Faces da Violência https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br O que está por trás dos números da segurança pública Tue, 23 Nov 2021 18:56:47 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Demonização dos povos tradicionais no caso Lázaro não surpreende https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/07/02/demonizacao-dos-povos-tradicionais-no-caso-lazaro-nao-surpreende/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/07/02/demonizacao-dos-povos-tradicionais-no-caso-lazaro-nao-surpreende/#respond Fri, 02 Jul 2021 19:51:28 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/terreiros-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1810 Em nome da luta contra o mal, mesmo com recursos tecnológicos à disposição, a polícia seguiu invadindo os terreiros e violando direitos constitucionais

Ana Paula Mendes de Miranda*, Rosiane Rodrigues de Almeida** e Leonardo Vieira Silva***

A pressa em rotular Lázaro Barbosa de Souza fez com que ele fosse apresentado de muitas formas. Uma dessas classificações resultou em violações de direitos dos povos tradicionais por parte das polícias. Ao retratá-lo como um “fanático religioso”, as forças de segurança se tornaram os cruzados contemporâneos. As operações se transformaram em ações cristãs de “libertação do mal”, numa espécie de “batalha religiosa” acompanhada em tempo real pelas redes sociais.

Tudo começou com narrativas oficiais. O “boato” de que Lázaro estaria possuído por um “demônio” ou “espírito” foi veiculada pelo tenente Gérson de Paula, da PM de Goiás, através do site Metrópoles, no dia 15 de junho. O policial teria afirmado que o criminoso andaria com um “livro místico” que lhe garantiria “proteção espiritual”, razão pela qual “só poderia ser pego com auxílio de cães ou cavalos”. Na sequência, a entrevista do major Rio Branco, subchefe do Centro de Comunicação Social da Polícia Militar do Distrito Federal, ao UOL, que, ao analisar as dificuldades de prender o criminoso, afirmou: “se ele [Lázaro] é a força satânica, as forças de segurança são os anjos de Deus”.

A imprensa mordeu a isca e reconduziu a cobertura, deixando de lado o “perfil psicológico” e investindo na suposta prática demoníaca, mesmo com a ex-mulher e um amigo do suspeito afirmando que Lázaro era evangélico. O G1 reproduziu fotos, que teriam sido divulgadas pela polícia civil, de alguns assentamentos de Exu e pentagramas. Na reportagem, o delegado Raphael Barboza afirmou que os objetos foram encontrados na “casa” de Lázaro, sendo “indicativos de práticas de bruxaria e rituais”. Impressiona que, em pleno século XXI, o jornalismo brasileiro não saiba lidar com a diversidade religiosa. Mas o problema não parou aí.

A ação se voltou para investigar as suspeitas de acobertamento de Lázaro pelos terreiros da região. Diferentes grupos de policiais passaram a invadir, sem mandado judicial, cerca de 12 terreiros. Vídeos disponíveis nas redes sociais demonstram que antes do “combate” aos terreiros, os policiais oravam.

A “neoinquisição” utilizou-se de técnicas tradicionais de interrogatório e pressão dirigida aos suspeitos – os povos tradicionais de matrizes africanas. Em nome da luta contra o mal, com os meios tecnológicos mais modernos, seguiram invadindo os terreiros e violando direitos constitucionais.

As invasões, agressões físicas e verbais só cessaram quando as lideranças religiosas se mobilizaram, por meio das redes sociais, denunciando que as fotos não eram da “casa” de Lázaro, mas do babalorixá André de Oxum, que, após uma peregrinação, conseguiu registrar ocorrência policial sobre os abusos sofridos. Os afrorreligiosos buscaram os meios legais e parceiros que os apoiassem nas suas reivindicações: mandado de segurança para proteção das casas; apuração de responsabilidades das forças policiais pelas agressões; reparação dos danos/agressões; retratação dos meios de comunicação, e garantia do Estado para o direito à liberdade e integridade dos territórios tradicionais.

A pressão serviu ao menos para que o G1 e o UOL se retratassem, pedindo desculpas pelos “erros no processo de produção” das reportagens. O Metrópoles nada fez até o momento da redação deste texto. As instituições policiais seguiram caladas diante da violação que produziram.

Há mais de 30 anos se discute no Brasil que as instituições de segurança pública não têm o direito de dispor de forma ilimitada do uso da força. Há que se respeitar os limites legais que estabelecem que o mandato de uso da força, conferido aos agentes de segurança, não pode violar os direitos fundamentais.

Analisando os relatos e reportagens fica evidente que o início das agressões se deu pelas forças do Estado, difundindo a ideia de que se tratava de uma missão religiosa de libertação do mal. O que vimos é o desrespeito aos preceitos fundamentais basilares, com a invasão ilegal dos terreiros e a espetacularização midiática das operações. O episódio lembra “A Quebra de Xangô”, ocorrida em Alagoas, em 1912, quando terreiros foram invadidos e destruídos com a mesma intenção.

Inaceitável que as operações policiais funcionem como dispositivo publicitário de produção de medo e violação de direitos. Quem ganha com a encenação e espetacularização da insegurança? Trata-se de um fenômeno antigo que explora a violência como mercadoria – notícia – e transforma o público em mero espectador.

Mais uma vez negou-se a humanidade aos povos afroameríndios, para em seguida negar-lhes os direitos. A demonização dos terreiros pelas igrejas cristãs, pela mídia, pelas agências estatais, vem da colonização. Ela serve para generalizar o medo, para organizar moralmente a sociedade em torno de um modelo excludente da diversidade, que trata o mundo de modo dual (bem versus mal), no qual se inventam os “demônios” para que sejam sempre os culpados. Não se trata apenas de uma questão religiosa, mas sim de uma ética, um modo de pensar, sentir e agir que orienta práticas institucionais. Neste caso a demonização serviu para ocultar os interesses financeiros de um fazendeiro, que teria escondido o criminoso. Ele não permitiu a entrada das polícias em sua fazenda, mas não houve uma invasão tal como nos terreiros, pois ele foi preso mediante outro tipo de ação. Nada de novo na política e na polícia brasileiras.

 

*Professora de Antropologia (UFF); Pesquisadora do INCT-INEAC (UFF); Bolsista de Produtividade do CNPQ 2.

**Bolsista de Pós-Doutorado em Antropologia (FAPERJ); Pesquisadora do INCT-INEAC (UFF).

***Doutorando em Antropologia (UFF); Pesquisador do INCT-INEAC (UFF)

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Na edição desta semana, leia também “Vinte anos da criminalização do assédio sexual” e “Casos DG e Floyd, duas mortes e a mesma causa: a letalidade policial“.

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As mulheres nos quartéis também sofrem violência https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/05/25/as-mulheres-nos-quarteis-tambem-sofrem-violencia/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/05/25/as-mulheres-nos-quarteis-tambem-sofrem-violencia/#respond Tue, 25 May 2021 14:05:10 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/fotofaces-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1758 Casos recentes de assédio e importunação sexual contra profissionais de segurança em suas corporações revelam a necessidade de ampliar o debate sobre o tema no país

Camila Paiva*

Ser mulher no ambiente militar não é nada fácil. Afinal, as instituições militares foram feitas por homens e para os homens. Nesse sentido, as mulheres muitas vezes são vistas com “invasoras” desse espaço, não sendo incomum ouvir que ali não é o lugar delas. Se, em uma sociedade machista e patriarcal, que vê o corpo da mulher como propriedade do homem ou algo público, já é difícil para a mulher lidar com certas situações, imaginem dentro de uma corporação composta por apenas 10% de mulheres. Some-se a isso uma estrutura rígida hierarquizada, cheia de regulamentos, que coloca um superior hierárquico numa posição de poder absoluto acima do seu subordinado, e o resultado não poderia ser outro: casos frequentes de assédio e importunação sexual dentro dos quartéis.

