes cotidianos. Vivemos sob a égide do medo e, pior, do pânico, que abre margem para discursos salvacionistas e/ou mirabolantes.

Para superar este cenário, é necessário estimular que a União atue tanto por meio da indução de políticas em Estados e municípios, tanto para garantir a coordenação e integração de informações, afinal, o crime não tem fronteiras e não fica contido pelas muralhas das prisões. Se o crime comum é afeito às polícias estaduais, a regulamentação e fiscalização de inúmeras normas e atividades da área é responsabilidade federal, algo pouco assumido pela União até então.

Já faz algum tempo que temos sido enfáticos de que a falta de coordenação federativa e entre Poderes e Órgãos de Estado na prevenção da violência e no combate ao crime organizado é uma das principais deficiências na melhoria da segurança pública no Brasil. E, para mitigar esta falta de coordenação, também temos incentivado a criação de espaços de coordenação e de integração de esforços.

Ficamos positivamente surpresos quando, este ano, o Brasil conseguiu superar algumas de suas históricas dificuldades na segurança pública e avançou na aprovação e regulamentação do SUSP (Sistema Único de Segurança Pública).

O SUSP, que ficou em tramitação por quase duas décadas, parte exatamente da tentativa de coordenar esforços e aumentar a capacidade do Poder Público de fazer frente ao crime, à violência e à necessidade de reduzir o medo e garantir direitos. Trata-se de uma ideia que já é praticada em várias outras áreas da administração pública, como saúde, educação e assistência social, mas que, na segurança pública, enfrentava, por incrível que pareça, enormes resistências.

A segurança fica perdida em disputas corporativistas e em torno de competências legais e mandatos policiais. A bem da verdade, o Susp é um fruto que quase caiu de maduro do amadurecimento institucional da segurança.

Os dados divulgados esta semana pelo Monitor da Violência com o monitoramento da violência letal nos nove primeiros meses de 2018 em todo o país nos dão, no entanto, um sopro de esperança: a comparação com o mesmo período de 2017 indica redução de cerca de 12% nos crimes de homicídio doloso, latrocínio e lesão corporal seguida de morte.

Nada disso é permanente e depende do que será feito daqui para a frente. Além disso, os dados contabilizados não incluíram ainda as mortes provocadas pelas Polícias, que ao fim de 2018 tendem a apresentar crescimento tal como no Rio de Janeiro sob Intervenção Federal.

Se o SUSP ainda não rendeu frutos objetivos, é possível afirmar que o clima de cooperação que o fez ser aprovado e que tomou conta das organizações da área nos últimos meses talvez seja a evidência maior de que o país parece ter se dado conta para a importância da coordenação federativa e republicana na segurança pública.

Governo Federal, Unidades da Federação e Poder Judiciário passaram, enfim, a organizar forças-tarefa e a conversar sobre a integração e compatibilização de seus cadastros sobre presos e sistemas de dados.

Também é importante destacar que o tema da violência contra a mulher foi a alçado à prioridade e várias iniciativas começaram a ser estruturadas. Diversas iniciativas muitas vezes diluídas na imensidão do cotidiano do funcionamento do sistema de justiça criminal e de segurança pública puderam ser conhecidas e fortalecidas.

Por tudo isso, o Governo de Jair Bolsonaro herdará um esboço de novo modelo de governança que busca dar caráter sistêmico para a atuação da União na Segurança Pública, assim como uma Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social pautada na eficiência democrática e na valorização profissional.

Bolsonaro e Sérgio Moro podem, se continuarem na perspectiva de implementar o SUSP, ter sucesso na redução da violência e da criminalidade. Isso também se aplica aos novos governadores.

Para isso, a questão de fundo está posta, ou seja, os futuros governos têm a oportunidade de descerem dos palanques e fazerem um trabalho sério, técnico e muito potente, que, independentemente de preferências políticas, é o que precisa ser feito. Mas, se surfarem no pânico e optarem por ficar na retórica ideológica, a perversa guerra de todos contra todos explodirá de forma ainda mais intensa…

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Presidente eleito Jair Bolsonaro, contenha seus ‘guardas da esquina’ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/10/30/presidente-eleito-jair-bolsonaro-contenha-seus-guardas-da-esquina/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/10/30/presidente-eleito-jair-bolsonaro-contenha-seus-guardas-da-esquina/#respond Tue, 30 Oct 2018 16:04:20 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/10/faces-slides-2-03-Fiolha-150x150.jpg true https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=377 Existe uma história que conta que, em 13 de dezembro de 1968, quando o governo do General Artur da Costa e Silva decretou o Ato Institucional 5, que significou o endurecimento do regime autoritário inaugurado em 1964, o vice-presidente, Pedro Aleixo, foi o único a discordar dos termos do Decreto. Ele teria dito “Presidente, o problema de uma lei assim não é o senhor, nem os que com o senhor governam o país. O problema é o guarda da esquina”.

Respeitadas as diferenças históricas, a vitória de Jair Bolsonaro no último domingo parece que está provando que a preocupação de Pedro Aleixo continua válida e, mais do que nunca, evidencia muito das dificuldades que se avizinham na convivência democrática e no respeito aos direitos fundamentais no Brasil.

São inúmeros os casos de pessoas ofendendo gays, lésbicas, negros, mulheres e jovens que, emparedados por ameaças físicas e verbais, estão desesperadamente aguardando uma voz de comando do Presidente eleito para que a “caça às bruxas” contra quem pensa e/ou é diferente seja interrompida.

Hoje pessoas que têm as marcas de suas identidades sociais e culturais na pele ou no comportamento estão sendo violentamente constrangidas pelo discurso neoconservador sem limites e ressentido, que vê o diferente como inimigo e como algo moralmente condenável.

Mulheres lésbicas estão sendo abordadas e ofendidas aos berros nas ruas pelo simples fato de estarem exercendo seus direitos à cidade e à liberdade. Isso para não dizer da estranha convergência/coordenação de inúmeras invasões para averiguações, apreensão de materiais eleitorais e interrupções de aulas nas Universidades do país às vésperas das eleições, que exigiu uma posição firme do STF.

Fechadas as urnas, chamou atenção ainda que membros das Forças Armadas participaram de homenagens à eleição de Jair Bolsonaro; e/ou pessoas atiraram para cima em clima de festa – ambas ações que, em tese, demandariam explicações e investigações para apuração de eventuais ilegalidades.

Também tivemos o juiz Sérgio Moro (que como cidadão tem todo o direito a ter suas preferências políticas mas que, como magistrado, tem que demonstrar isenção), que se sentiu à vontade para emitir nota oficial de congratulação para o Presidente eleito e no dia seguinte, sem quase ninguém achar isso no mínimo um ato de conflito de interesses, ser convidado publicamente para assumir o Ministério da Justiça ou para ir para o STF e) e muitos acharem normal.

Não bastassem todas essas sinalizações, o Presidente eleito, em uma de suas primeiras manifestações, e a Deputada Ana Caroline Campagnolo (PSL/SC) também incentivaram que alunos gravassem e denunciassem a “doutrinação ideológica” nas Universidades, provocando uma quase imediata onda de patrulha e de manifestações de ódio e ressentimentos. Há, por fim, os ataques à imprensa profissional e independente, que incomoda e provoca promessas de retaliações.

Em suma, muito já foi dito sobre as razões da chegada democrática de Jair Bolsonaro ao poder, incluindo os erros da esquerda brasileira e a influência das redes sociais no processo político do país. Porém, já em 1968, Pedro Aleixo alertava para a importância de as instituições serem capazes de conter exageros e violências, sob o risco da perda de controle e dos dirigentes serem dragados pelo “espírito do tempo”.

