Faces da Violência https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br O que está por trás dos números da segurança pública Tue, 23 Nov 2021 18:56:47 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 As polícias não podem decidir sobre quando e como devem respeitar decisões judiciais e as leis https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/11/23/as-policias-nao-podem-decidir-sobre-quando-e-como-devem-respeitar-decisoes-judiciais-e-as-leis/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/11/23/as-policias-nao-podem-decidir-sobre-quando-e-como-devem-respeitar-decisoes-judiciais-e-as-leis/#respond Tue, 23 Nov 2021 18:47:50 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/favela-RJ-320x213.png https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1850 O STF tem a oportunidade de, na ADPF 635, atualizar a jurisprudência que disciplina a segurança pública brasileira e baliza doutrinas de atuação policial. As polícias não podem decidir sobre quando e como devem respeitar decisões judiciais e as leis

 

Esta semana o STF retoma o julgamento da ADPF 635/2020, que vetou operações policiais nas favelas do Rio de Janeiro durante a pandemia, exceto em casos emergenciais e condicionados à prévia notificação ao Ministério Público. São vários os aspectos a serem considerados e discutidos, ainda mais diante de operações como a no Jacarezinho, da Polícia Civil do Rio de Janeiro, em maio deste ano, e agora a no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, pela PMERJ.

Nessas horas, o debate parece ideológico e revela embates de diferentes valores e moralidades. Todavia, precisamos pensar alguns aspectos jurídico constitucionais prévios, na ideia de sugerir ao pleno do STF uma reflexão mais ampla sobre o direito à segurança. Em minhas aulas na FGV, desde 2014, tenho insistido no fato de segurança ser um direito fundamental e, portanto, que  justiça social só se faz garantindo-o em sua plenitude. Vivemos em um Estado de Direito e, nele, instituições públicas são sujeitas a freios e contrapesos, não há poder absoluto.

Há muitas confusões conceituais no cotidiano da segurança pública brasileira, até por ela ser mais um campo organizacional e não um conceito fechado, delimitado. Porém, vale reler o que diz nossa CF:

Segundo o Caput do Artigo 144 da CF, que regula como ela será assegurada para a população, “segurança pública, dever do Estado, DIREITO e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”. Esse é o artigo mais comumente lembrado quando falamos do tema, mas quase sempre para dizer qual corporação/instituição pode ou não atuar no campo.

Porém, neste mesmo caput, o Artigo 144 faz relação a um fato central, ou seja, explicita que segurança é um direito e, enquanto tal, está inscrito no preâmbulo da Constituição Federal e nos Artigos 5o e 6o, que tratam dos direitos fundamentais. Diz o Preâmbulo:

“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL”

Já o artigo 5º, por sua, vez, diz, em seu caput, que: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes”. Termos esses que se traduzem em 78 itens ou premissas fundamentais que precisam ser observadas na organização do Estado e na sua forma de agir.

Entre eles, vários associados à ação em comunidades, como o III, que diz que ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;  o XLIX, que assegura aos presos o respeito à integridade física e moral; ou o XLVII, que reforça que não haverá penas de morte, salvo em caso de guerra declarada.

Na Constituição e/ou na legislação infraconstitucional, contudo, não há uma definição clara sobre o que significa “ordem pública”, deixando para as polícias a interpretação operacional do que significa mantê-la. Isso aumenta a discricionariedade e reduz controles. Aqui uma evidência da importância do julgamento da ADPF 635, pois ela pode ter um impacto prático muito maior do que o inicialmente previsto. Ela pode dar balizas para a modernização jurisprudencial da legislação, ainda sustentada por normas anteriores a 1988.

Por exemplo, o “poder de polícia” é regulado apenas no Código Tributário Nacional, de 1966, em seu artigo 78, onde está definido que:

“Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.

Parágrafo único. Considera-se regular o exercício do poder de polícia quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com OBSERVÂNCIA DO PROCESSO LEGAL e, tratando-se de atividade que a lei tenha como discricionária, sem ABUSO OU DESVIO DE PODER”

A ADPF é importante, ainda, pois a própria Constituição, em seu Artigo 144, parágrafo 7º, prevê que “a lei disciplinará a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a EFICIÊNCIA de suas atividades“. Oras, não preciso ser jurista para interpretar que “EFICIÊNCIA”, aqui, é garantir o que está previsto no preâmbulo e no capítulo dos direitos fundamentais e que, portanto, as polícias não podem tudo, até porque não faltam leis que disciplinam a ação do Estado, a exemplo do Código de Processo Penal, a Lei que cria o Sistema Único de Segurança, a  Improbidade Administrativa, entre outras.

O STF tem a oportunidade de, na ADPF 635, atualizar a jurisprudência de modo a disciplinar tais tópicos e modernizar doutrinas de atuação policial frente ao que a CF prevê. O CNMP, por sua vez, dado que o Ministério Público detém a prerrogativa de controle externo da atividade policial não precisaria aguardar o STF e poderia, ele próprio, ampliar a ação dos Ministérios Públicos para além do controle de cada caso; do controle de eventuais desvios individuais de conduta. É preciso tratar segurança como um direito coletivo e difuso e cobrar os responsáveis por sua garantia para que ele seja implementado de acordo com a premissa de ser um direito fundamental inalienável e condição para o exercício da cidadania.

O Brasil precisa atualizar sua legislação e cobrar os órgãos para se ajustarem ao ordenamento constitucional. Isso significa repensar leis gerais ou orgânicas, normas operacionais e mecanismos de governança e controle. As polícias não podem ter liberdade para decidirem sobre quando vão respeitar decisões da Justiça. Uma segurança pública de fato eficiente pressupõe respeito incondicional às regras do jogo e, no Estado de Direito, quem dá a última palavra é o Judiciário. Não podemos aceitar nada além disso.

 

 

Para saber mais:

Segurança Pública no Brasil: história de uma construção inacabada. Marco Aurélio Ruediger e Renato Sérgio de Lima (orgs). Editora da FGV.

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Os riscos da institucionalização da Operação Vingança https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/11/23/os-riscos-da-institucionalizacao-da-operacao-vinganca/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/11/23/os-riscos-da-institucionalizacao-da-operacao-vinganca/#respond Tue, 23 Nov 2021 13:57:18 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/foto-salgueiro-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1845 Moradores, familiares e ativistas têm classificado o caso de Salgueiro como uma chacina cometida por policiais durante uma “operação vingança” pela morte de um sargento PM.

David Marques*

 

Entre a madrugada de domingo e a manhã de segunda-feira (21/11) 8 corpos foram retirados de uma área de mangue no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, região metropolitana do Rio. As notícias sobre o caso dão conta de que os corpos apresentavam com sinais de tortura. Entre os sete mortos identificados, dois não possuíam antecedentes criminais.

No sábado, o sargento PM Leandro Rumbelsperger da Silva, de 40 anos, havia sido morto por criminosos em um ataque a uma base da PM. A operação foi então desencadeada, com participação do BOPE.

