Faces da Violência https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br O que está por trás dos números da segurança pública Tue, 23 Nov 2021 18:56:47 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Polícias, a faixa de posse e o medo dos governantes https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/10/09/policias-a-faixa-de-posse-e-o-medo-dos-governantes/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/10/09/policias-a-faixa-de-posse-e-o-medo-dos-governantes/#respond Wed, 09 Oct 2019 15:14:29 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/10/wilson_governador-300x213.png https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1122 Por Jacqueline Muniz*

07/10/2019. O jornalista Rafael Soares, do O Globo, noticia que um PM do BOPE propôs ao chefe do tráfico do Complexo da Serrinha, bairro de Madureira, a morte de um oficial do 9º BPM que comandava operações policiais na área. O conteúdo da matéria é extraído do grampo realizado, com autorização judicial, entre 2014 e 2015. O tom de gravidade do ocorrido e de perplexidade pela sua repetição revela a importância da notícia e que ela não é um mero registro factual. O próprio Elio Gaspari a retoma em sua coluna de hoje, na Folha.

Casos noticiados de aluguel da autoridade policial para propósitos pessoais e ilícitos têm aparecido, com uma regularidade alarmante e, principalmente, como um recurso fundamental para a governança da economia do crime em rede e itinerante. Negociatas retalhistas da carteira de polícia chocam porque dão a medida qualitativa da extensão e disseminação destas práticas  no cotidiano dos fazeres policiais.

No Rio de Janeiro, os arranjos políticos com os domínios armados no atacado, revelam-se incapazes de absorver e coordenar os acertos policiais no varejo. A articulação com os mercados ilícitos pelo topo parece se realizar  por uma lógica de conflito latente e manifesto com os variados acordos saídos da base da pirâmide policial. Tem-se disputas internas por fatias do mercado ilícito nos territórios populares entre integrantes do alto e do baixo escalão e dentro dos mesmos níveis hierárquicos. Como resultado, os contratos com os grupos criminosos, também em disputa frente a pouca durabilidade dos acordos político-comerciais, se tornam ainda mais provisórios, instáveis e de baixa confiabilidade, exigindo atuações violentas ostentatórias, de parte a parte, para fazer valer e atualizar as regras precárias de um jogo econômico milionário.

A inversão informal e a fragmentação invisível da cadeia de comando e controle policial pela autonomização e particularização do poder de polícia, têm rendimentos significativos para a exploração de mercados ilícitos. Possibilitam que cada unidade operacional, cada guarnição e, no limite, cada policial possa fazer, de forma independente, a sua própria “operação policial” e promover sua guerra particular, seja em nome de algum interesse público, seja em seu próprio nome. Não se explicita uma unidade de comando na gestão dos policiamentos públicos e nem se observa uma unidade de comando nas atividades policiais ilegais.

As inúmeras possibilidades individualizadas de ganhos ilegais por policiais que prestam serviços criminosos crescem na medida em que eles são emancipados de qualquer controle institucional e tornam-se livres para operarem de forma avulsa e localista. Isto corresponde a transformar o poder de polícia em um cheque em branco a ser preenchido pelo agente da lei com o lastro de suas clientelas acima, abaixo e ao redor. Tem-se tantos arranjos policiais ilegais possíveis quanto oportunidades de arrendamento de territórios populares para grupos armados.

Não me canso de alertar para o processo em curso de autonomização predatória do poder de polícia que produz governos autônomos e criminosos. Não me canso de falar que a violência e a corrupção policiais são dois lados da mesma moeda negociada dos mercados ilegais que produzem ameaça para vender proteção. Não me canso de dizer que não são os meios (de força) que devem determinar os modos e os fins de sua ação.

Não me canso de repetir que a espada (executora do poder coercitivo da sociedade administrado pelo Estado) não pode, ela mesma, definir a extensão e profundidade do seu corte. Não me canso de insistir que a espada, entregue a si mesma, corta a língua do verbo da política da esquerda e da direita e rasga a letra da lei. Não me canso de esclarecer que a “síndrome do cabrito” (sobe-desce morro) serve para transformar as polícias em mercadorias a serviço de interesses corporativistas, de oportunismos político-partidários e de apropriações privatistas.

Não me canso de avisar que governantes, iludidos com o “tiro, porrada e bomba”, ficam sitiados em seus gabinetes e perdem o governo da segurança. Não me canso de alertar que quando o governante tem medo de comandar as polícias, ele torna os policiais inseguros em seu trabalho e os cidadãos acuados diante de sua polícia.