Acompanhamos o caso recente da Soldado Jéssica, da Polícia Militar do Estado de São Paulo, que foi assediada sexualmente pelo seu Comandante de Batalhão, a maior autoridade em seu local de trabalho. Casada e com filhos, ela negou as investidas e, em consequência disso, enfrentou um terror de perseguição, ameaças, humilhações e violência psicológica indescritíveis. Jéssica saiu de sua terra natal para São Paulo em busca do sonho de ser PM, mas se viu dentro de um pesadelo. No final, teve que se afastar do trabalho, inicialmente por dispensa médica em virtude de sua saúde mental ter sido destruída por seu assediador. Mas, sem apoio institucional nenhum, foi além e entrou de licença por dois anos, tendo seu salário suspenso em razão de ser vítima de um crime. Existe alguma lógica nisso? Claro que não, e, como se não bastasse, a única saída que passa pela cabeça dela agora é sair da corporação pela qual tanto lutou para fazer parte, abrindo mão não só de sua carreira, mas também do próprio sustento.

A situação é extremamente revoltante, mas é uma realidade que grita dentro da caserna. Ao mesmo tempo, é um assunto proibido, um tabu, afinal precisamos preservar a “imagem das Instituições”. Mas, diante disso, quem está preservando nossas profissionais? Zelar pela imagem da corporação é, acima de tudo, coibir e punir com rigor qualquer tipo de prática nesse sentido, é defender as mulheres que estão ali arriscando suas vidas para proteger a sociedade e que não estão sendo protegidas. Mais do que nunca, precisamos encarar que esse problema existe e desenvolver políticas institucionais urgentes para combater o assédio sexual dentro dos muros dos quartéis.

Ano passado aconteceu um episódio na Polícia Militar do Ceará, em que um sargento postou um áudio em um grupo de Whatsapp dizendo que as mulheres nos quartéis deveriam servir exclusivamente para “desestressar ” os homens, com o cunho sexual e pejorativo. A mensagem prosseguia com o sargento dizendo que era muito estressante ser policial militar para o homem, e que as mulheres militares deveriam ficar esperando eles retornarem ao quartel para ficar mais uma hora com um, depois meia hora com outro, sugerindo a prestação de favores sexuais por parte delas. Tomada por extrema indignação, fiz um vídeo reproduzindo o referido áudio e compartilhei nas redes sociais, servindo de gatilho para várias mulheres que o assistiram. O resultado foi uma enxurrada de mais de 300 depoimentos em minhas redes sociais de mulheres relatando os casos mais absurdos possíveis de machismo, assédio e importunação sexual sofridos dentro da sua corporação; mulheres que foram aposentadas como loucas, pacientes psiquiátricas incapazes de continuar no serviço ativo; mulheres que foram estupradas, perseguidas, ameaçadas, transferidas, sofreram aborto, perderam o emprego, tentaram suicídio e todo tipo de situação bizarra decorrente dessa prática.

Para tentar enfrentar esse tipo de horror, criamos um movimento nas redes sociais chamado Somos Todas Marias, em que reproduzimos muitos desses relatos para que o poder público e a sociedade tomassem ciência da gravidade dessa realidade e que assim buscássemos uma solução efetiva para tal. Que a repercussão do caso da Jéssica venha fortalecer essa luta e inspirar outras mulheres a não se calarem e a denunciarem esses criminosos. Não descansaremos enquanto nossas mulheres e profissionais de segurança pública possam também sentirem-se seguras em seu ambiente de trabalho, sem qualquer tipo de molestação, e com o respeito e a vigilância de toda a nossa sociedade.

*Tenente-coronel do Corpo de Bombeiros Militar de Alagoas e Presidente da Comissão Mulher Segura da Secretaria de Segurança Pública de Alagoas.

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Na edição desta semana, leia também “Ciência e erro na investigação policial” e “Uma milícia no Rio Grande do Sul?”.

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Mortes e silenciamento na rotina de servidores penais https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/04/15/mortes-e-silenciamento-na-rotina-de-servidores-penais/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/04/15/mortes-e-silenciamento-na-rotina-de-servidores-penais/#respond Thu, 15 Apr 2021 19:43:44 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/faces1504-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1723 As orientações nacionais e internacionais a respeito do enfrentamento à pandemia mais uma vez mostram o distanciamento do cárcere legal e do cárcere real no Brasil

Maria Palma Wolff*

Felipe Athayde Lins de Melo**

A prisão, como se sabe, não é uma instituição que impacta apenas a vida das pessoas privadas da liberdade; sua repercussão chega também a suas famílias e ao conjunto de trabalhadores que fazem possível a existência desta “fábrica de moer gente”. Todos são por ela afetados, e, ainda que cada um destes grupos tenha sua especificidade, certamente não seria diferente no cenário da pandemia de Covid-19. Então, vejamos.

No dia 8 de abril deste ano, a imprensa de Ribeirão Preto, cidade a cerca de 330 quilômetros da capital paulista, noticiou a morte de três homens que se encontravam presos na penitenciária daquela cidade. Nas redes sociais, “especialistas” correram para expor seus pareceres.

Da tradicional ojeriza aos corpos indesejáveis – “só três, que pena” – chegou-se a mais nova manifestação do desprezo pela vida: o negacionismo pandêmico que nos é apresentado diariamente por aquele que deveria liderar os esforços de enfretamento à Covid-19. “Ué, mas não estão confinados? Isso prova que o isolamento não serve pra nada”.

Dias antes, a cerca de 90 quilômetros dali, a penitenciária de Araraquara registrou, segundo o noticiário, a contaminação de mais de 360 presos. Igualmente, a turba glorificou o caso como demonstração do fracasso das medidas de isolamento social adotadas pela prefeitura municipal.

Em ambas as situações, porém, a imprensa e a administração penitenciária obtiveram enorme êxito em ocultar outro dado da tragédia que caracteriza as prisões no Brasil: os danos e as mortes dos servidores penais causados pela Covid-19.

Desde o início da pandemia, foram publicadas diferentes normas e orientações de prevenção à propagação da Covid-19 em prisões. Em março de 2020, o Departamento Penitenciário Nacional emitiu portaria recomendando, dentre outras medidas, a suspensão das visitas de familiares e organizações da sociedade civil. Por seu turno, o Conselho Nacional de Justiça propôs a flexibilização dos dias de visitas com a concomitante adoção de outras medidas preventivas, que deveriam atingir também os servidores.

Passado pouco mais de um ano, boletim publicado pelo CNJ em abril de 2021, informa que haviam sido realizados em todo o país cerca de 275 mil testes em pessoas presas e menos de 70 mil em servidores penais, num contingente superior a 117 mil trabalhadores. Os dados de contaminação, por sua vez, atingiram a marca de, respectivamente, 51.974 e 18.081 casos, com o registro de 159 óbitos de pessoas privadas de liberdade e, pasmem, 163 mortes de servidores.

Os números, à primeira vista, sinalizam um razoável controle da disseminação do vírus pelos cárceres brasileiros, pois não se observa aqui aquilo que vem ocorrendo, por exemplo, nas prisões americanas, em que se registra uma média de sete mortes ao dia. Os dados, porém, precisam ser olhados com cautela, pois apontam para outros efeitos das medidas que permitem colocá-los em questionamento.

Uma medida adotada em todos os estados foi a suspensão de visitas, o que, supostamente, geraria o isolamento social das pessoas presas. Mas o fluxo dos servidores segue em curso, sem a adequada provisão de itens de prevenção e, principalmente, expostos a novos constrangimentos no exercício do trabalho.

Durante o surto de contaminação na penitenciária de Araraquara, por exemplo, segundo funcionários, ao menos 30 servidores foram infectados. Dentre estes, veio a óbito um diretor. Os casos, contudo, não repercutiram na imprensa e a diretoria do estabelecimento se esforçou em ocultá-los.