O caso se dá no contexto da vigência da chamada ADPF das Favelas, que restringiu e condicionou a realização de operações policiais em comunidades do Rio de Janeiro durante a pandemia de Covid-19 à previa autorização judicial. O MP-RJ diz ter sido informado da operação. Vale lembrar, no entanto, que um dos casos citados na decisão do ministro Edson Fachin, do STF, nesta ADPF foi o de João Pedro, adolescente de 14 anos morto durante operação policial no mesmo Complexo do Salgueiro, em junho de 2020. Além disso, cabe mencionar que a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Estado brasileiro em 2017 no caso da Favela Nova Brasília, no qual 26 pessoas foram mortas e 3 mulheres foram vítimas de violência sexual durante operações policiais entre 1995 e 96.

Moradores, familiares e ativistas têm classificado o caso de Salgueiro como uma chacina cometida por policiais durante uma “operação vingança” pela morte do sargento PM.

O Projeto Reconexão Periferias, da Fundação Perseu Abramo, buscou estudar as chacinas no Brasil – casos com três ou mais vítimas fatais na mesma ocorrência – a partir de notícias da imprensa. Foram sistematizados 408 casos entre 2015 e 2019. Destes, em 97 houve suspeita ou certeza da participação de policiais em sua execução (23,8%). Estes casos foram identificados em 16 estados, com destaque para RJ, PA e SP, nos quais em mais de 43% do total de casos identificados houve participação de policiais. Segundo este levantamento, somados, os casos nos quais há suspeita ou certeza de participação de policiais ou de outros agentes ou ex-agentes estatais (categorizados como atuação policial, operações policiais, grupos de extermínio ou milícia) são a segunda motivação mais frequente de chacinas no país.

Na tese recentemente defendida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar, estudei em maior detalhe a participação de policiais em chacinas, com foco em um caso ocorrido em Osasco e Barueri, região metropolitana de São Paulo, em 2015. O estudo demonstrou que as chacinas com participação de policiais podem ser divididas em três tipos principais:

  1. Chacina cometida por policiais em serviço, em ações policiais de rotina ou em operações policiais planejadas, cujas mortes podem ser intencionalmente lícitas ou intencionalmente abusivas (podendo as abusivas serem ainda dissimuladas de legítimas);
  2. Chacina cometida por policiais fora de serviço, relacionadas com o oferecimento de serviços de segurança privada;
  3. Chacina cometida por policiais fora de serviço com o objetivo de extorquir traficantes de drogas, demonstrar poder, exercer controle e auferir benefícios financeiros com as dinâmicas criminais locais.

Na pesquisa, a realização vingança pela morte de outro agente de segurança pública foi mais frequentemente associada às ações letais de policiais em serviço, as chamadas “resistências seguidas de morte” e por meio de operações policiais planejadas. Estas mortes geralmente são cometidas por policiais que querem ver seus nomes associados a morte de pessoas que consideram criminosos, dentro de uma lógica de limpeza social, de “fazer justiça”.

O caso do Salgueiro parece corresponder em grande medida à análise acima, no que é chamado pelos moradores de “operação vingança”. Embora não se perca de vista a séria crise de segurança pública enfrentada pelo Rio de Janeiro nos últimos anos, é preciso questionar primeiramente o modelo de policiamento baseado no enfrentamento militarizado. O princípio da experiência da política de pacificação no Rio, na segunda metade dos anos 2000, mostrou que é possível fazer segurança de um modo diferente, e com resultados melhores, apostando em uma polícia que permaneça nas comunidades e nos territórios, se aproximando de sua população, e não apenas passe por eles. Ao fracasso da política de segurança segue-se o fortalecimento do crime organizado e das milícias, vastamente documentado em estudos e notícias. O resultado desse processo continua sendo a alta produção de letalidade, com suas mais diferentes vítimas, incluindo crianças, como João Pedro, e o Sargento Leandro.

Pesquisa do FBSP mostrou que de uma amostra de 316 casos de mortes decorrentes de intervenção policial ocorridas no Rio e em São Paulo em 2016, 90% foram objeto de pedido de arquivamento por parte do Ministério Público. Se o controle da atividade policial não é exercido de forma constante, incluindo os casos de mortes decorrentes de intervenção policial em serviço, ele torna-se virtualmente impraticável nos casos mais extremos e com isso temos a deterioração das instituições e do sistema democrático de segurança e justiça, que se torna refém do arbítrio.

 

*David Marques é doutor em sociologia e coordenador de projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

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Os ovos da serpente https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/08/19/os-ovos-da-serpente/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/08/19/os-ovos-da-serpente/#respond Thu, 19 Aug 2021 17:42:21 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/sandoval-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1841 A condescendência com o arbítrio policial ameaça a todos. Diante da polícia que mata, vida, liberdade, civilidade, instituições e a democracia estão sob risco, real e imediato

Sandoval Bittencourt de Oliveira Neto*

Este mês faz 10 anos do brutal assassinato da juíza Patrícia Lourival Acioli. Covardemente emboscada quando chegava a sua casa, foi morta com 21 tiros disparados por milicianos julgados por ela. O crime chocou o Brasil. O presidente do Supremo Tribunal Federal à época, Cezar Peluso, descreveu o ato como “um ataque ao governo brasileiro e à democracia”. Todos os 11 policiais militares julgados foram condenados, inclusive o coronel comandante do 7º BPM, da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro.

Patrícia Acioli se tornou inimiga da quadrilha que assolava o município de São Gonçalo, o segundo mais populoso do Rio de Janeiro, e selou sua morte ao decretar as prisões de policiais do 7º BPM, envolvidos em autos de resistência forjados. Crimes de execução até então dissimulados por dados oficiais da criminalidade.

A letalidade policial, em regra, é notada nos autos de resistência, porém, a participação expressiva dos policiais em execuções extrajudiciais, estando oculta, é desconsiderada. De modo ímpar, o assassinato de Acioli explicita a forte ligação entre as mortes decorrentes de intervenção policial e os homicídios, as duas maiores causas de mortes violentas intencionais no Brasil.

Estudos sugerem que as motivações pessoais do policial para a prática da ação letal abusiva estão organizadas em três categorias. São elas: (1) ação letal fundada no ressentimento e no desejo de vingança do assassínio do irmão de farda; (2) ação letal calculada para obtenção de vantagem econômica, na morte como negócio; (3) ação letal performática para exibição do atributo social “valentia” na busca de reconhecimento social.

Indiferente a motivação, a conduta letal tem efeitos indeléveis sobre o indivíduo que a pratica. O abismo da violência extremada que amedronta alguns policiais, excita outros mais aventureiros a se lançarem de encontro ao incerto sob a sensação de sobrenatural coragem, animada por forte emoção e descargas hormonais. Mais fundo o precipício, maior a emoção. Há, porém, casos em que o mergulho alucinado no abismo do necropoder leva à depressão e a impulsos suicidas, transformando os algozes em vítimas da própria violência.

Em geral, os policiais mal sabem que o preço da violência é alto. Não lhes é mostrado que, ao afundarem em enfermidades psíquicas e físicas, arrastam consigo suas relações familiares e amizades antigas. Muito se perde. Em casos mais drásticos, perde-se tudo.