E é este espírito, que em alemão ficou conhecido como “Zeitgeist”, que no país podemos associar ao medo da violência e ao autoritarismo, fatores-chave na configuração do ambiente eleitoral de 2018. O medo transformou-se em pânico e cobrou seu preço nestas eleições.

A ineficiência da máquina pública, em especial aquela responsável por conter a violência, mostrou-se incapaz de oferecer propostas críveis para o cotidiano da população e está dando vazão a um profundo mal estar social hoje no Brasil; um mal estar que antagoniza setores da sociedade em nome de uma verdade religiosa e não de uma ética pública baseada na nossa Carta Magna.

E, neste momento, ao invés de palavras sinceras de pacificação, vemos que a vontade de vingança e de perseguição estão na ordem do dia. A responsabilidade dos eleitos é imediata e não pode esperar o 1o de janeiro. Presidente eleito, como pessoa, é um direito do senhor pensar qualquer coisa, mas como máxima autoridade política eleita do país, segure seus “guardas da esquina” e pare de valentias retóricas que colocam a vida e a integridade de milhares de pessoas em risco.

Suas palavras têm força. Use-as para conter violências e perseguições. O Brasil todo saberá reconhecer. A grandeza de um líder, como Churchill, que parece que o inspira, é saber conter as emoções e fazer as escolhas civilizatórias. As eleições acabaram.

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A democracia sob eventual governo de Jair Bolsonaro https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/10/24/a-democracia-sob-eventual-governo-de-jair-bolsonaro/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/10/24/a-democracia-sob-eventual-governo-de-jair-bolsonaro/#respond Wed, 24 Oct 2018 13:29:37 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/10/15391387465bbd64ba12066_1539138746_3x2_xs-150x150.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=368 Com Mario Schapiro, professor da FGV Direito SP

O pânico moral e a violência transformaram-se em fortes cabos eleitorais do candidato Jair Bolsonaro, em 2018.

Porém, diante dos dados apresentados pelas pesquisas de intenção de voto, o ofício de analista político já foi deslocado para o futuro. A questão mais suscitada é sobre o que seria um eventual governo de Jair Bolsonaro. Os mais cautelosos apontam para variações de uma democracia iliberal, com restrições de direitos e a fragilização dos freios e contrapesos – um endurecimento autoritário por dentro da institucionalidade formalmente democrática.

A biografia do candidato e os discursos de sua campanha justificam a avaliação e corroboram apostas de um destino similar ao de outros países, como a Turquia, Hungria e as Filipinas, onde as liberdades públicas e os direitos humanos sucumbiram ante o autoritarismo do regime político.

Há, no entanto, um registro que merece ser feito sobre os danos já sofridos pela democracia brasileira no curso desta corrida eleitoral. É por estes rasgos que o iliberalismo do candidato líder nas pesquisas tende a vicejar, mais cedo do que se espera. Neste balanço, os rasgos mais profundos são a desorganização da esfera pública e a disseminação do pânico e da violência privada.

A democracia, para funcionar como um regime que organiza o poder e oferece oportunidades de participação política, requer protocolos. O debate público requer alteridade e racionalidade. Alteridade significa reconhecer o outro, o dissidente, como igualmente legitimo, como sujeito de direitos, com cujas ideias se deve dialogar e discutir.

E é isso que Jair Bolsonaro está afrontando ao propor prender, perseguir a banir a imprensa livre ou quem pensa diferente.

A racionalidade representa os parâmetros que devem organizar esse debate. Não vale tudo na disputa política. A contraposição de ideias comporta interpretações diferentes sobre um mesmo fato, mas exige fidelidade aos fatos. A eleição na democracia demanda, portanto, debate e linguagem adequada.

Em 2018, no entanto, não tivemos nem um e nem outro. Os debates foram substituídos pela câmaras de eco do subterrâneo das redes sociais. Ali, sem a mediação institucional da imprensa, sem a cobrança de fontes e a consistência das informações, a linguagem da democracia foi atropelada pela comunicação de guerra. O adversário foi estigmatizado como inimigo e como inimigo deve não apenas ser derrotado, mas abatido.

Para isso vale tudo. Começa-se por negar a legitimidade do postulante contrário, em uma espécie de argumento “contra hominem”: se eles quem falam, não está correto. Deriva disso, a eliminação de qualquer possibilidade de discussão.

As fontes, os dados, os argumentos, as evidências não valem, porquanto estão contaminadas pela sua origem. As consequências são óbvias. Sem um escrutínio público consistente, o eleito adquire um mandato com menos constrangimentos do que seria prudente esperar. Quem terá legitimidade para dizer sobre seus equívocos no governo? Mais grave: o que serão equívocos, se não há contrapontos, mas posições inimigas, nas quais não se deve confiar?

Foi-se além. A desorganização da esfera pública ultrapassou seus limites e alcançou a vida privada, aqui como violência física. Já são inúmeros os casos de agressão e até de homicídio, ocorridos entre os turnos eleitorais. Os casos deixam claro que a linguagem de guerra de fato comunica a sua mensagem.

Se a democracia é uma opção de conflito procedimentalizado, em que as disputas entre os diferentes deve ocorrer dentro das regras, parece evidente que a Turquia de amanhã já é o Brasil de hoje. Como costuma acontecer nas viradas autoritárias, existe cumplicidade entre o público e o privado.

O caso dos policiais de Goiás que, durante treinamento, cantavam palavras em defesa da candidatura do presidenciável Jair Bolsonaro (PSL) é o exemplo didático deste compadrio. Este e outros casos estão acomodados na omissão/conivência das autoridades, das instituições e na senha da linguagem de guerra.

Em seu discurso de posse na presidência do STF, o Ministro Dias Tofolli lembrou da trilha sonora da democratização, o que para alguns soou mais como aviso do que como memória da abertura.

Citou o verso de Renato Russo, “o futuro não é mais como era antigamente”. Dias depois, deixou claro parte de sua inspiração, quando se voltou ao passado para chamar o golpe de 64, de movimento. O elo entre um passado a ser reescrito e um futuro com apostas iliberais é este presente, em que parte das referências foram perdidas sem que a agenda de direitos civis, sociais e humanos tenha sido plenamente implementada no Brasil.

A democracia essa sim já não é mais como era antigamente. E, em muito, porque a violência nunca foi interditada, moral e politicamente, no Brasil, seja ela oriunda das relações privadas (violência contra mulheres, crianças, assédios), do crime organizado e/ou do Estado (uso excessivo da força letal pelas polícias ou caos prisional, entre outras manifestações).

A violência permanece e o pânico continua à espreita. Se nada fizermos para contê-los, o Brasil pode caminhar aceleradamente para a sua “noite dos cristais“. Que saibamos evitá-la!

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Por que os evangélicos conservadores votam em Jair Bolsonaro? https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/10/16/por-que-os-evangelicos-conservadores-votam-em-jair-bolsonaro/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/10/16/por-que-os-evangelicos-conservadores-votam-em-jair-bolsonaro/#respond Tue, 16 Oct 2018 12:22:43 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/10/17036132-150x150.jpeg true https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=338 Artigo escrito por Ricardo Mariano, Professor do Departamento de Sociologia da USP. O autor estuda o ativismo político-partidário e eleitoral evangélico faz mais de 25 anos.