Assim, as pessoas afastadas com Covid-19 foram “orientadas” a não reportarem a contaminação em trabalho e servidores contam, inclusive, terem recebido “visitas” domiciliares de seus superiores para reforçar a “orientação” de nada comentar sobre o óbito. Nas palavras de uma servidora, “sequer a morte de um colega de mais de 20 anos nós pudemos chorar”.

As orientações nacionais e internacionais a respeito do enfrentamento à pandemia mais uma vez mostram o distanciamento do cárcere legal e do cárcere real no Brasil, ou seja, do também seletivo cumprimento das leis e das normas. Neste sentido, a proibição das visitas, por exemplo, além de uma medida sanitária, é uma estratégia que contribui para as limitações de transparência dos dados e para manter não só pessoas dentro dos muros, mas também a sua própria realidade.

Ao negacionismo da seletividade de classe e raça sempre existente no sistema penal, da existência de tortura, do não cumprimento da Lei de Execução Penal, das péssimas condições de trabalho, acrescemos a negação do impacto da Covid-19 no contexto prisional e também das consequências para a saúde dos servidores penais.

Tudo isso se soma à tensão e à violência existente no cotidiano de trabalho na prisão e à frustração pela falta de recursos humanos e materiais para o desempenho de suas funções, à falta de serviços de atendimento para a saúde funcional. Agora acrescemos tudo o que representa a pandemia da Covid-19 e seu errático enfrentamento pelas autoridades brasileiras.

 

*Graduada e Mestre em Serviço Social pela PUCRS, doutora em Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais pela Universidade de Zaragoza, Espanha, e pós-doutora pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Atualmente é professora e pesquisadora da Faculdade de Serviço Social da PUCRS, atuando nas áreas de direitos humanos, movimentos sociais e políticas sociais.

**Doutor e Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos, onde integra o Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos. É membro fundador do Laboratório de Gestão de Políticas Penais, da Universidade de Brasília. Possui pós-graduação em Gestão de Organizações do Terceiro Setor (Universidade Mackenzie – 2002), graduação em Filosofia (Universidade Estadual Paulista – 1998) e formação em metodologias de trabalho cooperativo pelo GETS/United Way of Canada.

 

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Na edição desta semana, leia também “Um passo para a redução do descontrole armado” e “Policiais não são heróis: alertas emitidos ao campo da segurança pública”.

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O mito do policial herói e a farsa do reconhecimento profissional https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/01/25/o-mito-do-policial-heroi-e-a-farsa-do-reconhecimento-profissional/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/01/25/o-mito-do-policial-heroi-e-a-farsa-do-reconhecimento-profissional/#respond Mon, 25 Jan 2021 14:27:06 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/Fernando-Frazão-Agência-Brasil-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1635 O policial não precisa morrer no cumprimento do dever; necessita reconhecimento pelo serviço público que executa e não pelo sangue que é derramado em falsas batalhas.

Alexandre Pereira Rocha*

Ganhou grande repercussão o assassinato do policial militar Derinalto Cardoso dos Santos ao tentar impedir um assalto na Baixada Fluminense, Rio de Janeiro, no dia 5 de dezembro de 2020. O caso se espalhou rapidamente pelas redes sociais, especialmente no meio policial. Chamou atenção a frieza de um dos assaltantes, que não titubeou em disparar um tiro à queima-roupa na cabeça do policial. Mais um agente de segurança pública se foi. Restam a dor e a indignação de familiares e amigos. Condolências e salvas de tiros. Nada mais.

O caso ficou registrado em filmagens do estabelecimento comercial. O policial Derinalto se depara com um assalto e não declina de sua missão. Assim, ele adentra bravamente na cena do crime. Pelas imagens, parece que Derinalto identifica um suspeito. Mesmo com o delinquente sob sua mira, ele não dispara imediatamente. Por sua vez, um comparsa se aproveita da situação e surpreende Derinalto com um tiro na cabeça. Pessoas correm em desespero. Os assaltantes fogem. Derinalto fica caído no chão.

Por fatalidade, o policial se tornou a vítima no cumprimento do dever. Por isso, ele ganha o reconhecimento póstumo de herói. Ele também seria visto como herói, só que num estágio mais fantasiado, caso tivesse obstado o assalto com tiroteio e morte dos delinquentes. Nessa hipótese, é bem provável que fosse elogiado pessoalmente pelo atual presidente da República Jair Bolsonaro, condecorado pela polícia militar e aplaudido pelo jornalismo pinga-sangue. Não obstante, a realidade é outra: Derinalto foi morto e a designação de mito heróico não muda isso.

A morte do policial Derinalto não é um mito. Da mesma forma, não são lendas os frequentes embates entre criminosos e policiais pelas periferias do Brasil afora. Do mesmo modo não é mito o fato de policiais terem de colocar suas vidas em risco no enfrentamento a delinquentes fortemente armados. Pelo contrário, tudo isso é uma trágica realidade. Mas o mito está nos discursos de certas autoridades, políticos e setores sensacionalistas da imprensa, que lucram com o mantra da guerra contra o crime. O mito está nas representações sociais que idealizam o martírio como próprio do exercício policial.

O mito do policial herói é parte do imaginário social e revigorado por filmes, histórias e romances ao estilo Tropa de Elite. Isso, em si, não é problema. A questão é quando isso se torna parte intrínseca das políticas de segurança pública no Brasil. Esse mito não encontra lastro na realidade, mas em narrativas criadas e replicadas que mascararam dramas da segurança pública. É fato. O mito do policial herói – que é capaz de se imolar em prol da proteção da sociedade – é conveniente para ocultar as precárias condições de trabalho, baixos salários e desvalorização da maioria dos policiais brasileiros.

Esse mito desvirtua o papel do policial como profissional de segurança pública. Isso porque ele consolida conceitos autoritários, seja, em nível individual, ao estimular a agressividade e a coragem visceral como padrão de ser policial; ou ainda, em nível institucional, ao incentivar prioritariamente estratégias bélicas e violentas como formas eficazes de policiamento.

A verdade é que o mito do policial herói é uma farsa de reconhecimento profissional, o qual desconsidera inúmeras discriminações entre cargos e patentes no âmbito das corporações; além das gritantes distorções entre polícias civis e militares em níveis estadual e nacional. Em suma, disfuncionalidades em termos de remunerações, carreiras, organizações, legislações e condições de trabalho, as quais evidenciam que há várias realidades policiais no Brasil, mas todas equivocadamente interpretadas pelo mito do policial herói.

O policial brasileiro não precisa do distintivo de herói. Afinal, isso não agregou nada ao policial Derinalto, bem como para tantos outros policiais que trabalham em situações adversas e desvalorizados profissionalmente. De fato, o que o policial precisa é ser avaliado como oficial de segurança pública, o que implica reformas nas arcaicas estruturas verticalizadas das polícias. Enfim, o que o policial necessita é de profissionalização, para ser reconhecido integralmente pelo serviço público que executa e não pelo sangue que é derramado em falsas batalhas.

Além disso, o tenente-coronel ainda acrescentou que o PM deve adaptar-se ao meio no qual ele está inserido no momento de sua atuação, de forma que ele não pode ser “grosseiro com uma pessoa do Jardins que está ali, andando”.

A partir da fala do referido oficial, nos parece óbvio que os episódios que envolvem o abuso de autoridade, de poder e o excesso de violência por parte das instituições de segurança pública, em especial das PMs, e que são divulgadas pela mídia constantemente, como ocorreu em dois casos neste mês junho de 2020 em SP, corroboram a lógica ideológica da atuação policial no Brasil, que vê no pobre e negro da periferia o seu inimigo a ser combatido e “domado” e, neste sentido, nada melhor que os exemplos da vida nua e crua para desvelar esta realidade.