As histórias de vida de policiais matadores, comumente, expõem indivíduos que acreditam (ou acreditaram) na eterna luta do bem contra o mal. Policiais que se mostraram dispostos a arriscar suas vidas em defesa de valores considerados nobres nas suas organizações e por boa parte da sociedade.

Entretanto, sabe-se que a linha que separa os dois lados dessa oposição maniqueísta é muito tênue. Quanto mais o indivíduo se proclama do bem, mais próximo está da maldade. Em outras palavras, quanto mais o policial se considera defensor da virtude, maior sua vaidade e, possivelmente, maior a prática de improbidades para alimentá-la.

Os traços de narcisismo exacerbado e de outros aspectos da personalidade humana registrados nas histórias de vida de policiais matadores permitem que se cogite sobre o que os psicólogos chamam na literatura clínica de “dark triad”. Por sua vez, o olhar sociológico sobre os elementos do subjetivismo contemporâneo observados esclarece que há nos aspectos verificados uma lógica de defesa narcísica, de autopreservação e de sobrevivência psíquica, que está radicada não meramente nas condições objetivas da “guerra das ruas” (representação social comum do contexto criminal urbano enfrentado por policiais), mas na experiência subjetiva de vazio, isolamento e medo que a condição policial lhes impõe.

O irrefutável é que há nas fileiras das organizações policiais indivíduos com inclinação homicida, tidos como “valentes”, que se engajam vigorosamente na luta do bem contra o mal e que encontram na parcela da população amedrontada pela criminalidade urbana o apoio e a condescendência que necessitam, para sepultar de vez o dilema moral de ter que seguir a lei perante um sistema de administração da justiça criminal que “solta os bandidos que a polícia prende”. De justiceiros a milicianos, é um pulo.

Conquanto o freio moral de certos policiais justiceiros faz com que não se encaixem na racionalidade econômica mortífera da milícia, fundada no desejo de rápido enriquecimento pessoal, de igual modo, a união do útil ao agradável entusiasma outros tantos com pendor sicário e, ao que parece, a socialização na milícia e nos grupos de extermínio faz com que os papéis sociais de policial e de criminoso se misturem, gemando o policial-bandido ou o bandido-policial, conforme a porção que prevalece em cada indivíduo.

Uma charge da grande cartunista Laerte, carregada de ironia, bem retrata em arte a realidade crua da violência policial e nos ajuda a enxergar a rede de microdespotismos que assinalam as interações cotidianas, entre a polícia e a população civil.

Os quadrinhos apresentam o ataque do obediente cão bravo, lançado contra oponentes políticos, enquanto seus algozes se divertem satisfeitos. O animal continua sua sanha dilacerando desafetos, mas também outros insignificantes. Tudo bem. E segue colérico, atacando, até que preocupa. É então chamado de volta. Mas ao tornar, seus donos constatam que a fera se transmutou na fúria. Conhece agora o seu amedrontador poder destrutivo. Bestial, deleitou-se com o gosto do sangue. Ameaçadoramente, não mais obedecerá.

Assim como a ferocidade do cão bravo, a letalidade policial encontra sustentação na moralidade condescendente com a violência, na ideologia que brada “bandido bom é bandido morto!” e “policial que não mata não é policial!”. Não será possível ao conivente lavar as mãos. De igual maneira aos quadrinhos, ninguém estará seguro, seja ele policial ou cidadão de bem.

O cometimento da ação letal abusiva atenta contra o policial militar que veste sua farda e sai para trabalhar imbuído de melhor servir à sociedade, sem recorrer ao uso da força letal de modo desnecessário e injustificado. Esse policial íntegro e comprometido com seu semelhante, mas nem por isso menos exposto aos riscos e percalços inerentes ao exercício da atividade, é diferenciado do indivíduo sicário e pernicioso que deprecia a instituição e não merece ser confundido e tratado como venal.

A tolerância social à violência policial abusiva alimenta monstros. Engorda justiceiros, grupos de extermínio e milícias; essas últimas, as milícias, infiltram-se no Estado com a audácia e a capacidade real de corromper e peitar a organização policial e os poderes constituídos, coisa que os demais grupos criminosos não o fazem com tamanha facilidade.

Que o martírio de Patrícia Acioli seja lembrado e nos sirva de permanente alerta, de que as condescendências com o arbítrio policial são como ovos da serpente que nos ameaçam a todos. Diante da polícia que mata, vida, liberdade, civilidade, instituições e a própria democracia estão sob risco, real e imediato.

 

*Sandoval Bittencourt de Oliveira Neto é coronel da reserva (PMPA) e doutor em Sociologia (UnB).

Acompanhe as edições semanais integrais do Fonte Segura, a newsletter com dados e análises sobre segurança pública. Acesse: fontesegura.org.br

Na edição desta semana, leia também “Forças Armadas, entre democracia e Bolsonaro” e “270 homens e um segredo: o sigilo imposto sobre a operação do caso Lázaro“.

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Despolitizando as polícias https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/08/02/despolitizando-as-policias/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/08/02/despolitizando-as-policias/#respond Mon, 02 Aug 2021 18:09:08 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/17407680_PAZ-320x213.jpeg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1832 PEC 21/021 propõe restrições para militares da ativa das Forças Armadas ocuparem cargos civis. Iniciativa é boa, mas deveria ser estendida também a todos aos policiais brasileiros.

Arthur Trindade Maranhão Costa*

 

Tramita na Câmara dos Deputados uma proposta de emenda constitucional que visa impedir que militares da ativa ocupem cargos civis. A PEC 21, apresentada pela deputada Perpétua de Almeida (PCdoB – AC), foi motivada para impedir situações como a do general Pazuello, que ocupou o cargo de ministro da Saúde sendo militar da ativa. Embora proponha restrições apenas para militares da ativa das Forças Armadas, a PEC deveria ser estendida para todos os policiais brasileiros.

Pazuello não é o único caso. No atual governo federal, vários integrantes das Forças Armadas, Polícias Militares, Polícias Civis e Polícia Federal ocupam cargos civis. Mesmo estando na ativa, estes profissionais respondem por secretarias e departamentos nos diversos órgãos da administração federal como o Ministério da Justiça e Segurança Pública, Ministério da Educação, Ministério da Saúde, Ministério da Ciência e Tecnologia e IBAMA.

A situação não é nova e tampouco se restringe à administração federal. Nos governos estaduais é comum que policiais da ativa ocupem cargos civis de natureza política. Também é frequente a presença de policiais da ativa trabalhando em gabinetes de parlamentares. Até no judiciário podemos encontrar policiais da ativa servindo como assessores de desembargadores.

A prática é ruim por dois motivos. Primeiro, porque desvia policiais das atividades fim. Em alguns estados o número de policiais cedidos – esse é o termo técnico – ultrapassa a casa dos milhares. A falta de efetivos não tem servido de justificativa para diminuir as cessões. As resistências são grandes, começando obviamente pelos policiais cedidos. Parlamentares e magistrados pressionam os governadores para manter policiais como assessores. Os próprios secretários de governo também demandam pela permanência desses policiais em cargos civis.