De acordo com o Datafolha, no segundo turno, 70% dos votos válidos dos evangélicos deverão ser no candidato do PSL contra 30% no petista, Fernando Haddad. Diante de tais números, vale analisarmos o entusiasmado apoio de vários líderes evangélicos, já no primeiro turno, a Jair Bolsonaro, apólogo contumaz da ditadura militar, da tortura e de torturadores.

Há, se olharmos em perspectiva, afinidades ideológicas de evangélicos de matiz conservadora com Bolsonaro que extrapolam o batismo do capitão reformado oficiado pelo pastor Everardo, presidente do PSC, e a filiação religiosa da esposa e dos filhos. E elas se somam ao crescente alinhamento evangélico à direita resultante dos embates de seus porta-vozes mais conhecidos com governos petistas e de seu posicionamento frente à polarização política e às reivindicações identitárias.

Historicamente, as igrejas evangélicas, com raras exceções, apoiaram a ditadura e a doutrina de segurança nacional contra o “perigo comunista”. Pastor Marco Feliciano (PODE/SP) a legitima afirmando que “não houve ditadura no nosso país”. O assembleiano Victório Galli (PSC/MT) edulcora o devaneio: “quem viveu aquele tempo tem saudade do sistema de governo que era. Não tinha corrupção, não tinha ladroagem, nem essa viadagem”. “No regime militar”, exalta o capitão reformado, “restabeleceu-se o progresso, a ordem, a disciplina e a hierarquia”.

Para justificar o apoio à atual chapa de militares à Presidência e demonizar seus adversários, invocam, por exemplo, teorias conspiratórias sobre a “Ursal”, de Olavo de Carvalho. Pastores garantem que os petistas almejam implantar o comunismo soviético ou venezuelano no Brasil, perseguir os cristãos, destruir a família, abolir o direito dos pais de educar os filhos, reorientar a sexualidade das crianças.

Indignados e inconformados diante do avanço do pluralismo cultural, das reivindicações feministas e LGBTs e das mudanças nos arranjos familiares e nas relações de gênero, tencionam fazer prevalecer sua moralidade privada no ordenamento jurídico pelo controle das instituições políticas.

Bolsonaro e a bancada evangélica são aliados na cruzada moralista em defesa da “cura gay”, do “orgulho heterossexual”, dos estatutos do nascituro e da família. Defensores da agenda de grupos “pró-vida” e “pró-família”, asseveram que as minorias LGBTs oprimem a maioria heterossexual. E trabalham para discriminá-las, combatendo a união civil de pessoas de mesmo sexo, a lei que obriga a rede pública de saúde a atender vítimas de estupro, os programas de prevenção à homofobia…

Paladino da maioria cristã, o capitão reformado não tem pudores em alardear seus arroubos antidemocráticos: “Somos um país cristão. Deus acima de tudo. Não tem essa história, essa historinha de Estado laico, não. É Estado cristão. E quem for contra que se mude. Vamos fazer o Brasil para as maiorias. As minorias têm que se curvar. As leis devem existir para defender as maiorias. As minorias se adequam ou simplesmente desaparecem”.

Em debate na TV Band em 9 de agosto, Bolsonaro defendeu a imposição da “Escola sem Partido”. Deputados evangélicos que encabeçam esse projeto advogam a sobreposição dos valores da ordem familiar à educação escolar. Para coibir a suposta doutrinação ideológica, pretendem censurar professores e impor conteúdos à escola avessos ao conhecimento científico, à cidadania e à educação laica e republicana.

E, na segurança pública, foco do Blog, as bancadas evangélica e da bala, redutos do capitão reformado, compartilham a crença de que a elevada criminalidade e a ineficiência da segurança pública decorrem, em parte, de políticas de direitos humanos de partidos e governos de esquerda.

Em resposta, deputados evangélicos defendem o endurecimento das penas, a redução da maioridade penal, a revogação do estatuto do desarmamento. Pastor Eurico (PATRI/PE) propõe a prisão perpétua para traficantes. Marco Feliciano prevê a internação forçada de usuários de drogas. Marcos Rogério (DEM/RO), assembleiano, avalia que “temos uma polícia amedrontada por uma legislação que protege bandidos e pune bons policiais”.

O próprio candidato fez campanha ontem (15) em uma unidade do BOPE (Batalhões de Operações Especiais), do Rio de Janeiro, e afirmou que sua intenção é retornar o Brasil no tempo em 50 anos na segurança pública [simbolicamente para o período mais duro da ditadura militar que teve início em 1968, ano do Ato Institucional Número 5, que restringiu liberdades e endureceu o regime].

Segue disso o discurso de endosso à rejeição da legislação para conter e punir o uso imoderado da força. Onyx Lorenzoni (DEM/RS), luterano, pleiteia que as forças de segurança “tenham excludente de ilicitude formalizado na lei”. Já existe tal provisão legal, mas o parlamentar defende, na prática, a inversão do ônus da prova, ou seja, se a polícia matou, ela o fez em legítima defesa e não haverá investigação obrigatória, que exigiria a análise por parte do Ministério Público e posterior decisão do Poder Judiciário.

Inspirados por versículos bíblicos e pela guerra contra o diabo, concebem a atuação policial como a luta do bem contra o mal. Em defesa dos “cidadãos de bem”, alguns pastores confundem justiça com vingança, identificam as forças policiais com “guerreiros de Deus” e lhes conferem autoridade divina para matar.

O lema “bandido bom é bandido morto” é apoiado por 57% dos brasileiros, segundo pesquisa do Datafolha de 2016, encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. E tem respaldo, não de agora, de pastores e políticos evangélicos. Em discurso na Câmara em 2002, Cabo Júlio (PST/MG), pastor, propôs “extirpar” os bandidos: “Quando der para prender, prendemos; quando não, matamos”.

Em vídeo no Youtube, pastor Lucinho, da Igreja Batista da Lagoinha, incitou: “Policial cristão ou não cristão (…), você é um emissário do céu, você é Jesus ali protegendo a nossa sociedade. Então, chegou o momento, tem que usar o revólver, não tem jeito. Irmão, pega o revólver e, oh, não dá pouco tiro, não, dá muito tiro, dá muito tiro. (…) A autoridade está respaldada pela Bíblia e por Deus para sentar tiro na cara do povo que não quer viver de acordo com as nossas leis”.

Em meio a pânicos morais, teorias conspiratórias, fake news e discursos de ódio, líderes evangélicos conservadores apoiam Bolsonaro e se mostram afinados com o repertório ideológico de extrema direita, sobretudo com as propostas morais, educacionais e repressivas que, creem, vão reinstaurar a “ordem” e favorecer as igrejas.

E, mais uma vez, o fazem em nome de Deus, da família e dos valores cristãos. O problema é que, ao optarem por este caminho, ignoram que a agenda de direitos é parte pétrea da nossa Constituição Federal de 1988 e antagonizam as minorias evangélicas progressistas, defensoras dos direitos humanos, da laicidade do Estado e da democracia.

Interesses privados são assumidos como valores religiosos e servem de combustível à onda neoconservadora. Todavia, a violência naturalizada por tais interesses não é compatível com políticas públicas de segurança no Estado de Direito.

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A vez da ‘mão amiga’ do Exército Brasileiro na segurança pública https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/10/13/a-vez-da-mao-amiga-do-exercito-brasileiro-na-seguranca-publica/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/10/13/a-vez-da-mao-amiga-do-exercito-brasileiro-na-seguranca-publica/#respond Sat, 13 Oct 2018 18:54:43 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/10/15191328575a8c20b9b3277_1519132857_3x2_rt-150x150.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=326 Com Arthur Trindade Maranhão Costa, membro do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e Professor da UNB. Ex-Capitão do Exército Brasileiro e Ex-Secretário de Segurança Pública e da Paz Social do Distrito Federal.