Que o diga o caso dos PMs que foram solicitados para atender a uma ocorrência de violência doméstica na casa de um empresário morador de Alphaville, um condomínio de alto padrão na Grande São Paulo, e que foram recebidos por ele aos xingamentos, insultos e todos os tipos de grosserias e destemperos típicos de uma elite raivosa e demagógica que, diga-se de passagem, “defende” os policiais nas redes sociais. Importante frisar que todo o rompante autoritário do dito empresário foi gravado, assim como também foi clara a passividade dos policiais militares para agir diante do explícito desacato cometido por parte do “cidadão de bem”.

Por mais que discursos corporativistas de outros policiais queiram defender os PMs utilizando-se do argumento do controle emocional necessário, dificilmente o medo do empresário por sua condição econômica aparece como o fator determinante para o corpo inerte dos policiais diante de uma imagem que exigia uma ação enérgica para conter um agressor em potencial.

No outro caso, ao contrário, imagens gravadas revelaram em cadeia nacional os espancamentos cometidos por PMs a um jovem em uma periferia da zona norte de São Paulo. Na cena, oito PMs usam da brutalidade para cometer a violência contra um jovem passivo que diz “não ter feito nada” e ainda por cima trata os PMs por “senhor”, afirmando ser “trabalhador”. Em uma patrulha com oito policiais, em que todos estão dispostos a usar da violência contra o jovem pobre, fica difícil pensarmos em uma situação de exceção quanto à forma como as PMs atuam nas periferias.

Recordemos do caso “Rambo”, ocorrido na Favela Naval, em Diadema, em 1997, no qual policiais militares foram filmados por um cinegrafista amador violentando e extorquindo moradores em uma blitz, o que resultou na morte do mecânico Mário José Josino, de 29 anos. O PM conhecido por Rambo atirou nas costas do mecânico, que se encontrava em um carro em movimento. Passados quinze anos, e após cumprir oito anos de prisão, Rambo deu uma entrevista à TV afirmando que agiu “para consertar uma sociedade que não tem jeito de consertar”, de certa forma eximindo-se da culpa e racionalizando sua justificativa como se a morte de um homem pobre e inocente não significasse nada.

De um lado, um jovem na periferia paulista, um Josino, um Amarildo e tantos outros que têm em comum o fato de pertencerem aos estratos sociais menos abastados da sociedade, bem como o fato de receberem do Estado, nestes casos representados por suas PMs, os tiros, porradas e bombas. De outro o empresário e a elite como um todo que, para além de já receberem do Estado as PMs para fazer valer seu status quo, também desrespeitam o profissional e, neste contexto, a não ser que sejamos acéfalos ou que tenhamos interesses, fica difícil não ter uma visão crítica sobre a atuação do Estado através dos aparatos de segurança pública, principalmente de suas policias militares, sobretudo no que diz respeito à violência contra os menos favorecidos.

Portanto, quem precisa de polícia e é parado no Brasil, em grande medida, são os “periferizados”, em grande parte negros, vítimas de um processo histórico de abandono, que têm de suportar a autoridade impositiva de uma polícia que foi criada e se desenvolveu para lidar com os pobres e estigmatizados. Pensando por uma lógica psicanalítica, como os PMs em sua maioria se originam das classes médias e baixas, talvez, inconscientemente, eles ajam para exercer poder contra aqueles que representam a projeção deles mesmos, como uma forma de destruir uma imagem que deixa explícito que eles/elas estão também na base maior e inferior da hierarquia social.

Mas, em conjunto, só podemos reproduzir aquilo que aprendemos a fazer pela formação profissional que passamos, pelo machismo e ideal de masculinidade e virilidade, pela pressão grupal, pelo desejo de potência, pelo sadismo em impingir sofrimento ao outro. Tudo isso só revela o quanto a violência policial demonstra ser um problema distante de resolvermos em nossa cada vez mais frágil democracia.

 

*Alexandre Pereira da Rocha é Doutor em Ciências Sociais (UnB), Policial Civil no Distrito Federal (PCDF) e Associado do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

 

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Na edição desta semana, leia também “Saída temporária na execução penal: o paradoxo” e “A sucessão nos Estados Unidos e o perigo das forças de segurança politizadas”

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Os reacionários da política e o DNA policial https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/10/20/os-reacionarios-da-politica-e-o-dna-policial/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/10/20/os-reacionarios-da-politica-e-o-dna-policial/#respond Sun, 20 Oct 2019 21:12:19 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/10/Barro-Branco-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1134 Com Alan Fernandes. Major da Polícia Militar do Estado de São Paulo e Doutorando na FGV-EAESP

O Brasil tem assistido um forte movimento de politização das suas polícias, com vários de seus integrantes optando por deixarem suas carreiras para trilharem o mundo da política partidária e eleitoral. Se isso traz, em um primeiro momento, a sensação de que demandas históricas das instituições policiais terão voz e vez nos Poderes Executivo e Legislativo, é fato que também traz tensões sobre papéis e regras de conduta que as polícias devem perseguir.

Em termos ideológicos, como nos lembra o criminólogo inglês Robert Reiner, um dos mais respeitados estudiosos sobre polícia, evidências em vários lugares no mundo mostram que há, por questões históricas e socioeconômicas, uma maior propensão de policiais aderirem às pautas conservadoras e, por isso mesmo, é até esperado que os políticos egressos das fileiras policiais sejam majoritariamente desse espectro político-ideológico.

O problema é que, temos notado que a agenda conservadora tem sido confundida, em muitos casos, com uma agenda reacionária e de apologia à violação de direitos fundamentais. Isso não é ser conservador, mas é ser cúmplice com a banalização da violência e das péssimas condições de vida e trabalho a que são submetidos os policiais brasileiros.

O DNA do policial é, aqui ou em outras democracias, o de proteger o cidadão e garantir que ele possa usufruir seus direitos, sem distinções de classe, renda, raça ou qualquer outra clivagem de identidade.

Sabemos, entretanto, que as concepções dos sentidos do trabalho de polícia ostensiva, que, no Brasil, é realizado pela Polícia Militar, são alvos de disputas históricas e que têm muito a ver com a formação do Estado Nação e a ideologia da segurança interna e de defesa nacional.

Tomando São Paulo como referência, as discussões ocorridas entre as décadas de 40 e 80 transitaram entre a adesão da PM a uma lógica militar, que seria refratária ao emprego da corporação às missões ligadas ao policiamento. Posteriormente, com a redemocratização, novos elementos compuseram essa disputa, com as discussões sobre a aproximação da Polícia Militar à promoção e defesa dos Direitos Humanos.

Essas tensões se intensificaram em relação à formação dos Policiais Militares, em especial de sua elite dirigente, cuja formação funciona desde o início do século passado, no que hoje se conhece por Academia de Polícia Militar do Barro Branco, responsável por ministrar o antigo Curso de Formação de Oficiais.

Em meio a um quadro em que o Brasil experimenta um ciclo de revalorização do papel das Forças Armadas na formação das Polícias Militares, é interessante relembrar que brigas entre os quadros dirigentes da própria escola, transferências e mudanças curriculares são o retrato das constantes disputas entre variados grupos que disputaram, internamente, a hegemonia intelectual da formação policial, conforme nos aponta os trabalhos de Ênio Antônio de Almeida.

Entre avanços e retrocessos, a Academia do Barro Branco, e por consequência, a própria Polícia Militar, vem paulatinamente se posicionando no universo acadêmico como uma instituição que busca promover que suas missões constitucionais, definidas como o exercício da polícia ostensiva e da preservação da ordem pública, se deem dentro de uma racionalidade política, em que estão presentes os princípios da eficácia e eficiência, em um contexto em que a democracia é a base dos arranjos político-institucionais sobre o qual se assenta o papel do Estado.