O segundo motivo é a indesejada politização dessas instituições. Os policiais e militares que ocupam cargos civis não emprestam apenas seus conhecimentos técnicos. Eles constroem também laços de lealdade política que se estendem por vários anos. Ao ocupar cargos civis, esses profissionais ingressam em grupos políticos seletos. Mesmo que retornem para suas instituições de origem, esses laços de lealdade política permanecem e são utilizados em dois sentidos. Eles permitem que as lideranças políticas estendam sua influência para dentro das instituições policiais. Além disso, a lealdade política é utilizada por alguns policiais para obter privilégios nas promoções e nomeações.

Há policiais que passaram a maior parte das suas carreiras em cargos civis de natureza política. É o caso atual ministro da Justiça Anderson Torres. Apesar de ser delegado federal da ativa, Torres passou a maior parte dos seus 18 anos de carreira cedido a outros órgãos. Ele foi assessor no gabinete do deputado federal Fernando Francischini (PSL-PR) por oito anos e permaneceu mais dois anos como secretário de Segurança Pública do Distrito Federal. Não há dúvida que Anderson construiu uma carreira muito mais política do que policial.

Por esses motivos, a PEC 21/2021 é oportuna e deveria alcançar também os policiais. Seria um passo importante para despolitizar as polícias.

*Arthur Trindade M. Costa é professor de sociologia da Universidade de Brasília e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

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Na edição desta semana, leia também “Proteção à narrativa policial distorce julgamentos na Justiça Militar” e “Violência armada atravessa a rua e entra em casa durante a pandemia“.

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A face não regulada do mercado da segurança privada https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/07/30/a-face-nao-regulada-do-mercado-da-seguranca-privada/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/07/30/a-face-nao-regulada-do-mercado-da-seguranca-privada/#respond Fri, 30 Jul 2021 14:24:54 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/605464-high-320x213.jpeg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1834  

Cleber Lopes*

A 15° edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública trouxe novamente um retrato importante do setor de segurança privada regulado pela Polícia Federal. Os dados dão conta da existência de 2.235 empresas especializadas na prestação de serviços de vigilância patrimonial intramuros, transporte de valores, escolta armada e segurança pessoal privada; 236 cursos de formação de vigilantes; e 1.154 empresas que organizam seus próprios serviços de vigilância ou transporte de valores. Essas organizações empregam cerca de 526 mil vigilantes, número superior à soma dos efetivos das polícias militares e civis (500 mil policiais).

Embora o setor regular de segurança privada seja amplo, ele é apenas a face mais formal e visível do mercado de proteção existente na sociedade brasileira. A maior parte desse mercado é formado por um universo desprovido de regulação estatal. Esse universo é composto por (a) organizações formais que prestam serviços regulados pela Polícia Federal, mas sem autorização; (b) organizações formais que atuam em áreas não reguladas, como segurança eletrônica, serviços de investigação particular, vigilância em vias públicas e outras; (c) organizações informais que vendem serviços de segurança à revelia da lei ou sem qualquer controle estatal; e (d) “seguranças autônomos” que prestam serviços como freelancer para pessoas ou organizações.

É difícil saber com precisão o tamanho desse universo não regulado. A natureza informal ou irregular de muitas atividades dificulta a mensuração.  Estudo realizado em 2019 com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) sugere que o número de pessoas ocupadas em atividades de segurança privada no Brasil é 2,3 vezes maior do que o número de vigilantes que atuam no setor regulado pela Polícia Federal. Esses números certamente estão subestimados, já que a PNAD tem dificuldades para captar ocupações irregulares como a de agentes de segurança pública que prestam serviços de segurança privada em seus horários de folga.

Existe uma ampla zona de intersecção entre os setores de segurança pública e segurança privada no Brasil. A participação de agentes públicos na gestão ou na operação de empresas de segurança é proibida pelas organizações de segurança. Entretanto, essa proibição não tem impedido que membros dessas organizações comandem empresas ou façam bicos como seguranças. Sujeitos a escalas de trabalho longas (12 ou 24 horas, por exemplo) seguidas de períodos de descanso igualmente longos (48 ou 72 horas, por exemplo), muitos agentes de segurança pública buscam um segundo emprego nos momentos reservados ao descanso. A prática é tolerada nas organizações de segurança pública como uma política informal de compensação aos baixos salários pagos pelo Estado. Quando a oportunidade é boa, é o trabalho no setor público que passa a ser o segundo emprego que complementa a renda dos agentes e fornece os recursos valorizados pelos contratantes – a arma de fogo, o treinamento, os contatos privilegiados com as polícias e a autorização para usar recursos coercitivos em nome do Estado.

A existência desse mercado de proteção não regulado pelo Estado tem inúmeras consequências. Uma delas recai sobre o setor regular de segurança privada, que enfrenta a concorrência predatória de provedores de segurança clandestinos cujas práticas frequentemente prejudicam o processo de profissionalização do setor. Outra recai sobre a área de segurança pública, cuja qualidade dos serviços é prejudicada pelo descanso indevido dos profissionais que fazem bico e pela sua maior exposição à violência letal. Como o Anuário Brasileiro de Segurança Pública vem mostrando, em torno de 2/3 dos policiais militares e civis brasileiros são mortos fora de serviço, em muitos casos em um segundo emprego como segurança. Por fim, a ausência de controle sobre provedores de segurança representa uma ameaça à liberdade e à vida das pessoas, como casos de abusos recentes indicam. Em situações extremas, essa ausência de controle pode resultar na constituição de organizações especializadas em matar e oferecer proteção a atores criminais, como é o caso do “Escritório do Crime” no Rio de Janeiro, organização informal ligada ao assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes.

No momento em que o mercado de segurança privada se torna objeto de preocupações públicas, impulsionadas pelo assassinato de João Alberto Silveira Freitas por seguranças de uma loja do Carrefour de Porto Alegre, é importante olhar para a face não regulada do mercado de proteção brasileiro e discutir como controlá-la. É onde os olhos menos enxergam que estão os maiores perigos.

 

* Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina e coordenador do LEGS – Laboratório de Estudos sobre Governança da Segurança.

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O mercado da Segurança Privada no Brasil https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/07/28/o-mercado-da-seguranca-privada-no-brasil/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/07/28/o-mercado-da-seguranca-privada-no-brasil/#respond Wed, 28 Jul 2021 22:43:53 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/Imagem-Amanda-320x213.jpeg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1821 Susana Durão*

Como se caracteriza o setor da segurança privada no Brasil? Qual a evolução em número de empresas e de vigilantes nos últimos anos? Em que regiões há mais segurança privada? Qual o perfil socio-profissional dos vigilantes? Aqui pode ler a resposta a estas e outras perguntas, a partir da análise dos dados publicados no Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em julho de 2021. Não podemos ser indiferentes a esta área de atuação. A segurança privada é uma atividade expressiva no país, visível nos espaços urbanos, presente nos mais diversos ambientes industriais, comerciais e residenciais. Para se ter apenas uma ideia da sua importância, em 2020 o setor teve um faturamento estimado de R$ 35,7 bilhões.