Quando se fala no envolvimento das Forças Armadas na segurança pública, quase sempre, lembramos das custosas e pouco efetivas operações de ocupações de comunidades no Rio de Janeiro. Operações que estão em muito lastreadas na doutrina penal militarizada do inimigo, cujos objetivos é conquistar territórios e derrotar o inimigo, incapacitando-o seja pelo tratamento distinto no campo penal, pelo “abate” ou pela prisão.

O atual debate eleitoral, seja para a Presidência da República ou seja para Governadores de Estado, tem reforçado esta perspectiva e mostra-se profundamente ideologizado pelos representantes, por mais estranho que possa parecer ao leitor atualmente, da direita conservadora. Ao gritar “pega ladrão” escondemos aquilo que não queremos mostrar, por mais que a repressão qualificada da criminalidade é urgente e pouco debatida nos planos de governo de quase todos os candidatos no país.

Valorizar as polícias e as Forças Armadas virou sinônimo de autorizar enfrentamentos abertos, sem que pensemos na efetividade de ações que são tentadas faz décadas e que só agravam o quadro de pânico moral e social vivido pela população do país. O problema da área é muito mais de governança do que de leniência e frouxidão legal; a segurança pública ganharia muito mais se deslocasse seu olhar para o direito administrativo do que para o direito penal.

Ao mesmo tempo, não falamos sobre as condições de vida e trabalho dos milhares de policiais brasileiros e não nos preocupamos com a dupla vitimização a que são submetidas milhões de pessoas reféns da tirania do crime organizado, das milícias e dos confrontos e tiroteios com “forças de segurança”, que na reprodução de um mesmo padrão e emulando narrativas de combate de grupos terroristas no mundo já passaram todas as serem chamadas assim sem maiores distinções entre funções e competências institucionais.

Tudo foi colocado na mesma embalagem, sem que os problemas de governança e de modelo de organização do sistema de justiça criminal e de segurança pública sejam enfrentados. Prefere-se atribuir as mazelas da área à influência da teoria de Antonio Gramsci e não se avança na implementação de mudanças previstas na Constituição de 1988 e que, passados 30 anos, continuam sendo promessas do texto constitucional.

Normas, Leis e Regulamentos que hoje dão forma e sentido ao funcionamento das instituições de segurança pública brasileira são anteriores à Constituição e não foram produzidos pela esquerda, que por sinal sempre preferiu fugir deste tema ou fazer mais do mesmo. Os problemas da área não são problemas ideológicos. São omissões ou falhas de modelagem jurídica e institucional que até hoje o Congresso Nacional não quis solucionar.

E, sem que tivéssemos feito nenhuma consulta prévia ao Exército Brasileiro, queremos demonstrar com evidências que, se olharmos de forma menos ideologizada e mais profissional, iremos perceber que os dilemas da segurança pública podem ser mais bem endereçados para a conquista da paz e da cidadania se trabalharmos a partir do espírito do que está previsto na nossa Constituição Federal.

Ou seja, a eficiência democrática das instituições exige capacidade de mobilização e inovação e não nos permite confundir a agenda de partidos e candidatos, mesmo que tenham sido eles vinculados a qualquer uma das “forças de segurança”, com a missão das instituições de Estado, que são a garantia da estabilidade política e institucional do país. Elas não pertencem a nenhum espectro político ou a nenhum indivíduo ou grupo, mesmo que egresso delas próprias.

Feita esta introdução, este texto propõe uma inversão absoluta do engajamento que é dado ao Exército Brasileiro na segurança pública do país. Ao invés de pressionar a Força Terrestre com ações reconhecidamente tópicas e de baixo impacto temporal, nossa ideia é aproveitar uma faceta pouco valorizada da Força e que pode gerar ganhos de longo prazo na prevenção da violência e, até mesmo, no combate à corrupção.

Estamos falando da utilização dos Batalhões de Engenharia de Construção (BEC) na urbanização de territórios dominados pelo crime e pela violência.

E como fazer isso? De acordo com o Diagnóstico dos Homicídios no Brasil, do Ministério da Justiça, em 2015, apenas 111 municípios concentram 76,5% do total de homicídios. Este percentual não mudou muito desde 2015. Boa parte dessas mortes estão localizadas na região Nordeste e, via de regra, concentram-se em 2 ou 3 bairros de cada cidade. Ou seja, as mortes violentas são um fenômeno altamente concentrado territorialmente.

Se atuássemos prioritariamente em cerca de 300 bairros/distritos dos municípios com maior número de mortes violentas intencionais teríamos, no curtíssimo prazo, uma redução bastante significativa da violência e a inclusão de milhões de pessoas no Estado de Direito. Afinal, estes bairros abrigam a população de baixa renda e negra que reside na periferias dos grandes e médios municípios e que são as maiores vítimas da violência.

Esses bairros têm, em geral, uma fraca infraestrutura urbana: precárias ou inexistentes condições de pavimentação, saneamento básico, iluminação e equipamentos para esporte, lazer, cultura e educação. A vida dos jovens moradores destas localidades é marcada pela exclusão social e pela falta de perspectivas de renda e trabalho. A prisão é uma das poucas políticas universais reservadas a estes jovens e, bem sabemos, ao serem presos nas condições prisionais existentes, esses jovens viram mão de obra barata e descartável das organizações criminosas.

O emprego dos BEC significaria uma revolução por lidar, simultaneamente, com as causas e com as consequências do crime, do medo e da violência. A ideia de confronto aberto seria substituída pela ocupação permanente dos territórios dominados pelo crime com políticas públicas. O Exército poderia evitar, ainda, que quadrilhas ou milícias tomassem conta das unidades do “Minha Casa, Minha Vida” antes mesmo que elas sejam entregues à população. Quase o Plano Marshal brasileiro para a reconstrução da esfera pública nestas localidades e a garantia de cidadania.

Caso o leitor não saiba, os BEC são um dos grandes orgulhos do Exército Brasileiro, cujo lema é “Braço Forte, Mão Amiga”. Esta mão amiga vem ajudando o desenvolvimento nacional há mais de 100 anos. Durante os governos Lula e Dilma, os engenheiros militares foram empregados para obras de duplicação de rodovias, transposição do rio São Francisco e construção de aeroportos, dentro outras. Exército não serve apenas para matar o inimigo, como alguns salvadores da pátria gostam de anunciar.

Em função deste recente emprego, os Batalhões de Engenharia de Construção (BEC) estão muito bem equipados e treinados. Entretanto, sua capacidade está ociosa, dada a atual situação fiscal do país e as prioridades dos atuais dirigentes do país. Atualmente existem 12 BEC’s, sendo 5 na região Nordeste, 4 na Norte, 2 na Centro Oeste e 1 na Sul.

O emprego dos BEC’s é coordenado pelo Departamento de Engenharia e Construção do Exército. Ele é feito através de convênios como os governos municipais e estaduais, ou diretamente junto ao governo federal. Dependendo da obra, os militares do Exército podem contratar civis para auxiliar os trabalhos e podem atuar, em parceria com TCU ou Ministério Público, na fiscalização e prevenção da corrupção que infelizmente tem marcado o setor de infraestrutura do país desde tempos imemoriais.

Seu emprego não depende de intervenção federal, que tem impactos no funcionamento regular do Congresso Nacional, ou Operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). E as obras poderão ser custeadas com os recursos já existentes no Ministério das Cidades. Não se trata aumentar os gastos, mas de dar foco e efetividade a eles.