Porém, considerando que o ensino policial é uma forma de moldar a instituição ao projeto estratégico que a move, que no caso segue os comandos da nossa Constituição, não é surpresa vermos que os modelos de ensino hoje vigentes sejam objeto de sonora contestação e que a Academia do Barro Branco volte a ser palco de um campo de batalha ideológico.

Em artigo publicado no Blog do repórter Fausto Macedo, de 19 de outubro passado, intitulado A Polícia vem perdendo o seu DNA , o Tenente Santini (PSD/SP), vereador pela cidade de Campinas e Policial Militar da Reserva, afirma que a PM de São Paulo “vem passando pela mais grave crise de identidade de sua história”.

Isso não em razão de “baixos salários, equipamentos sucateados, conflitos internos”, mas, segundo ele, uma das raízes que levaram a essa crise é o fato que o Curso de Formação de Oficiais “vem ganhando um viés acadêmico e buscando perfis mais sociais e não combativos, em que o intelecto se sobrepõe a valores seculares como lealdade, constância, honestidade e coragem”.

Esse processo teria acabado “com o moral dos verdadeiros caçadores de bandidos”. Sua argumentação continua por todo o texto, enaltecendo as práticas de “caçar, prender e derrubar bandidos” as quais teriam sido diminuídas por um academicismo dos cursos de formação e por enfoque aos conteúdos voltados à gestão, na capacitação dos Oficiais.

Não fosse pela defesa que o Oficial e Vereador faz em relação às práticas nada aderentes aos primados do Estado Democrático de Direito, teria que sua argumentação soa como um elogio quanto às medidas implementadas nos últimos 30 anos pela Polícia Militar de São Paulo no que se refere à formação de seus quadros, na medida em que retrata que o afastamento das práticas de abuso policial tem composto as lógicas pedagógicas dos cursos da corporação. Sua sustentação é sinal de que, sim, avanços têm sido obtidos.

Avanços que aliam tanto maior respeito ao cidadão, seja no respeito às seus direitos e garantias individuais, seja na oferta de um serviço que promova o enfrentamento à violência e proporcione melhores níveis de segurança.

Não é estabelecendo uma divisão entre os patrulheiros que “se preocupam com sua área de patrulhamento” e os “Billy’s” que, segundo o autor, “são os verdadeiros policiais”, pois “trazem respeito às ruas e levam medo aos marginais”, que se pode pensar minimamente qualquer política de segurança pública.

O panorama descrito pelo autor assemelha-se, muito mais, a um Brasil que lutamos por superar, em que ordem pública e segurança se construíram com base na perseguição, no açoite e na tortura. São ecos do passado que teimam em rondar o nosso contínuo presente.

É preciso que, à semelhança de outras áreas do Estado brasileiro, a capacitação e o reconhecimento dos profissionais que trabalham na segurança pública promovam, indistintamente, respeito aos cidadãos destinatários das ações do governo. Reconhecê-los ou fazê-los atuar como “caçadores” é, tanto, desconsiderá-los nas suas próprias dignidades, como reprodutores de uma política condenável e violenta.

Todavia, como contraponto racional à argumentação do autor, pode-se dizer que os avanços “intelectuais” (apenas para utilizar os mesmos termos do texto em referência) não são contrários aos valores de lealdade, constância, honestidade e coragem. As evidências mostram que maior capacitação acadêmica não afasta a excelência na prestação do serviço policial, mas, pelo contrário, o qualifica.

Atuar em área tão sensível da sociedade brasileira, como é a segurança pública, exige, aliado aos valores éticos citados pelo vereador e oficial, capacidade de fazer a gestão da vida, da liberdade e da integridade dos cidadãos, missões que vão além e afastam quaisquer aproximações quanto a serem os policiais temidos por criminosos.

Mas é preciso, por final, concordar com o vereador em determinado ponto: “a polícia está cansada de políticos que utilizam a instituição como plataforma política em planos de governo”. A língua é, de fato, o chicote da alma.

Nenhum problema em ser conservador, mas todos os problemas do mundo com uma agenda reacionária e que busca manter privilégios e desigualdades; busca manter a polícia como guarda pretoriana de alguns projetos políticos e não como promotora da cidadania.

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OAB Nacional e várias entidades lançam Mesa Nacional de Diálogo contra a Violência https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/08/15/oab-nacional-e-varias-entidades-lancam-mesa-nacional-de-dialogo-contra-a-violencia/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/08/15/oab-nacional-e-varias-entidades-lancam-mesa-nacional-de-dialogo-contra-a-violencia/#respond Thu, 15 Aug 2019 14:31:02 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/08/Dom-Paulo-320x213.jpeg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1030 O Conselho Federal da OAB sediou nesta quinta-feira (15) a Mesa Nacional de Diálogo Contra a Violência. O objetivo da mesa é reunir setores da sociedade civil para debater soluções para o crescimento da violência no Brasil e abrir um diálogo nacional em torno do clima de intolerância que cresce no país. Segundo dados do Atlas da Violência, publicação do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do IPEA, o Brasil é um dos países mais violentos do mundo, com 65.602 homicídios registrados em 2017, 72,4% decorrentes de mortes por armas de fogo. Deste total, 75,5% dos mortos são negros.

Iniciativa da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos ‘Dom Paulo Evaristo Arns’ – Comissão Arns, a Mesa Nacional de Diálogo Contra a Violência reuniu representantes da OAB Nacional, da Comissão Arns, Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Conselho Nacional dos Direitos Humanos, Conselho Nacional das Igrejas Cristãs (Conic), Conselho Federal de Psicologia (CFP), Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Núcleo de Estudos da Violência (NEV/USP), Instituto Sou da Paz e Centro Nacional de Africanidades e Resistência Afro-Brasileira (Cenarab). Durante o lançamento, foi lido o seguinte texto:

“O Brasil tem sofrido, com crescente horror, o recrudescimento de um dos piores traços da formação nacional: a violência incorporada ao cotidiano, especialmente das camadas de baixa renda. Segundo o Atlas da Violência, em 2017 houve uma taxa de 31,6 mortes violentas por 100 mil habitantes, a maior da história do país. Dos 65 mil assassinados, a maioria absoluta era composta de jovens e negros.

Às chacinas gratuitas, como a de Suzano (SP) no início deste ano, e aos morticínios planejados, como o de Altamira (PA) em julho passado, somam-se as balas, endereçadas e perdidas, que a cada dia ceifam o futuro e tornam infernal a vida dos indivíduos. Nada menos que 74% dos homicídios são cometidos por armas de fogo, um dos maiores indicadores do mundo. Propostas de facilitar o acesso a armas de fogo tornarão o quadro ainda mais grave. A escalada armamentista coloca em risco toda a população, e em particular a classe policial, que tem por dever estar na linha de frente dos conflitos.

Para piorar, recentemente têm proliferado os discursos de ódio, ajudando a conformar subjetividades violentas e intolerantes, e declarações públicas que legitimam a letalidade de órgãos oficiais. Ativistas e profissionais que repudiam tais pontos de vista se encontram em situação de crescente insegurança.

Está na hora de gritar basta! As entidades representativas da sociedade civil precisam mobilizar pessoas e instituições para construir uma agenda propositiva de segurança que respeite os direitos humanos e uma cultura cidadã capaz de refazer os laços de sociabilidade em dissolução.

Imbuídos de tal espírito, convidamos de maneira ampla organizações, movimentos e associações de variados credos e ideologias para sentarem-se juntos e discutir o que fazer. Se nos perguntarem agora como iremos nos organizar e como faremos para reduzir os índices que hoje assustam e envergonham a cidadania, responderemos com honestidade que não sabemos. Porém, estamos convencidos que a paz só será alcançada com o respeito aos direitos humanos e a promoção da participação democrática. Acreditamos que a mobilização desde baixo saberá inventar os caminhos necessários para chegar lá.