Volume de empresas e mercado

Hoje o mercado de segurança privada no Brasil, regulado e fiscalizado pela Polícia Federal, é constituído por 2.471 empresas especializadas — que prestam serviços de vigilância mediante contratação — e 1.154 orgânicas, empresas que contratam diretamente os vigilantes.

A quantidade de vigilantes com vínculos ativos aponta um volume de 502.318 trabalhando em empresas especializada e 23.790 em empresas orgânicas. Se compararmos o número de empresas com o número de vigilantes ao serviço, verificamos que, apesar da extrema variação e pluralidade interna, as empresas especializadas são maiores e contratam mais e as orgânicas são mais pequenas e restritas. Se uma empresa especializada pode ter em média 203 vigilantes, uma orgânica não terá mais de 20.

A vigilância patrimonial constitui o grande volume de atividade da segurança privada no Brasil. Mais de 50% nas empresas especializadas e 99,1% nas empresas orgânicas operam exclusivamente na proteção patrimonial. No caso das empresas especializadas, o restante do mercado se distribui por estabelecimentos que, além de vigilância patrimonial, têm autorização para exercer a atividade de escolta armada, segurança pessoal e transporte de valores. Um outro setor também presente são as empresas de formação.

Mercado de trabalho na vigilância e regiões

A evolução estatística ao longo dos últimos anos aponta uma queda do número de vigilantes contratados. Em 2015 eram 631.028 e em 2021 são 526.108. A queda de mais de 100,000 nesse período é em geral atribuída à crise econômica no país, especialmente aguda em 2020, com encolhimento de -4,5% do PIB em todo o setor de serviços. Mas pode também significar uma reorganização interna da segurança privada e avanço de novas soluções de segurança eletrônica no Brasil.

Só entre 2020 e 2021, também devido à pandemia, houve uma redução de 7.239 vagas para vigilantes. Estima-se que em 2021 apenas 50% dos vigilantes aptos a trabalhar estão atualmente empregados. Ou seja, embora exista mais de um milhão com a carteira nacional de vigilante, o curso de vigilante de 200 horas ou as reciclagens obrigatórias realizadas, metade não tem oportunidade de emprego no setor.

Onde a segurança privada está mais presente no Brasil? Indiscutivelmente, na região Sudeste, com quase metade do efetivo total (48,7%), sendo a segunda maior região o Nordeste (19,8%). Noutras regiões a segurança privada é menos expressiva, como no Sul (14,9%) e Centro-Oeste (9,9%), ou mesmo residual, como no Norte (6,7%). Tudo indica que nas regiões onde existem mais armas nas mãos dos cidadãos, a segurança privada formal é mais incipiente.

É de assinalar que São Paulo representa 36,3% do total do setor. Neste estado se concentra grande volume do mercado de emprego da segurança privada. Este e outros mercados de serviços ajudam a estimular o afluxo tradicional de cidadãos de outros estados à capital paulista em busca de emprego.

Perfil socio-profissional dos vigilantes

A vigilância é um mercado de emprego ainda de reserva masculina. Mesmo se a maior parte da vigilância é de âmbito patrimonial, com menor potencial para uso da força, no setor há uma sobre-representação de homens (91%) e um percentual baixo de mulheres (9%).

A população de vigilantes está distribuída nas várias faixas etárias ativas, mas com incidência entre os 30 e 49 anos (representando 69% do total). Isto aponta um mercado não juvenil e a hipótese de que o emprego na atividade se dê mais por necessidade e esgotamento de outras possibilidades de trabalho do que por opção vocacional. O percentual de vigilantes por faixa etária no primeiro emprego acompanha de perto essa mesma tendência.

É notório que a maioria dos vigilantes tenha o ensino médio completo (73%), qualificação muito superior ao mínimo exigido pela Lei 7.102/1983, que é a 4ª série do ensino fundamental.

Uso potencial da força

É de notar que as empresas de segurança privada no Brasil trabalham preferencialmente com armamento letal e menos com armamento não letal. Para dar um exemplo, no ano de 2020, na Região Sudeste, as empresas adquiram 4.438 armas letais para 563 não letais.

Se compararmos, grosso modo, a distribuição das armas de fogo no Brasil em números absolutos, verificamos que o total de armas nas mãos das polícias militares (quase 511 mil armas) já foi ultrapassado pelo número de armas nas mãos dos cidadãos (quase 527 mil). A segurança privada tem registradas quase 260 mil armas. Em vários estados da federação, o registro de armas de fogo de empresas da segurança privada é muito inferior ao dos cidadãos. Isto permite entender que a distribuição potencial de uso da força armada pela sociedade é maior do que nos setores formalmente delegados ou controlados pelo Estado. O quase “exército privado” entre os cidadãos é um dos fatores que ajuda a entender a profusa informalidade dos mercados de proteção privada e os impasses da regulação e fiscalização do uso da força no Brasil.

A sombra da clandestinidade

Desde os anos 90, a segurança patrimonial privada cresceu galopantemente e é parte da malha que compõe a segurança urbana, facilitando e complementando o trabalho dos operadores da segurança pública. Nas últimas décadas, formas de proteção patrimonial redefiniram estilos de vida. A oferta de serviços e possibilidades de contratação direta cresceu de tal modo que a segurança se tornou uma quase mercadoria. Todavia, sem se substituir a outras formas de proteção, variadas, ilícitas e sem fiscalização, o setor de segurança privada no Brasil enfrenta diariamente a sombra competitiva da clandestinidade. Como evidencia o Anuário, hoje podemos ter dados robustos para analisar o setor formal. Mas continuamos reféns do desconhecimento acerca do que se passa do lado das proteções privadas desreguladas. Sem reformas profundas, esse estado de coisas permanecerá assim por muito tempo.

 

*Professora de Antropologia na UNICAMP e Coordenadora Executiva da Secretaria de Vivência nos Campi

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Demonização dos povos tradicionais no caso Lázaro não surpreende https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/07/02/demonizacao-dos-povos-tradicionais-no-caso-lazaro-nao-surpreende/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/07/02/demonizacao-dos-povos-tradicionais-no-caso-lazaro-nao-surpreende/#respond Fri, 02 Jul 2021 19:51:28 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/terreiros-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1810 Em nome da luta contra o mal, mesmo com recursos tecnológicos à disposição, a polícia seguiu invadindo os terreiros e violando direitos constitucionais

Ana Paula Mendes de Miranda*, Rosiane Rodrigues de Almeida** e Leonardo Vieira Silva***

A pressa em rotular Lázaro Barbosa de Souza fez com que ele fosse apresentado de muitas formas. Uma dessas classificações resultou em violações de direitos dos povos tradicionais por parte das polícias. Ao retratá-lo como um “fanático religioso”, as forças de segurança se tornaram os cruzados contemporâneos. As operações se transformaram em ações cristãs de “libertação do mal”, numa espécie de “batalha religiosa” acompanhada em tempo real pelas redes sociais.