O medo generalizado tem sido um péssimo conselheiro. Governante, policiais e cidadãos tornam-se presas fáceis das cruzadas moralistas e do estelionato dos senhores da guerra e dos mercadores da proteção. A polícia do bem vai perdendo as ruas para a polícia dos bens. Os cidadãos vão perdendo a soberania do ir-e-vir para a sujeição nos confinamentos grupais e espaciais.

O agravamento do temor tem cumprido o seu papel: destituir as polícias de institucionalidade, miliciando os seus recursos e rifando as vidas policiais. O marketing do terror tem produzido o seu principal resultado: fazer crer que matar tem mérito e que morrer tem merecimento! Fazer crer que há uma guerra contra o crime, o que dá vida e legitima discursos amedrontados e reativos tanto favoráveis quanto contrários!

Não me cansarei de dizer: quem não comanda a segurança não tem como garantir a estabilidade do governo e do exercício de seu próprio poder. Vão-se as mãos da caneta que decreta a “política do abate”. Vai-se a voz que comanda o “tiro na cabecinha”. Fica-se somente com a faixa de posse em um manequim sem medidas, indício de desnorteio emocional e político, memória do fracasso já anunciado. Atrás de policiais que matam e que morrem, têm sempre uma polícia institucionalmente fraca e um governante vulnerável.

 

* Professora do Departamento de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense – UFF

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O tiro da indiferença que matou Ágatha Félix https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/09/22/o-tiro-da-indiferenca-que-matou-agatha-felix/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/09/22/o-tiro-da-indiferenca-que-matou-agatha-felix/#respond Sun, 22 Sep 2019 17:43:58 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/09/15691557295d876a91d2989_1569155729_3x2_xl-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1084 Todos estamos acompanhando mais um drama de uma família obrigada a velar e lamentar a morte de uma criança que, em meio ao fogo cruzado de uma insana guerra, foi atingida por uma bala perdida ontem quando estava dentro de uma kombi com a mãe, a caminho de casa, na noite de sexta (20), em uma localidade chamada Alvorada, no alto do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro.

Ágatha Félix tinha apenas 8 anos de idade e, em uma mórbida coincidência, o seu prenome tem origem na palavra grega agathos, que significa “bom, perfeito, respeitável, virtuoso”. Já seu sobrenome, Félix, tem origem do latim e significa “feliz, sortudo, bem-sucedido”. Simbolicamente, essas referências são um tapa na cara da letargia e a indiferença com que lidamos com a violência. A morte de Ágatha é a morte do respeito pela dignidade da vida humana no Brasil; é a morte da esperança.

O quadro é tão grave que motivou inclusive uma correta e enfática nota do Ministro do STF, Gilmar Mendes, no Twitter. Para ele, “os casos de mortes resultantes de ações policiais nas favelas são alarmantes. Ágatha é a quinta criança morta em tiroteios no RJ neste ano. Ao total, 16 foram baleadas no período. Uma política de segurança pública eficiente deve se pautar pelo respeito à dignidade e à vida humana“. Que mais autoridades tenham a lucidez de se posicionarem neste momento.

Em nome da guerra contra o crime, a política de segurança pública de Wilson Witzel ultrapassou todos os limites éticos que pudessem diferenciá-la da ação dos traficantes e milicianos que dominam os territórios abandonados pelo Estado. O espírito de “caça” está sendo estimulado e as polícias estão sendo incentivadas a irem para cima dos “criminosos” independente dos custos ou efeitos colaterais. O que importa são os resultados, argumento que a história tem sido virtuosa em nos mostrar o vínculo com as mais cruéis formas de autoritarismos.

E a declaração do porta-voz da Polícia Militar do Rio de Janeiro, que se antecipou à perícia técnica ao dizer que “não há indicativo de participação da PM” e que a polícia “não irá recuar”, mostra a insensibilidade e a sensação de as instituições policiais fluminenses poderem decidir sobre a vida e a morte de pessoas sem nenhum tipo de constrangimento e/ou controle da legalidade.

A única declaração eticamente possível era a de que a PMERJ lamentava profundamente a morte de Ágatha e que uma sindicância seria instalada para investigar o que houve e que as autoridades abririam  a possibilidade de órgãos independentes acompanharem.  É assim no Reino Unido; é assim em qualquer país civilizado, em que comissões independentes não são vistas como inimigas, mas como do jogo democrático.