Por isso, lançamos hoje a iniciativa de uma Mesa Nacional de Diálogo contra a Violência. A Mesa não tem definições prévias, que serão construídas pelos que a ela aderirem. A única função das entidades que aqui convidam as demais é a de levantar as bandeiras da tolerância profunda, do respeito entranhado ao direito do outro e da busca da união na diversidade. Apostamos que em torno destes princípios poderemos contrapor ao monstro da violência a energia viva da sociedade mobilizada”.

Não podemos ficar indiferentes!

 

 

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A esquerda não é o maior inimigo do governo Bolsonaro https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/01/03/a-esquerda-nao-e-o-maior-inimigo-do-governo-bolsonaro/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/01/03/a-esquerda-nao-e-o-maior-inimigo-do-governo-bolsonaro/#respond Fri, 04 Jan 2019 01:42:00 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/07/Troche-2-150x150.png https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=544 Hoje (3), Fernando Canzian, repórter da Folha, defendeu em coluna que Bolsonaro reúne todas as condições para ser duplamente cruel com as esquerdas. Segundo o texto do colunista, o maior desafio do governo do capitão reformado do Exército será o de encontrar recursos para tapar o rombo de R$ 300 bilhões nas contas públicas. Caso isso ocorra, o ciclo de crescimento da economia tende a ser longo e fortalecer o projeto de poder do atual ocupante da Presidência da República, alijando as esquerdas por muitos anos do poder.

Até aí, a análise é perfeita. Mas, na sequência, Canzian argumenta que o caminho mais rápido para a redução do déficit passa pela redução da máquina pública e que, se esta redução for efetivamente realizada, ela afetaria a base de sustentação sindical da esquerda, reforçando o seu isolamento e o seu enfraquecimento.

Olhando pela economia, o texto de Fernando Canzian é provocativo e coloca na mesa, de fato, os riscos corridos pela esquerda brasileira (não muito diferentes do que ocorre nos EUA e na Europa). Também coloca um cenário de oportunidades para o novo governo que, se aproveitadas, reverterão o quadro de crise sistêmica em nosso modelo de organização econômica.

Todavia, se olharmos na perspectiva de quem tem exercido o papel de fiadores da ordem e da narrativa bolsonarista, veremos que a redução do déficit público enfrentará estamentos de poder, para utilizar um conceito clássico da Sociologia, na administração pública que em nada são simpáticos à esquerda e que acumulam enorme capacidade de pressão e reação político-institucional.

Estou falando dos militares federais, dos policiais, dos juízes e dos integrantes do Ministério Público. Na verdade, o duplo risco para a esquerda identificado pelo colunista também se apresenta, na mesma intensidade, ao governo Bolsonaro. No caso, o maior desafio de Jair Bolsonaro será equilibrar interesses econômicos e corporativos antagônicos sem desequilibrar a sua base de sustentação política e, com isso, retroalimentar o cenário de falta de confiança dos agentes econômicos.

Em um exemplo nítido, as maiores resistências à reforma da previdência, em última instância, virão destas carreiras públicas, que nunca foram base sindical das esquerdas, e cujos benefícios têm um impacto nas contas públicas muito maior do que qualquer outro segmento. A discussão sobre o aumento dos salários e a proibição/recriação do auxílio moradia de juízes segue na mesma direção. A leitura do colunista desconsidera, portanto, que a máquina pública não é homogênea e é perpassada por inúmeras disputas e culturas organizacionais.

Dito de outra forma, o desmonte da máquina, para ter legitimidade social, exigirá, entre outras frentes, um debate transparente sobre eficiência e custo do sistema de justiça e segurança e de manutenção da ordem que talvez o governo Bolsonaro, por suas alianças e opções ideológicas, não queira e/ou não consiga levar adiante.

Ao contrário, se analisarmos as primeiras medidas do novo governo, veremos que a sua estratégia de ação desenhada passa pela aposta dobrada na captura de tais instituições para a guerra cultural que o clã Bolsonaro, Ônix Lorenzoni, Damares Alves, Vélez-Rodrigues e Ernesto Araújo instituíram visando a desconstrução da agenda da quarta onda de direitos fundamentais (onda que deságua no reconhecimento de identidades e no pluralismo democrático), esta sim muito cara aos movimentos sociais e principal eixo de atuação da esquerda até agora (o foco sindical perdeu força faz algum tempo e não é mais a base de sustentação principal da esquerda, a meu ver).

Bolsonaro está fazendo um esforço enorme para anunciar ou se apropriar de medidas que julga de restabelecimento da ordem e da moral sem se dar conta que, no modo pragmático petista de governar, muitas delas ou foram criadas nas gestões petistas ou são consequência da tentativa lulista de compor o tempo todo (assistência jurídica para policiais envolvidos em ocorrências com resultado morte, medida já vigente no Maranhão e na Bahia, redutos da esquerda; sistema prisional lotado em função da lei de drogas aprovada em 2006 durante a gestão Lula e que pode ser vista como uma das responsáveis pelo aprisionamento crescente no país de jovens e pelo fortalecimento das facções criminais; regulamento das Operações de GLO – Garantia da Lei e da Ordem, que mobilizam as Forças Armadas para funções de segurança pública; aprovação da lei que tipifica o terrorismo, entre várias outras medidas que muitos imaginam necessárias de setem postas em prática pelo novo governo mas já em vigor).

O fato é que seu governo está se escudando na agenda moral e ideológica para se blindar dos profundos dilemas econômicos que o país vive; está usando o discurso de ordem para manter o controle da narrativa, evitando que os riscos postos se avolumem. E, para isso, ele precisa do apoio das instituições acima mencionadas. Aliás, narrativa que tem encontrado eco em muitos políticos oriundos das fileiras de tais instituições.

Em suma, eu concordo que as esquerdas vivem um enorme vácuo de liderança e que seus projetos políticos precisam passar por profundas transformações caso queiram reconquistar corações e mentes da população. Os dilemas por elas vividos são intrínsecos a elas próprias e fruto de opções equivocadas quando acreditavam que eram as porta-vozes dos pobres e oprimidos. A ênfase no reconhecimento de direitos, na voz e nas identidades é corretíssima mas precisa vir acompanhada por um projeto de inclusão político amplo o suficiente para ser admirado e desejado pelos milhões de brasileiros e brasileiras órfãos das políticas públicas e reféns do medo e da violência.

A direita soube explorar o medo e venceu. Porém, o que o Fernando Canzian não coloca é que as contradições ideológicas e econômicas do governo de Jair Bolsonaro estão em uma etapa de precário equilíbrio (não à toa simbolizadas nas figuras “indemissíveis” de Sérgio Moro e Paulo Guedes), e que o maior inimigo de sua gestão, no curto prazo, é ele próprio. Identificar os problemas da esquerda é central, mas não podemos minimizar os dilemas do novo governo.

No curto prazo, a esquerda não é o maior inimigo ideológico e econômico do governo Bolsonaro. Sua agenda moral é que pode colocar as oportunidades econômicas em risco real e imediato, por mais que seja ela que, paradoxalmente, o fortaleça e o blinde em um primeiro momento. Que as instituições do sistema de justiça e segurança saibam manter a autonomia e o pensamento estratégico que as têm marcado nos últimos anos.

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Réplica: Bolsonaro não é Lula e Moro não é Thomaz Bastos https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/12/08/replica-bolsonaro-nao-e-lula-e-moro-nao-e-thomaz-bastos/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/12/08/replica-bolsonaro-nao-e-lula-e-moro-nao-e-thomaz-bastos/#respond Sat, 08 Dec 2018 16:39:53 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/11/1709227-150x150.jpeg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=500 Espaço aberto para a réplica de Fabio de Sá e Silva* ao meu texto “Na segurança pública, Lula e Bolsonaro são mais parecidos do que gostariam“, publicado em 2 de dezembro.