Tudo começou com narrativas oficiais. O “boato” de que Lázaro estaria possuído por um “demônio” ou “espírito” foi veiculada pelo tenente Gérson de Paula, da PM de Goiás, através do site Metrópoles, no dia 15 de junho. O policial teria afirmado que o criminoso andaria com um “livro místico” que lhe garantiria “proteção espiritual”, razão pela qual “só poderia ser pego com auxílio de cães ou cavalos”. Na sequência, a entrevista do major Rio Branco, subchefe do Centro de Comunicação Social da Polícia Militar do Distrito Federal, ao UOL, que, ao analisar as dificuldades de prender o criminoso, afirmou: “se ele [Lázaro] é a força satânica, as forças de segurança são os anjos de Deus”.

A imprensa mordeu a isca e reconduziu a cobertura, deixando de lado o “perfil psicológico” e investindo na suposta prática demoníaca, mesmo com a ex-mulher e um amigo do suspeito afirmando que Lázaro era evangélico. O G1 reproduziu fotos, que teriam sido divulgadas pela polícia civil, de alguns assentamentos de Exu e pentagramas. Na reportagem, o delegado Raphael Barboza afirmou que os objetos foram encontrados na “casa” de Lázaro, sendo “indicativos de práticas de bruxaria e rituais”. Impressiona que, em pleno século XXI, o jornalismo brasileiro não saiba lidar com a diversidade religiosa. Mas o problema não parou aí.

A ação se voltou para investigar as suspeitas de acobertamento de Lázaro pelos terreiros da região. Diferentes grupos de policiais passaram a invadir, sem mandado judicial, cerca de 12 terreiros. Vídeos disponíveis nas redes sociais demonstram que antes do “combate” aos terreiros, os policiais oravam.

A “neoinquisição” utilizou-se de técnicas tradicionais de interrogatório e pressão dirigida aos suspeitos – os povos tradicionais de matrizes africanas. Em nome da luta contra o mal, com os meios tecnológicos mais modernos, seguiram invadindo os terreiros e violando direitos constitucionais.

As invasões, agressões físicas e verbais só cessaram quando as lideranças religiosas se mobilizaram, por meio das redes sociais, denunciando que as fotos não eram da “casa” de Lázaro, mas do babalorixá André de Oxum, que, após uma peregrinação, conseguiu registrar ocorrência policial sobre os abusos sofridos. Os afrorreligiosos buscaram os meios legais e parceiros que os apoiassem nas suas reivindicações: mandado de segurança para proteção das casas; apuração de responsabilidades das forças policiais pelas agressões; reparação dos danos/agressões; retratação dos meios de comunicação, e garantia do Estado para o direito à liberdade e integridade dos territórios tradicionais.

A pressão serviu ao menos para que o G1 e o UOL se retratassem, pedindo desculpas pelos “erros no processo de produção” das reportagens. O Metrópoles nada fez até o momento da redação deste texto. As instituições policiais seguiram caladas diante da violação que produziram.

Há mais de 30 anos se discute no Brasil que as instituições de segurança pública não têm o direito de dispor de forma ilimitada do uso da força. Há que se respeitar os limites legais que estabelecem que o mandato de uso da força, conferido aos agentes de segurança, não pode violar os direitos fundamentais.

Analisando os relatos e reportagens fica evidente que o início das agressões se deu pelas forças do Estado, difundindo a ideia de que se tratava de uma missão religiosa de libertação do mal. O que vimos é o desrespeito aos preceitos fundamentais basilares, com a invasão ilegal dos terreiros e a espetacularização midiática das operações. O episódio lembra “A Quebra de Xangô”, ocorrida em Alagoas, em 1912, quando terreiros foram invadidos e destruídos com a mesma intenção.

Inaceitável que as operações policiais funcionem como dispositivo publicitário de produção de medo e violação de direitos. Quem ganha com a encenação e espetacularização da insegurança? Trata-se de um fenômeno antigo que explora a violência como mercadoria – notícia – e transforma o público em mero espectador.

Mais uma vez negou-se a humanidade aos povos afroameríndios, para em seguida negar-lhes os direitos. A demonização dos terreiros pelas igrejas cristãs, pela mídia, pelas agências estatais, vem da colonização. Ela serve para generalizar o medo, para organizar moralmente a sociedade em torno de um modelo excludente da diversidade, que trata o mundo de modo dual (bem versus mal), no qual se inventam os “demônios” para que sejam sempre os culpados. Não se trata apenas de uma questão religiosa, mas sim de uma ética, um modo de pensar, sentir e agir que orienta práticas institucionais. Neste caso a demonização serviu para ocultar os interesses financeiros de um fazendeiro, que teria escondido o criminoso. Ele não permitiu a entrada das polícias em sua fazenda, mas não houve uma invasão tal como nos terreiros, pois ele foi preso mediante outro tipo de ação. Nada de novo na política e na polícia brasileiras.

 

*Professora de Antropologia (UFF); Pesquisadora do INCT-INEAC (UFF); Bolsista de Produtividade do CNPQ 2.

**Bolsista de Pós-Doutorado em Antropologia (FAPERJ); Pesquisadora do INCT-INEAC (UFF).

***Doutorando em Antropologia (UFF); Pesquisador do INCT-INEAC (UFF)

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Na edição desta semana, leia também “Vinte anos da criminalização do assédio sexual” e “Casos DG e Floyd, duas mortes e a mesma causa: a letalidade policial“.

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Morte de Ecko fortalece a expansão política miliciana https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/06/25/morte-de-ecko-fortalece-a-expansao-politica-miliciana/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/06/25/morte-de-ecko-fortalece-a-expansao-politica-miliciana/#respond Fri, 25 Jun 2021 15:27:01 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/ecko-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1802 Por trás da morte midiática do homem mais procurado pela polícia do Brasil está uma construção política de consolidação da milícia, ao invés do seu enfraquecimento

José Cláudio Souza Alves*

O assassinato de Wellington da Silva Braga, o Ecko, em uma operação da Polícia Civil, no dia 12 de junho de 2021, representa mais um capítulo de uma guinada política da atuação policial pelo governo do estado do Rio de Janeiro em direção ao fortalecimento da estrutura miliciana que vem se expandindo de forma acelerada nos últimos anos. Por trás da morte midiática daquele que seria o homem mais procurado pela polícia do Brasil, e o líder da maior milícia do estado, está uma construção política de consolidação da milícia, ao invés do seu enfraquecimento, como afirmado pelas autoridades policiais e pela mídia. Para entender isso, é preciso relacionar essa morte a uma sequência de eventos que se iniciaram em outubro de 2020.

Naquele momento, a um mês das eleições municipais, uma operação conjunta da Polícia Civil e Polícia Rodoviária Federal assassinou 17 pessoas, sob a justificativa de serem “narcomilicianos”. Esse termo passava a dar a tônica da atuação policial. Com ele, desvincula-se a atuação miliciana da ligação com os agentes de segurança pública, dentro do Estado, atribuindo-a às práticas de traficantes. A consequência seria a liberação para matar tais indivíduos, já que não passavam de bandidos. O marketing da ação policial “antimilícia”, ocultando o engajamento crescente dos policiais ao empreendimento miliciano, soma-se à lógica do “bandido bom é bandido morto”, tão cara à extrema direita, naquele momento, em plena campanha eleitoral.