Dito de outro modo, se valorizarmos o pensamento estratégico que marca da doutrina militar das Forças Armadas no mundo, mostra-se muito mais eficiente em termos de conquista dos objetivos de pacificação e incorporação cidadã de milhões de jovens à sociedade da “ordem” investirmos na desconstrução dos ambientes que possibilitam que territórios fiquem à mercê de quadrilhas, milícias e facções criminosas. Segurança Pública não pode ficar reféns de teses equivocadas, desprovidas de evidências e saturadas por um novo ciclo de doutrinação ideológica, mesmo que este seja de direita, que muitos confundem com o lado do “bem”.

O lado da Segurança Pública é a nossa Constituição e é nela que as instituições de Estado balizam suas condutas e missões.

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A eleição de policiais candidatos não se resume à disputa Bolsonaro x Haddad https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/10/09/a-eleicao-de-policiais-candidatos-nao-se-resume-a-disputa-bolsonaro-x-haddad/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/10/09/a-eleicao-de-policiais-candidatos-nao-se-resume-a-disputa-bolsonaro-x-haddad/#respond Wed, 10 Oct 2018 02:53:36 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/10/17214288-150x150.jpeg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=318 Com Alan Fernandes, Major da Polícia Militar de São Paulo e associado do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Mestre em Ciências Sociais e Doutorando em Administração Pública pela FGV-EAESP

Dentre alguns aprendizados que as eleições do último dia 7 apresentaram até o momento, uma se mostra especialmente importante para as questões que discutimos neste espaço: os temas de segurança pública alavancaram a eleição de um número bastante significativo de policiais, podendo-se destacar a eleição de quatro senadores (Espírito Santo, Rio Grande do Norte, Sergipe e São Paulo) e de outros dois policiais que disputam a vaga ao Executivo na condição de Governador ou Vice-Governador (Santa Catarina e São Paulo, respectivamente).

Em outras palavras, as questões ligadas à segurança pública colocam-se, de maneira, agora mais presente, no âmbito das decisões políticas. Segurança, compreendida mais amplamente como resgate da autoridade das polícias e da ordem, entrou na agenda política do país.

Por esta razão, ao mesmo tempo em que a eleição desses profissionais poderia ser comemorada, em razão da centralidade que a segurança pública passará a ter na próxima legislatura, assiste-se, a julgar por seus discursos, uma linha-mestra que se traduz em maior endurecimento penal e de estratégias mais severas de “combate ao crime”.

E assim, podemos fazer uma associação direta entre a eleição desses agentes de segurança à chamada “onda conservadora”, que se fez presente com a eleição de candidatos mais à direita do espectro político em prejuízo de políticos ditos “progressistas”. A eleição de um número bem maior do que os atuais 18 representantes da bancada da segurança para a próxima legislatura guarda relação com movimentos desta onda e merece reflexão.

Dito de outro modo, segurança pública está sendo vista como uma agenda de direita, mas, no fundo, ela é uma agenda de Estado e que deveria ser pautada por políticas públicas orientadas por evidências e pela busca da eficiência e da efetividade das ações de todas as instituições do chamado sistema de segurança pública e justiça criminal no Brasil.

E, como reforço a esta nossa posição, uma boa base para compreendermos que a população deu um recado claro nas urnas é verificar como se deu a relação entre a eleição desses agentes de segurança e a votação, por estado, para Presidente da República, cuja disputa está sendo fortemente polarizada.

Por esta perspectiva, policiais federais, rodoviários federais, civis e militares foram eleitos em 16 Estados da Federação como Deputados Federal. Ocupando 32 cadeiras (sem contar militares das FFAA), representam mais de 6% da Câmara dos Deputados. Nos estados em que tais agentes foram eleitos, o percentual de preenchimento das vagas variou de 2,6% (Bahia) e 25% (Amazonas).

Se a pauta fosse de fato uma agenda de apenas um espectro político, a orientação de voto para Presidente da República seria inversamente proporcional aos votos dos representantes policiais (estados que votaram proporcionalmente mais em Jair Bolsonaro deveriam eleger mais policiais e estados que, em sentido oposto, votaram com mais força em Fernando Haddad deveriam ter poucos votos em policiais candidatos).

Mas isso não se comprova de modo indiscutível. De fato, o nome preferido para a Presidência foi um fator que informou a eleição de policiais, mas as distâncias não ficaram tão evidentes como o senso comum nos diria: nos 16 estados analisados, aqueles em que Jair Bolsonaro teve a maior parte dos votos, a média de ocupação de vagas a Deputados Federais por policiais será de 11%, enquanto que nos estados em que Haddad ganhou, 7% das vagas serão ocupadas por policiais, evidenciando que a polarização do eleitorado atinge a escolha de policiais apenas em parte.

Uma das explicações é a inequívoca demanda de policiais, principalmente estaduais (civis e militares) por melhores salários e condições de trabalho, cujas demandas independem de quais partidos ou orientações políticas são capazes de absorvê-las. A eleição de policiais candidatos teria no ativismo associativista e político destes profissionais um vetor de força maior do que a preferência ideológica.

Ou seja, cabe lembrar que ocorreram movimentos grevistas por parte de policiais estaduais sob o governo de diferentes partidos políticos, de forma que o voto do policial em policial, no que se refere à defesa de direitos, não observa o partido cujo representante está filiado. Contudo, o número de votos recebidos nas urnas pelos policiais eleitos permite dizer que outras demandas propiciaram a tais resultados.

A principal delas, é a existência de um discurso por “lei e ordem”, que se fundamenta no pensamento que “segurança pública é assunto de polícia” e que percorre diferentes classes econômicas (com seus consequentes reflexos políticos), mas que estabelece um sentido convergente.

Sentido esse que corre o risco de se transformar em um poderoso instrumento de eliminação do outro, seja pela morte, seja pelo depósito de vidas em presídios com precárias condições de vida, ao arrepio do Estado de Direito. A julgar pelas plataformas com as quais boa parte desses policiais foram eleitos, essa possibilidade é extremamente real e exige cuidadosa atenção por parte da sociedade e das instituições democráticas.

É necessário reforçar os canais de diálogo, transparência e fiscalização das instituições policiais no Brasil, de modo a garantir a busca por efetividade nos marcos do previsto na nossa Constituição Federal.

E, exatamente por isso, é pertinente sugerir aos que defendem possibilidades mais civilizadas para a segurança pública que é preciso respeitar a opinião do eleitorado para, com ouvidos atentos a tais demandas, percorrer caminhos que aliem ganhos em termos de controle da violência, com a intermediação do respeito aos direitos civis. Precisamos aperfeiçoar o modelo de polícia e justiça do Brasil para dar respostas concretas ao medo da violência e aos dilemas da manutenção da ordem.

Para além das quase 64 mil mortes ocorridas no último ano, temos aproximados meio milhão de pessoas que sofrem a perda de seus familiares e que, na falta de medidas preventivas que pudessem ter evitado os homicídios, reclamam vingança à falta de proteção, sentimentos que se transformam em capital político aos que acenam com a saída definitiva para tais sofrimentos.

Assim, não basta criticar aqueles que sugerem promover segurança com um “combate às forças do mal”. Isso é debate eleitoral e rende votos. Mas, se queremos melhorar o quadro de insegurança e prover serviços mais eficientes e garantir direitos, cabe-nos compreender quais recados que nos dão os milhões de cidadãos que neles votaram.