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Na semana passada, as redações parecem ter sido acometidas por alguma febre que levou jornalistas e articulistas a traçarem paralelos entre Bolsonaro e Lula.

Não sei se, com isso, pretendem os veículos de imprensa forçarem Bolsonaro a alterar a rota, até agora trágica, com a qual inicia o seu governo.

Tampouco sei se atentam para o risco de que qualquer alteração pode sempre vir para pior. Veja-se, por exemplo, o que o novo presidente ou seus auxiliares e familiares dizem que querem fazer com Conselhos, agências reguladoras, e até mesmo com a Suprema Corte. A pretexto de combaterem o “aparelhamento do Estado”, essa suposta “herança maldita do PT”, promoverão, agora sim, o mais verdadeiro aparelhamento.

Renato Sérgio de Lima, nesta coluna, mostrou sintomas da tal febre.

Ao analisar as primeiras indicações sobre como o ex-juiz Sergio Moro pretende conduzir a pasta da Justiça, Lima sugeriu que estamos prestes a repetir um conjunto de apostas infelizes feitas no governo Lula 1 pelo então Ministro Marcio Thomaz Bastos.

Entre essas, destacam-se o elevado empoderamento das corporações policiais e judiciárias e a baixa atenção para as políticas de prevenção à violência e a necessidade de se melhor costurarem as relações federativas no setor.

A leitura de Lima sobre o governo Lula não é factualmente incorreta, e eu próprio tive a oportunidade de relatá-la em diversas ocasiões.

A comparação com Bolsonaro, porém, incorre em diversos equívocos.

O primeiro é que, no caso de Lula, as apostas infelizes foram resultado, e não premissa.

A premissa do governo Lula 1, consolidada no plano nacional de segurança pública elaborado no Instituto Cidadania, sob a coordenação de Luiz Eduardo Soares, contemplava todas as dimensões de cuja falta Lima se ressente, antes e agora.

A análise de Lima sobre esse período, portanto, deveria recair sobre o “desvio da rota”, o qual revela, por um lado, a incapacidade dos governos Lula e Dilma de priorizarem a segurança e enfrentarem os diversos obstáculos envolvidos para a consecução daquele plano, mas, por outro, a natureza (constitucional e financeira, mas também corporativa) desses próprios obstáculos.

Se, sob Lula, as corporações colonizaram a execução de um projeto que ia muito além delas, sob Bolsonaro são a própria base do projeto que se pretende implementar.

De resto, Lima parece preocupar-se muito com as árvores, mas pouco com a floresta.

Semelhanças podem haver aqui e ali, mas Bolsonaro não é Lula e Moro não é Thomaz Bastos.

Lula e Thomaz Bastos encontraram a PF (e o próprio Exército) fracos e defasados; justa era, portanto, a preocupação em fortalecê-los e modernizá-los. Bolsonaro e Moro assumem em um momento no qual tais corporações mostram dificuldades para atuarem nos limites impostos pela Constituição.

Sob Lula e Thomaz Bastos, o fortalecimento das corporações se deu junto com a afirmação de uma institucionalidade voltada à proteção e à defesa dos Direitos Humanos. Sob Bolsonaro e Moro, o processo vem acompanhado da intenção de conceder a policiais uma esdrúxula “licença para matar” e da estigmatização dos Direitos Humanos como “defesa de bandidos”.

Sob Lula e Thomaz Bastos, a posição secundária da prevenção veio acompanhada do Estatuto do Desarmamento. Sob Bolsonaro e Moro, vem acompanhada da promessa de flexibilização do acesso a armas, o que, segundo diversas estimativas, transformará o Brasil em um faroeste.

Sob Lula e Thomaz Bastos, por fim, a valorização das polícias e do Judiciário fora concebida (talvez ingenuamente) como meio para a promoção de “accountability” do governo. Sob Bolsonaro e Moro, há temor, não infundado, de que possa servir como meio de intimidação da oposição, à qual, em um dos seus primeiros discursos após a vitória, o presidente eleito já dissera ter reservado a “ponta da praia”.

(*) Professor Assistente de Estudos Internacionais e Professor Wick Cary de Estudos Brasileiros, Universidade de Oklahoma, EUA

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A cruzada brasileira rumo à Jerusalém https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/12/07/a-cruzada-brasileira-rumo-a-jerusalem/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/12/07/a-cruzada-brasileira-rumo-a-jerusalem/#respond Fri, 07 Dec 2018 02:24:46 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/12/08128175-150x150.gif https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=486 Esta semana, o Instituto para Economia e Paz, com sede em Sydney, Austrália, divulgou a edição 2018 do Índice Global de Terrorismo – IGT (ver a íntegra aqui, na versão em inglês). Segundo este índice, as mortes por terrorismo diminuíram 27% no mundo entre 2016 a 2017 e, neste último ano, alcançaram 18.814 pessoas mortas.

No ranking geral, composto por 138 países e liderado pelo Iraque, o Brasil ocupa a 90ª posição, mais bem colocado que países da Europa e do que os EUA (20º). Se tomarmos apenas os 11 países avaliados da América do Sul, o Brasil ficou em 7º, sendo que, na Região, a nação com mais atentados terroristas em 2017 foi a Colômbia (27º.), seguida do Peru (66º).

Independentemente da posição brasileira ser relativamente boa, estes números são a evidência de que o terrorismo está longe de ser um problema menor no mundo e que as nações precisam estar preparadas para lidar com os riscos a ele associados. O terrorismo é uma das mais antigas e poderosas armas de imposição sectária e autoritária do medo e da violência.

E, para combate-lo, a prevenção e o investimento pesado em informação e inteligência são as estratégias mais eficazes. No fundo, contra a barbárie da violência política e/ou religiosa, principal combustível para o terrorismo, a vigilância constante é a forma de evitarmos ataques e anteciparmos problemas.

E é isso que analistas indicam que o presidente eleito Jair Bolsonaro parece que não está considerando ao anunciar a transferência da embaixada brasileira em Israel para Jerusalém, cidade que é cenário central da geopolítica mundial que antagoniza nações e, por vezes, retroalimenta o fogo do caldeirão fervente do Oriente Médio.

O fato é que, pretensamente querendo agradar o segmento religioso neopentecostal, o governo Bolsonaro está colocando o Brasil no mapa de risco do terrorismo mundial.

Em termos objetivos, enquanto o Brasil hoje é visto como país neutro em termos da geopolítica do terror, Israel tem um índice de terrorismo 3,4 vezes superior ao brasileiro e, ao nos alinharmos aos EUA e transferirmos a embaixada para Jerusalém, estaremos trazendo este problema para o nosso colo. Estamos assumindo um risco muito grande.

Mas sabendo que o governo Bolsonaro é composto por muitos altos oficiais da reserva das Forças Armadas, que são instituições que prezam pelo cultivo do pensamento estratégico e da análise de cenários, a pergunta que fica é por quê assumir tais riscos, ainda mais que eles historicamente não são nossos?

Como não há almoço grátis, segundo o ditado norte-americano, talvez o governo Bolsonaro esteja achando que os riscos da decisão sejam menores do que os benefícios de um alinhamento radical com os governos de Israel e EUA, grandes fornecedores de tecnologia militar e na área de energia.

Uma outra possibilidade é que o cálculo seja econômico, na crença de que eventuais perdas no comércio internacional advindas de potenciais sanções dos países árabes seriam compensadas por Israel e, sobretudo, pelos EUA. Ou ainda, de que o custo da violência oriundo da criminalidade comum é mais alto (R$ 258 bilhões) do que o impacto do terrorismo (US$ 52 bilhões ou cerca de R$ 201,5 bilhões) e, nessa direção, uma reconfiguração das respostas públicas frente ao crime, à violência e ao medo não encontraria grandes obstáculos políticos e legais junto ao Congresso e ao Judiciário.