O segundo evento foi a implantação de um destacamento do 39º Batalhão da Polícia Militar no Complexo do Roseiral, na cidade de Belford Roxo, em janeiro de 2021, a partir das articulações entre o prefeito reeleito, Wagner dos Santos Carneiro, e o governador Cláudio Castro. As mais de 20 mortes produzidas por operações policiais nessa área vitimando membros do Comando Vermelho (CV) se incluem na geopolítica de expansão das milícias, que há décadas dominam os bairros do São Bento e Pilar, na cidade vizinha de Duque de Caxias, seguindo o eixo da Avenida Leonel Brizola.

O terceiro momento surge na operação da Polícia Civil que assassinou 28 pessoas em uma operação na favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro. Tal desproporcionalidade de mortes, quando comparadas ao histórico mais recente das operações na capital, relaciona-se tanto ao confronto com o STF e a ADPF que restringe operações policiais nas favelas, em decorrência dos efeitos da pandemia de Covid-19, como à disputa geopolítica miliciana que vem isolando o Jacarezinho a partir dos conflitos com o CV em três favelas próximas: Arará, Mandela 2 e Bandeira 2, as duas últimas, do Complexo de Manguinhos.

A morte de Ecko, a aproximadamente um mês da chacina do Jacarezinho, dá prosseguimento ao projeto em curso. A aliança entre milícia e Terceiro Comando Puro (TCP), tendo o aparato policial como fiador, perpetua-se, a despeito dos assassinatos de “narcomilicianos”, ligados ao TCP, presentes na Liga da Justiça ou ex-bonde do Ecko, numa espécie de “preço a ser pago” pela manutenção dos negócios e marketing “antimilícia” que tenta ocultar a expansão miliciana.

Há, igualmente, uma intensificação do controle territorial, econômico e político eleitoral feito pela milícia em cima das áreas do CV. Projeta-se um alinhamento midiático com o discurso do extermínio, praticado pela política de segurança pública, com destaque para as redes de televisão, notadamente o SBT, com sua penetração popular. Essa correlação de acontecimentos deixa nítida a estratégia política voltada para as eleições de 2022, nas quais os candidatos ao governo do estado, Câmara estadual e federal, Senado e Presidência da República, com projetos de extrema direita, visam aprofundar seus ganhos a partir das disputas entre si, engalfinhados para ocupar o palanque bolsonarista.

O cenário de aprofundamento do fosso social e crescimento do mundo do crime, como alternativa real frente à crise multidimensional que se estabelece, projeta a área de segurança pública como grande palco de operações psicológicas, sociais, midiáticas e assassinas cujo objetivo é consolidar uma hegemonia inconteste da extrema direita sob a batuta bolsonarista. A morte de Ecko, apenas mais um soldado transformado em chefão para justificar a lógica do extermínio como solução, tem, igualmente, uma outra dimensão, que não se pode desprezar. Ela abre um cenário de disputas, internas e externas à milícia, quanto à liderança e condução do legado miliciano na Zona Oeste e Baixada Fluminense que juntas congregam quase 50% do eleitorado do estado.

Danilo Dias Lima, o Tandera, emerge como novo “Lampião” a ser degolado, mas provoca instabilidade na disputa interna à milícia ao ser alçado, pela morte de Ecko, à categoria de novo “chefão” que enfrenta a resistência dos herdeiros familiares de Ecko, como é o caso de Luís Antônio da Silva Braga, seu irmão. Essa instabilidade da disputa interna miliciana se junta, por sua vez, ao risco da retomada, pelo CV, de áreas perdidas para a milícia, produzindo uma intensificação do terror nas comunidades em disputa, que são muitas. Esse agigantamento da onda de instabilidade e medo reforça o pano de fundo para a manutenção do extermínio como prática da segurança pública, retroalimentando mais operações e chacinas enquanto cortina de fumaça que oculta a expansão miliciana como projeto de controle de amplo espectro e, principalmente, político eleitoral.

Todos esses eventos projetam a milícia como grande palanque para 2022. Quem tiver mais milicianos ao seu lado, com controle territorial, econômico e político de áreas, sai na vantagem. Quem mais matar os “narcomilicianos”, troféus criados para as prateleiras da extrema direita, também ganha pontos. Quem soma as duas estratégias tem mais pontos ainda. Desse modo, o a região metropolitana do Rio de Janeiro mantém o seu papel de grande laboratório, repercutindo para o resto do país, dentro do projeto bolsonarista hegemônico, as novas etapas da “milicialização” da segurança pública.

 

*Professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e autor do livro “Dos barões ao extermínio: uma história da violência na Baixada Fluminense”.

 

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Na edição desta semana, leia também “O que nos ensina o Big Brother Policial que envolve a caçada a Lázaro Barbosa” e “Segurança Pública 4.0 : tecnologia e inovação no combate à criminalidade”.

 

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A crise de segurança pública na Amazônia https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/06/24/a-crise-de-seguranca-publica-na-amazonia/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/06/24/a-crise-de-seguranca-publica-na-amazonia/#respond Thu, 24 Jun 2021 12:54:32 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/Amazônia-faces-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1799 Cocaína entra no país pela Amazônia sem barreira física devido à falta de efetivo da Polícia Federal e pela ausência de policiamento específico de fronteira.

Mario Aufiero*

Há tempos, a falta de uma política de segurança para as fronteiras brasileiras, em especial a da Amazônia, vem caracterizando diversos problemas na segurança pública em dezenas de cidades amazônicas. Recentemente, todo o país assistiu às ações do crime organizado na cidade de Manaus, capital do maior estado da federação brasileira, o Amazonas, e em municípios vizinhos. Ataques a escolas, hospitais, ônibus, carros públicos e particulares foram realizados de forma coordenada pela facção criminosa que domina essa parte do território.

Vários especialistas na área de segurança pública como também diversos atores da segurança que vivem e trabalham nessas localidades já registraram que a droga, o cloridato de cocaína, entra em nosso país pela Amazônia, sem nenhuma barreira física ou do estado. Isso ocorre por falta de efetivo da Polícia Federal como também pela ausência de um policiamento específico de fronteira para Amazônia. Dessa forma, as facções conseguem garantir de forma fácil a entrada de entorpecentes no Brasil dentre outras atividades criminosas, apesar dos esforços das polícias estaduais em vigiar e combater esse tipo de criminalidade.

O que ocorreu em Manaus e nas cidades vizinhas na primeira semana de junho de 2021 foi uma demonstração de força do crime organizado contra o Estado, deixando milhares de pessoas com medo. Isso é inaceitável, mas deriva justamente da ausência de uma política nacional macro de segurança para a Amazônia.

Essa região do país é diferente de tudo que conhecemos no restante do Brasil. Logo, as políticas de segurança pública devem ser planejadas levando-se em conta as especificidades da região, pois suas características territoriais e sociais diferem do restante do país.