A nosso ver, é mais do que urgente a mobilização de uma ampla coalizão em torno da redução da violência e do medo; uma coalizão que se estruture na prevenção e na repressão qualificada do crime e da violência no Brasil. O medo quando transformado em pânico e desolação é um péssimo conselheiro. Mas não podemos ignorar que o medo pode ser um poderoso instrumento político.

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Roubos e homicídios tiveram forte crescimento durante a ditadura militar e deram início à epidemia de violência no Brasil https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/10/02/roubos-e-homicidios-tiveram-forte-crescimento-durante-a-ditadura-militar-e-deram-inicio-a-epidemia-de-violencia-no-brasil/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/10/02/roubos-e-homicidios-tiveram-forte-crescimento-durante-a-ditadura-militar-e-deram-inicio-a-epidemia-de-violencia-no-brasil/#respond Tue, 02 Oct 2018 13:22:01 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/10/Ditadura-150x150.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=308 Em uma semana decisiva para o Brasil, em que duas fortes forças políticas e de base social parecem confluir para um embate traumático, é interessante analisar alguns dos mitos que estão por mover o debate eleitoral. E, entre eles, um ganha destaque. Ou seja, o mito de que é necessário resgatar a ordem e a moralidade impostas pelo regime militar de 1964, que a história reconhece como um golpe civil-militar mas que, de forma preocupante, começa a ser relativizada por várias autoridades da República, a começar pelo Presidente do STF, Dias Toffóli.

Para refletir sobre esta “verdade”, Alberto Liebling Kopittke Winogron, advogado, associado do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e Diretor-Executivo do Instituto Cidade Segura, faz uma detalhada análise do movimento da criminalidade ao longo das últimas décadas e conclui que não, não vivíamos com menos violência durante a ditadura.

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Uma das ideias mais fortes que impulsionam a candidatura do Capitão Reformado do Exército, Jair Bolsonaro e do seu Vice, General da Reserva, Hamilton Mourão, é a tentadora proposta que conseguirão trazer de volta para o país a paz existente durante a Ditadura Militar(1964-1985).

Segundo essa ideia, que chamamos de “Pax Militar” – em alusão a paz imposta a força pelo Império Romano dentro de suas fronteiras – o Brasil teria vivido anos de paz e baixos índices de criminalidade durante a Ditadura Militar, em razão de uma maior liberdade para as forças públicas usarem a força e da ausência de mecanismos de controle e garantias constitucionais. Para essa visão, que amealha hoje grande apoio social, a situação de violência do país se deteriorou a partir da saída dos militares do Poder e da promulgação da Constituição de 1988, que teria criado um regime de excesso de liberdades e garantias, fazendo explodir a violência no país.

No entanto, entre diversos problemas de cunho ético, moral e jurídico “menores”, esse raciocínio parte de uma premissa equivocada: a ideia que o país viveu um período de paz durante a Ditadura não passa de uma grande fakenews, produzida pelo próprio regime autoritário brasileiro e que adentrou na democracia como uma verdade. Porém, o que de fato ocorreu entre 1964 e 1984 foi justamente o inverso: foi durante a Ditadura Militar que teve início a epidemia de violência no Brasil.

Algumas pesquisadoras da saúde pública, como Vilma Pinheiro Gawryszewski e Maria Helena Prado de Mello Jorge, conseguiram resgatar os dados históricos sobre o número de homicídios e identificaram que a epidemia de violência no Brasil teve início justamente nos dois maiores estados do país, São Paulo e Rio de Janeiro, nos anos 1960 e 1970, durante a Ditadura Militar.
Em São Paulo, a taxa de homicídios subiu 390% durante a Ditadura Militar, saltando de 7,2 homicídios por cem mil habitantes, em 1965, para 35,6 em 1985.

Apesar da narrativa da mídia atribuir a violência no Rio de Janeiro aos dois governos de Leonel Brizola, os índices de violência no estado dispararam durante a Ditadura. Em 1984, segundo Julio Jacobo Waiselfisz, quando teve início o primeiro governo de Brizola, as mortes por homicídios já representavam 46% das mortes de jovens, com uma taxa de mais de 80 jovens assassinados a cada cem mil jovens naquele estado.

Foi justamente durante a Ditadura Militar que ocorreu a chamada mudança de “padrão de mortalidade violenta”, com a violência se espalhando pela juventude brasileira. Entre 1920 e 1960, a maior causa de morte de jovens no Brasil se dava em razão de doenças. No entanto, a partir da segunda metade dos anos 1960, as mortes violentam assumiram o primeiro lugar como causa da morte de jovens no Brasil. Apenas entre 1979 e 1984, o número de jovens assassinados no país subiu 22%, chegando a representar 26,6% do total de jovens entre 15 a 24 anos que morriam no país a cada ano, isso sem levar em consideração a alta taxa de corpos que eram sepultados sem registros, estimada em pelo menos 20%.

Apenas durante o Governo do General João Figueiredo, entre 1979 e 1985, os homicídios subiram 28% em todo o país, perdendo apenas para o Governo Sarney, como o Governo com o maior aumento de violência desde o início dos registros nacionais (diferença nas taxas de homicídios durante os governos: Collor, -9; Itamar, + 17,8; FHC, +22,3; Lula, -5,8; Dilma, 10,6). Se juntarmos o último governo militar e o primeiro governo civil, ainda antes da Constituição de 1988, o aumento dos homicídios chega a 76%.

Em razão de problemas na qualidade dos registros das mortes violentas no país, existem algumas diferenças na forma de mensurar os homicídios no Brasil especialmente entre 1981 e 1996, quando o Ministério da Saúde modificou e melhorou a forma de registro. Estimativas mais realistas, que consideraram que 50% de todos os crimes registrados como de intencionalidade desconhecida pelo SIM sejam considerados como intencionais e que se assuma que 96% dos intencionais sejam tomados como homicídios, de acordo com Leandro Piquet Carneiro, aponta que os Governos Militares entregaram o país em 1984 com uma taxa de 22 homicídios a cada cem mil habitante.

Se considerarmos a taxa de 2017 de 30,8 mortes violentas intencionais, apontada pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública, teremos que durante o período democrático entre 1985 e 2018 (33 anos), os homicídios subiram 40% (lembrando que o Anuário computa as Mortes Decorrentes de Intervenção Policial que à época da Ditadura não eram registradas). Porém, se levarmos em conta as taxas de São Paulo e Rio de Janeiro em 1964, como referência, é possível estimar que o número de homicídios durante a Ditadura Militar possivelmente tenha aumentado mais do que 100%, ao longo dos seus 21 anos de duração, demonstrando a falácia da Pax Militar.

Em relação aos crimes contra o patrimônio, novamente ocorre a mesma ilusão. Um estudo mostrou que a taxa de roubos em São Paulo, em 1984, já era de elevados 270 roubos por cem mil habitantes. Se considerarmos os dados da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, veremos que essa taxa foi de 303 roubos por cem mil habitantes, em 2017, ou seja apenas 12% maior do que ao final da Ditadura Militar.

Não há dúvida que os governos democráticos até o momento não enfrentaram o tema da violência no país com a prioridade necessária e a situação atual é muito grave, exigindo ações fortes e determinadas por parte da União. Vários governos estaduais, inclusive os de “esquerda”, pegam carona entusiasmada no bordão “Bandido Bom é bandido Morto” e liberam suas polícias para agirem com “rigor e em legítima defesa”. No entanto, a ideia de que o Regime Militar foi eficiente para manter o país sem violência se trata apenas de uma falácia repetida ao longo dos anos e que se transformou numa falsa e perigosa memória coletiva, muito em razão da falta de implementação de mecanismos transicionais efetivos.