E, nesse processo de reconfiguração, talvez o cálculo seja de natureza tática, já que eventuais atentados terroristas que ocorreriam no Brasil seriam argumentos simbólicos fundamentais para um projeto de poder de restrição de direitos por dentro da institucionalidade democrática, tal como ocorre hoje na Turquia, na Rússia, na Hungria e nas Filipinas (país cujo presidente, Rodrigo Duterte, tem um discurso muito parecido com o de Bolsonaro e que registrou, segundo o IGT, o maior número de mortes por terrorismo em mais de uma década no ano passado).

Talvez ainda o governo e a família de Jair Bolsonaro estejam pensando que, em termos práticos, nada mudaria, já que, na segurança, o total de mortes por atentados terroristas no mundo é cerca de 3,5 vezes menor do que as 63.880 mortes violentas intencionais registradas apenas no Brasil (ver dados para 2017 aqui) e que um aumento de mortes por atos terroristas seria diluído no trágico patamar de violência do país. O custo político seria pequeno mesmo que a um custo alto em vidas.

Dito de outro modo, se a violência criminal brasileira é muito maior do que a soma de todas as vítimas juntas dos atentados terroristas no mundo, o risco desses últimos crescerem internamente pode servir como justificativa para a aprovação mais fácil da criminalização de movimentos sociais e de manifestações por direitos fundamentais. O terrorismo é um problema global e que politicamente mobiliza muito mais do que a violência contra jovens negros das periferias do país.

Não deixa, portanto, de ser politicamente potente, na perspectiva do próximo governo, tratar a violência como um problema de defesa nacional, já que medidas de exceção poderiam ser acionadas. Isso autorizaria e aceleraria reformas legais e mobilizaria ainda mais a sociedade em torno de uma renovada agenda de endurecimento penal e institucional. Cruelmente, a possibilidade do terrorismo passaria a ser o turnpoint ideológico para a reconversão política-ideológica do Brasil propugnada pela gestão do presidente eleito. Mas não de modo direto. É necessário embala-la como fruto da ação “corajosa” e altruísta; de respeito à soberania de uma grande nação amiga.

Significa dizer que, para além de justificativas retóricas em torno da autodeterminação das nações, o anúncio de transferência da embaixada brasileira em Israel para Jerusalém não é um ato de inocência política ou um gesto para agradar os neopentecostais ou os EUA/Israel apenas. A meu ver, este anúncio parece ser uma estratégia sofisticada de reenquadramento institucional e simbólico mais afeita aos prestidigitadores políticos, que provocam debates sobre determinados assuntos para poderem esconder suas reais intenções e atingirem seus objetivos de modo mais rápido e com menos oposição.

A guerra cultural contra a agenda de direitos civis já começou! O drama é que, com isso, o Brasil corre o sério perigo de se tornar ainda mais violento, desigual e segregacionista.

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O ideal de Justiça e os julgamentos morais da soldado PM Juliane Santos e de Fernanda Camargo https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/09/06/o-ideal-de-justica-e-os-julgamentos-morais-da-soldado-pm-juliane-santos-e-de-fernanda-camargo/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/09/06/o-ideal-de-justica-e-os-julgamentos-morais-da-soldado-pm-juliane-santos-e-de-fernanda-camargo/#respond Thu, 06 Sep 2018 15:05:56 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/09/Moral-150x150.jpeg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=250 Com Samira Bueno, diretora executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Juliane dos Santos, 27 anos, foi morta no dia 2 de agosto de 2018. Juliane era Soldado da Polícia Militar e estava em um bar em Paraisópolis em seu horário de folga quando teve seu celular furtado. Identificou-se como agente da lei na esperança de que recuperasse o bem perdido. Foi brutalmente assassinada por ser policial.

Juliane era também conhecida como “garota sorriso”. Sempre alegre e bem-humorada, Juliane não era apenas uma jovem soldado, mas alguém que sempre sonhou em ser policial e atuar na defesa da lei. Seu corpo ficou desaparecido por cinco dias, o que impediu inclusive que a família pudesse se despedir de forma adequada. O caixão teve que ser lacrado.

Mas a tragédia para a família de Juliane não termina aí. Como se não bastasse seu assassinato, os julgamentos morais passaram a permear o noticiário sobre sua morte. Juliane era lésbica, negra e de família humilde, mas a imprensa achou por bem destacar que, antes de morrer, ela se divertia e namorava uma “ruiva” em um bar. Qualquer pessoa minimamente atenta ao tema da segurança sabe que Juliane se expôs ao identificar-se como Policial Militar em um território dominado pelo PCC, mas sua orientação sexual e a cerveja precisavam constar das análises de seu assassinato.

O julgamento moral que a família de Juliane teve que assistir atônita é vivido hoje por Fernanda Camargo, 40 anos, viúva do mecânico Eduardo Alvos dos Santos. Eduardo, 42 anos, faleceu em 16 de janeiro de 2017 após uma ocorrência de violência doméstica. Fernanda chamara a Polícia Militar porque o marido tornava-se agressivo quando bebia e ela queria tirar seus pertences de casa. Quando a guarnição da PM chegou à residência, Eduardo bateu boca com um dos soldados, e, nitidamente embriagado, caiu segurando-se na farda do policial, que acabou rasgando. O trâmite usual de uma ocorrência como essa era adotar procedimentos de uso progressivo da força, imobiliza-lo e leva-lo para a delegacia para ser autuado. Mas Eduardo foi agredido antes de ser colocado na viatura e, três horas depois, Eduardo morreu dentro da delegacia de Itapevi. O laudo do IML identifica como causa de sua morte uma hemorragia interna traumática, provocada por agente contundente.

Como se este caso não fosse suficientemente trágico, ontem, dia 05 de setembro, a absolvição do soldado responsável pelas agressões adiciona mais uma pitada sádica a este enredo. Em sua decisão, o juiz militar José Alvaro Machado Marques não reconhece o nexo entre os dois fatos e destaca diversas vezes que Eduardo tinha passagens pela polícia e histórico de comportamento violento, como se isso fosse justificativa para ser espancado pelos policiais. Prossegue à sua argumentação, em um processo no qual todas as testemunhas são policiais, afirmando que relatos indicam que Eduardo tinha apenas um “discreto” ferimento no olho e que deve ter morrido de cirrose hepática.

Mas a cereja do bolo de sua conclusão é o parágrafo em que fala sobre a viúva, Fernanda, e os motivos pelo qual continuava a acusar o policial. Sugere o juiz que a viúva pode ser motivada pelo “interesse em buscar indenizações…”. Afinal, o natural não seria esperar que a viúva quer justiça, e sim que ela quer lucrar com o assassinato do marido.

Para não dizer que o eminente juiz foi completamente injusto, ele também afirma em sua decisão que Fernanda pode estar influenciada por “um sentimento de culpa por seus desentendimentos com o marido…”. Bingo! Imagine só, senhor juiz, o que significa para uma mulher vítima de violência doméstica, com uma filha de 17 anos, ver o homem com quem estava casada há quase duas décadas ser espancado por um policial na garagem de casa após uma ligação dela; ver o marido morrer dentro de uma delegacia de polícia em seu colo e ainda ter que lidar com os julgamentos morais do Estado, especulando sobre os motivos de sua busca por justiça.

Quando valores coletivos consagrados nas cláusulas pétreas da nossa Constituição são reduzidos a concepções morais privadas, como podemos compreender que a Justiça adote como símbolo a imagem de Têmis, divindade grega que busca estar acima das paixões humanas para permitir que a verdade não seja apenas a lei do mais forte? Triste momento vivido pelo país…

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