O próprio Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), que já completou três anos e ainda não foi implementado, precisa ser revisto para trazer elementos especiais de tratamento para a segurança pública na Amazônia. Assim, poderia atender velhas demandas para a área de segurança para a região, especialmente em suas regiões de fronteira.

O policiamento de fronteira na região se faz necessário há décadas. Portanto, a União tem o dever, por meio do SUSP, de criar e amparar os estados e municípios amazônicos. No momento, o reduzido efetivo da Polícia Federal não é capaz de guardar as fronteiras amazônicas.

A União e os estados amazônicos devem incentivar os munícipios da Amazônia no desenvolvimento de planos municipais de segurança como meio de prevenção, controle e repressão da criminalidade. Para tanto, é necessário alocar recursos nos municípios para que possam integrar os esforços de provisão de segurança.

A questão social também tem que ser tratada de forma especial, com ações de prevenção à violência juvenil, além do foco nas famílias em situação de vulnerabilidade social. Sem uma visão completa do problema e de ações baseadas nas características amazônicas, a possibilidade de ocorrência de eventos semelhantes não deve ser descartada.

Portanto, este é o momento de a União, por meio da Secretaria Nacional de Justiça, desenvolver políticas concretas de segurança para a região levando em consideração as suas características e a voz de seu povo. Para tanto, uma política concreta para as fronteiras deve ser estabelecida, de modo a construir um sistema efetivo de proteção da Amazônia. O problema da segurança impacta diretamente na questão ambiental, pois sem instrumentos efetivos de aplicação da lei, tais problemas permanecerão em evidência.

Por fim, a população de Manaus e dos municípios vizinhos que sofreram recentemente com os ataques das organizações criminosas não deve mais ser penalizada pela ausência de uma política concreta para a região.

*Superintendente-geral do Centro de Estudos de Segurança da Amazônia- CESAM, mestre em Administração Pública com ênfase em Segurança Pública – FGV/EBAPE, doutorando em Função Social do Direito pela FADISP e delegado de polícia PC-AM.

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Na edição desta semana, leia também “Máquina de moer gente negra” e “O invisível assédio nosso de todos os dias“.

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O soldado e o Estado no Brasil https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/06/11/o-soldado-e-o-estado-no-brasil/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/06/11/o-soldado-e-o-estado-no-brasil/#respond Fri, 11 Jun 2021 21:05:08 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/ppp-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1794 Precisamos que o pensamento democrático balize, de fato, as instituições públicas, mormente as que detém o exercício do poder coercitivo do Estado. 

Catarina Corrêa*

 

Pagamos por nossas escolhas. Não há maior verdade, quando falamos de política. E o Brasil tem um histórico de adiar o futuro, de deixar os conflitos para depois, porque estamos em crise. Mas sempre estamos em crise. Então, a reforma das instituições sempre fica para depois.

No final do século XIX, passamos de uma monarquia institucionalmente falida para uma república disfuncional. E não é nenhuma novidade que sistemas presidencialistas, sobretudo quando dependem de amplas coalizões, oferecem poucas ferramentas para manejar crises políticas. Não temos “recall”, nem dissolução de governos politicamente ineptos. Temos o “impeachment”, que depende da existência de crimes de responsabilidade. Nome infeliz, já que, tecnicamente, não parece muito com o que vemos no Direito Penal. Mas, no final, para quem perde, “impeachment” sempre será golpe.

Pois o Brasil, quando iniciou sua história republicana – e lembre-se, por meio de um golpe militar –, adotou uma estrutura institucional que oferece, como dito, poucas ferramentas para debelar crises. E, para nosso infortúnio, temos, desde o fim do século XIX, uma superposição de crises constitucionais.

Temos a crise da federação – que já existia quando ainda éramos um país unitário –, em que todos os seus membros estão sempre descontentes, culpando-se mutuamente por seus infortúnios. 

Temos a crise do sistema representativo, gerada por partidos sem permeabilidade, que não permitem que a sociedade participe de suas estruturas, que se estabelecem como feudos, e cujo único interesse é, em regra, a manipulação da política mais rasteira ou simplesmente a divisão do butim chamado fundo eleitoral.

Temos mais crises do que o espaço desse artigo permite relatar. Importante mesmo é lembrarmos como essas crises (não) foram administradas.

No momento em que a debilidade institucional – que inviabiliza a construção do futuro, ao sonegar a implementação de políticas públicas de longo prazo coerentes – toma conta do Estado, não há nada que ele possa fazer além de permanentemente tentar apagar incêndios.

O resultado desse quadro é impaciência e frustração com a falta de resultados. O que os cidadãos percebem é tão-somente injustiça. Injustiça na cobrança dos impostos, na repartição das receitas tributárias, na distribuição dos serviços públicos, na criação da desejada igualdade de oportunidades.

Em nossa experiência histórica, essas situações de profunda frustração política acabam sendo mediadas, em seus momentos mais agudos, pelos militares. Quando as instituições não dão conta, os militares se sentem legitimados a oferecer uma solução. 

Não houve força institucional ou social que fosse suficientemente poderosa para estabelecer um limite claro para essas intervenções. Refiro-me a todos os tipos de intervenções, até mesmo tweets em véspera de julgamento no STF.

Voltando à nossa história política, a própria república surgiu também de uma crise militar, a do Império. A República Velha, por sua vez, revelou a presença quase permanente dos militares no protagonismo político. A Revolução de 1930, primeiro ímpeto de modernização (para o bem e para o mal) na história do Brasil, teve o dedo do tenentismo. O fim do Estado Novo se deu pela mão dos militares, que, depois de lutar pela democracia (dos europeus), desistiram de Getúlio Vargas. Depois disso, a precária democracia brasileira continuou precisando da tutela de militares (antigolpistas): Marechal Lott, por mais de uma vez, e Leonidas Pires Gonçalves, só para citar os mais destacados.

Certamente, o clima de intransigência e de intolerância política, que, de tempos em tempos, nos assola, alimenta a disfuncionalidade mais grave de todas: a perda da fé de que o sistema político, com todas as suas imperfeições, seja capaz de ajudar-nos a enfrentar a tempestade. 

Certamente, o General no palanque nos serve de alerta. Precisamos de limites institucionais mais claros. Precisamos que o pensamento democrático balize, de fato, as instituições públicas, mormente as que detém o exercício do poder coercitivo do Estado. 

Samuel Huntington, em “O Soldado e o Estado” (1957), sustenta que os militares operam em uma esfera separada, mas subordinada. Sua teoria – criticada como excessivamente idealizada – ensina que os líderes políticos fazem a política e fornecem a orientação abrangente do que deve ser feito, enquanto os militares se atêm à sua área de competência – a aplicação do poder militar. Essa estrutura oferece uma orientação clara e precisa, mas exige musculatura institucional, que, aparentemente, ainda não temos.

 

Juíza do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios

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Na edição desta semana, leia também “A política entrou nos quartéis” e “Autonomia financeira e o impacto da violência contra as mulheres brasileiras“.

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