Enquanto nos iludimos com a tentação autoritária, deixamos de debater diversas experiências de sucesso de países que conseguiram vencer a violência e ao mesmo tempo fortalecer suas democracias. Esses países modernizaram e valorizaram suas polícias, aumentaram a transparência, o controle de armas e do uso da força e passaram a implementar estratégias de Segurança Pública Baseadas em Evidências, exatamente o inverso do que os regimes autoritários de esquerda ou de direita fazem e do que a Pax Militar fez no Brasil.

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Homicídios mais do que dobram em municípios que elegeram policiais como vereadores, diz estudo de instituto de pesquisas em Tolouse, na França https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/09/29/homicidios-mais-do-que-dobram-em-municipios-que-elegeram-policiais-como-vereadores-diz-estudo-de-instituto-de-pesquisas-em-tolouse-na-franca/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/09/29/homicidios-mais-do-que-dobram-em-municipios-que-elegeram-policiais-como-vereadores-diz-estudo-de-instituto-de-pesquisas-em-tolouse-na-franca/#respond Sat, 29 Sep 2018 15:11:25 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/09/15263009935af981411fde6_1526300993_3x2_md-150x150.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=295 Às vésperas do primeiro turno das eleições 2018, que têm sido marcadas pelo protagonismo de discursos pretensamente de reeducação moral e resgate da ordem e da autoridade, uma das questões que mais chamam atenção é o crescimento dos candidatos egressos das fileiras das instituições policiais e das Forças Armadas.

Algumas das associações profissionais do setor estão, inclusive, engajadas em campanhas para fazerem crescer a representação policial no Congresso e nas Assembleias Legislativas, na ideia de desfazer o nó do sistema de vetos perfeito que impera na área, pelo qual cada categoria tem força para impedir o avanço de pautas contrárias aos seus interesses, mas, simultaneamente, ficam capturadas por esta mesma lógica e não conseguem aprovar temas por elas considerados estratégicos.

E isso é algo não só legítimo, mas bastante compreensível. Os policiais brasileiros estão submetidos à uma enorme pressão no trabalho, como demonstraram artigos recentes de Rafael Alcadipani e Daniel Cerqueira. Nossos policiais estão sendo caçados pelo crime organizado e são postos na “frente de batalha” para matar ou morrer sem maiores preocupações com a garantia de direitos deles próprios e da população.

O Poder Público tem reproduzido com entusiasmo o modelo de confronto mesmo com diversas evidências de que o caminho tomado não funciona e que ele apenas interage com as concepções de ordem de segmentos sociais tomados pelo pânico e pela violência. Boa parte da legislação que dá suporte a este modelo é anterior à Constituição Federal de 1988 e os candidatos preferem jogar a culpa nela do que revisar a arquitetura e a forma de organização do nosso sistema de justiça criminal e de segurança pública.

Mas eleger policiais apenas pelo fato de eles serem policiais e terem, em tese, a experiência do cotidiano resolve o problema?

De acordo com o Lucas Novaes, cientista político do Instituto de Pesquisa Avançada em Toulouse, na França”, não. A atuação de policiais como políticos não garante maior eficiência na redução da violência e no controle do crime.

O pesquisador acaba de concluir um estudo, intitulado “The Violence of Law and Order Politics: The Case of Law Enforcement Candidates in Brazil“. Para ele, altos índices de insegurança tornam atrativos os candidatos que prometem combater a criminalidade. E, nesta toada, é comum, no Brasil, policiais ou militares se candidatarem justamente para aproveitar esse anseio de alguns eleitores. O estudo analisa os candidatos policiais aos cargos de vereadores.

Segundo o levantamento feito por ele, do ano 2000 pra cá, mais de seis mil policiais ou militares se candidataram a vereador fazendo campanha sobre segurança, e ao redor de seiscentos se elegeram. Porém, o que acontece com a segurança pública após a eleição de um desses candidatos é um tanto incerto.

Para Lucas Novaes, a proposta desses candidatos é, em geral, reduzir o crime através de uma polícia mais atuante e às vezes mais repressiva, mas se tomarmos o exemplo recente do México sabemos que o combate frontal ao crime pode trazer consequências graves em relação a assassinatos. Desde que o governo mexicano intensificou o combate ao crime, homicídios mais do que dobraram. De maneira similar, a eleição de um candidato policial ou militar comprometido a combater o crime pode também aumentar a violência.

O trabalho mostra que esse é o caso dos municípios no Brasil. Em geral, é difícil analisar os efeitos da eleição de um desses “vereadores-policiais” sobre crime e violência pois diversos fatores podem influenciar a eleição desses candidatos, como o cenário político local ou a taxa de homicídios antes das eleições. Assim, qualquer resultado após a a eleição desses vereadores pode ser produto desses fatores anteriores, e não da eleição. Não há como isolar uma relação de causalidade direta, mas alguns pontos podem ser associados para debate.

A metodologia do estudo, chamada de regressão descontínua, tenta solucionar esse problema seguindo uma ideia simples: comparar municípios que elegem um vereador-policial por uma pequena margem de votos, e outros onde esse tipo de candidato chegou próximo a vitória, mas perdeu por poucos votos. Assim, um município receber ou não o tratamento, isto é, eleger ou não um vereador-policial, é quase um processo aleatório, assegurando que além da “sorte” de eleger um vereador os dois grupos de municípios são estatisticamente semelhantes.

Os resultados do estudo mostram que municípios que elegem um vereador-policial gastam mais em segurança, diminuem modestamente crime (especificamente roubos a carro), mas praticamente dobram o número de homicídios. A taxa média de homicídios nos municípios sobe de 20 para 43 assassinatos para cada 100 mil habitantes, tornando a taxa próxima de países que sofrem conflitos civis abertos e guerras.

O estudo também identifica que esse aumento de homicídio atinge com mais força homens pobres pretos ou pardos. Para Novaes, como não há informação sobre a condição social das vítimas de homicídios, e a relação entre cor da pele e renda é muito acentuada, é muito provável que os homicídios recaiam naquele grupo não porque não são negros, mas porque são pobres. Esta é uma longa discussão sobre a existência e os efeitos do que é definido como “racismo estrutural” do Estado brasileiro.

Por fim, o autor frisa que os resultados da pesquisa mostram que o aumento da violência não é ocasionado pela ação direta dos policiais contra a população. Ou seja, não há um aumento na letalidade policial, medida com base nos dados da saúde, já que os dados da segurança não são desagregados por municípios. Em outras palavras, os dados de Lucas Novaes reforçam muitos dos levantamentos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública que indicam que a questão da violência no Brasil não é derivada de apenas um ator ou instituição, sejam eles o crime organizado, a sociedade ou o Estado.

Vivemos um cenário de naturalização desta violência e, aterrorizados pelo medo, acreditamos e/ou ficamos reféns de propostas salvacionistas radicais, que só tendem a agravar o quadro de insegurança e de desconstrução da cidadania brasileira. Nos deixamos levar pelas emoções e esquecemos que as estruturas desiguais e perversas que regulam a ação pública são centenárias e não foram ainda completamente modernizadas à luz das cláusulas pétreas da nossa Constituição.

Não há direitos demais e obrigações de menos, como querem nos fazer crer muitos dos políticos que agora se colocam como paladinos da moralidade. Há, sim, um paradoxo que provoca impunidade quase que generalizada para crimes violentos e punição rigorosa e seletiva para determinados perfis sociais e/ou delitos, em geral aqueles passíveis de serem combatidos pelo enfrentamento direto e pela prisão em flagrante. Pouco avançamos para aumentar a eficiência da investigação e vamos reproduzindo, à direita e à esquerda, estereótipos, iniquidades e preconceitos.

Em suma, o trabalho de Lucas Novaes nos aponta um problema grave sobre a intersecção de políticas de segurança e política. Como o grupo que paga com a vida é também aquele que menos têm voz na política, o político que implementa más medidas de segurança dificilmente irá pagar eleitoralmente pelos mortes ocasionadas pelas suas ações.

Estão certas as associações policiais em quererem que sejam diretamente representadas por seus membros. Não vejo nenhum problema nisso. É mais do que justa a pauta. Porém, e isso se aplica a qualquer segmento profissional, a política não pode ser reduzida a interesses corporativos e, não à toa, boas políticas de segurança pública podem ser formuladas por policiais ou por não policiais, até porque esta é uma área que depende de diversos atores sociais e carreiras.

Não é a profissão ou a carreira que irá determinar a “qualidade” e o “efeito” da atuação legislativa dos policiais candidatos. Há nomes entre os policiais brasileiros altamente qualificados e que merecem o voto da população e há, como em outras áreas, quem queira apenas fazer valer seus valores e visão de mundo, independente do real impacto na população. Mas, o ponto mais importante, é que mais do que nunca precisamos defender a vida como valor absoluto a ser tutelado pelo Estado e garantido pelas políticas públicas. Reduzir a violência e reprimir o crime organizado de forma eficiente e nos marcos da Lei é uma tarefa coletiva e que precisa mobilizar a todos e a todas.

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2/3 de todos os homicídios da América do Sul ocorrem no Brasil, o país dos “profissionais da violência” https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/09/13/23-de-todos-os-homicidios-da-america-do-sul-ocorrem-no-brasil-o-pais-dos-profissionais-da-violencia/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/09/13/23-de-todos-os-homicidios-da-america-do-sul-ocorrem-no-brasil-o-pais-dos-profissionais-da-violencia/#respond Thu, 13 Sep 2018 12:14:44 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/09/15365933325b968db49ccdd_1536593332_3x2_rt-150x150.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=255 Faz uma semana que o candidato à Presidência da República, Jair Bolsonaro, sofreu um atentado à faca e foi seriamente ferido, em Juiz de Fora, Minas Gerais. Inédito no período pós-redemocratização, o ataque teria todos os elementos para ser o ápice de uma sequência de atos de violência, intolerância e fatalidades que tem marcado o ano na segurança pública.

Afinal, 2018 será agora lembrado como o ano em que a violência política fez vítimas em todos os espectros ideológicos, começando em março pelo ainda não esclarecido assassinato da Vereadora da cidade do Rio de Janeiro, Marielle Franco, e de seu motorista, Anderson Gomes.

No Paraná, dois outros episódios que também não foram completamente esclarecidos merecem destaque, ou seja, os tiros contra a caravana do ex-presidente Lula, em março, e a tentativa, em junho, de atropelamento e dos tiros disparados contra o acampamento de manifestantes que apoiavam o ex-presidente próximos à sede da Polícia Federal em Curitiba, onde ele encontra-se preso.

Não bastassem tais cenas explícitas de violência política, conflitos entre brasileiros e venezuelanos na fronteira dos dois países, em Roraima, resultaram em cenas odientas de xenofobia e em um brasileiro morto apunhalado pelas costas e em um venezuelano linchado agora em setembro. O sofrimento provocado por uma ditadura de esquerda foi reforçado pelo abandono irresponsável das porosas fronteiras brasileiras e pelo fascismo de direita de uma população acometida por uma súbita e violenta patriotada com direito ao uso vergonhoso do nosso hino nacional.

Patriotada que tem ganhado força na esteira dos discursos de ódio que tomaram conta do país nos últimos anos, sobretudo a partir da forte divisão e polarização ideológica que é entusiasticamente vendida em verso e prosa por diferentes matizes políticas e candidatos, com destaque não exclusivo para Jair Bolsonaro, que “brinca” em defender “fuzilamento” de adversários e, em cena triste, posa, mesmo ferido, para foto de sua cama no hospital simulando armas de fogo com as mãos.

O crescimento de Bolsonaro nas pesquisas de intenção de voto para Presidente da República, embalado pela retórica da guerra, é sintoma da profunda deterioração do nosso atual quadro político e institucional e do fato de que somos um país que aceita o culto à violência como estratégia eleitoral; que aceita que a violência seja opção ética e política frente ao cenário de ódio, ressentimento, medo e insegurança que toma conta da nação. As “heresias” do candidato, como enxerga Leandro Narloch na sua coluna da Folha de S.Paulo de hoje (13) não são heresias contra o politicamente correto, como querem nos fazer crer o candidato e o colunista, mas uma ode à lei do mais forte, que solapa liberdades individuais, tão caras aos liberais que ambos se dizem porta-vozes.

Em sua história, o Brasil nunca conseguiu ter o monopólio do uso da força na mãos do Estado, ficando refém de múltiplos interesses privados, corporativistas e criminosos. E, mesmo assim, pouco olhamos para os números e efeitos das nossas opções político-institucionais e, não à toa, vamos repetindo e reproduzindo as mesmas receitas do fracasso civilizatório que nos assola. Continuamos a acreditar na “franqueza” dos discursos dos anjos guerreiros caídos do céu e não tratamos a segurança pública com a devida responsabilidade e prioridade que a área merece.

Se fizéssemos isso, notaríamos que as 63.880 mortes violentas intencionais registradas em 2017 pelo Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública respondem por por 64,9% de todos os mais de 98.400 homicídios anuais da América do Sul, enquanto o país soma 50,4% da população do subcontinente. Sozinhos matamos bem mais, proporcionalmente, do que todos os nossos 11 vizinhos somados (excluída a Guiana Francesa, que é um território ultramarino da França e não é um país soberano).

Muitas são as causas para esta realidade, mas, diante do ataque ao candidato Jair Bolsonaro, que marcou os últimos dias e deveria servir de reflexão sobre o que estamos fazendo com a nossa nação, é até mesmo surreal ver que há quem se disponha a estimular ainda mais o ódio como linguagem na política. A violência está no meio de nós e muitos não veem problemas e acham graça quando ela é publicamente defendida! Como já perguntou a Legião Urbana, que país é este?

Ao invés de uma forte e inequívoca condenação política de um infame ato criminoso e, passo contínuo, de um chamado à razão e ao Estado de Direito, o que se viu foi o candidato a vice-presidente na chapa do próprio presidenciável, Hamilton Mourão, dobrar a insana aposta do autor da facada e, tentando surfar na comoção pública, declarar que “se querem usar a violência, os profissionais da violência somos nós”.

Mas mais do que um ato falho do general da reserva que vestiu o figurino do político – e que precisa ser tratado enquanto tal e não mais como um militar da ativa [inclusive pelo Ministério Público Militar, que deveria apurar a notícia da existência de informes da inteligência militar contra políticos e, caso eles existam, a apropriação indébita de tais documentos públicos para fins eleitorais privados], Hamilton Mourão acabou, talvez involuntariamente, dando um retrato fiel do Brasil atual; um retrato de um país de “profissionais da violência”, que banalizam a vida e empilham corpos [negros e pobres em sua imensa maioria] ano após ano, sem que isso gere mobilização de mudança ou uma ampla comoção nacional. Um país que leva na “brincadeira” a sua segurança pública e fica de modorra quando confrontado com sua violenta história.

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