Este é um caso explícito de falta de controle, pois, independentemente da “bala perdida” ter sido disparada por um policial ou por um traficante [lembrando que quase não há operações policiais em área dominadas pelas milícias no RJ], outros órgãos ainda não deram maiores declarações. Um exemplo é o Ministério Público Estadual, que deveria não só exercer sua função de controle externo da atividade policial como, sobretudo, fazer isso de forma transparente e obrigando que a investigação do fato transcorra com a máxima isenção e transparência.

Explorando o espírito republicano de algumas autoridades que preferem atuar dentro da liturgia de seus cargos, alguns líderes como Witzel, Bolsonaro e vários outros perceberam que se falarem mais alto e fazer caras de maus conseguirão impor suas agendas. Eles estão destruindo a institucionalidade do Estado de Direito no Brasil à luz do dia, sem nenhum pudor ou disposição para os formalismos legais.

O padrão operacional das polícias do Rio está superando qualquer métrica ou baliza civilizada e supera, nos seus resultados, até mesmo a retórica de Rodrigo Duterte, das Filipinas, que tem orgulho em defender a morte de traficantes.

Não há equivalência moral, ética ou política entre cobrar o Estado para que aja dentro da lei e com respeito à vida e quando o crime mata algum agente público ou outra pessoa. Quem cometeu um crime precisa ser investigado e punido com o rigor da lei. Não podemos pensar que o crime pode ficar impune no Brasil.

Porém, precisamos, ou melhor, temos a obrigação de cobrar das polícias postura e respeito incondicional aos valores da nossa Constituição. E isso é muito diferente de ser inimigos das polícias e defensores de bandidos. Quem assim pensa só ajuda a incentivar a desconstrução da nação.

A violência faz parte da história do Brasil desde a chegada dos portugueses e que, se não quisermos ser dominados por milícias privadas, temos que nos insurgir contra as injustiças. Em momentos como o que estamos vivendo, não podemos deixar que as instituições sejam cooptadas para projetos autoritários e que violem liberdades e garantias fundamentais.

Se o tiro que matou Ágatha Félix é a morte do espírito da inocência e da bondade, ele ainda pode nos servir de motivação para evitarmos que as milhares de mortes que nos anestesiam sejam a vitória de Kakodaemon, demônio maligno que deu origem à palavra Kako, antônima de Ágatha, no grego.

A maldade ética que impregna muitos dos nossos líderes está envenenando nossas instituições mas ainda é tempo de reagirmos. Temos que romper a barreira da indiferença.

 

 

 

 

 

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Sob Witzel, os reféns da leniência e da sofreguidão https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/08/25/sob-witzel-os-refens-da-leniencia-e-da-sofreguidao/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/08/25/sob-witzel-os-refens-da-leniencia-e-da-sofreguidao/#respond Sun, 25 Aug 2019 14:24:49 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/08/Witzel-EFE-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1040 Talvez por influência de uma das escolas mais em moda atualmente no Direito, o populismo penal, a gestão de Wilson Witzel (PSC) à frente do Governo do Rio de Janeiro adotou a tática de aliar a sofreguidão com a leniência na segurança pública. O episódio envolvendo a morte, por um atirador de elite da PMERJ, de um sequestrador que manteve 38 passageiros de ônibus reféns na ponte Rio-Niterói, no último dia 20, é um dos exemplos dessa tática e da distância que ela guarda com a realidade da área.

Em primeiro lugar, Witzel adotou a segurança pública como plataforma da sua sofreguidão por se fazer relevante no debate nacional e tenta disputar com Jair Bolsonaro a posição de líder antissistema, mesmo que à custa da verdade dos fatos. Isso porque, ao aproveitar o desenlace do caso do sequestrador na ponte Rio-Niterói para reforçar seu discurso de “abate” de criminosos armados com fuzis e armas de guerra, o governador do Rio comete, a meu ver, dois grandes atos-falhos.

Sem contar a comemoração efusiva e aética da morte dos sequestrador ao sair da helicóptero que o levou à cena do sequestro, que depois foi negada, Witzel apressou-se a prometer que promoverá o Sniper por ato de bravura, sem considerar que ali ela estava expondo o policial sem antes investigar os riscos de represália de pessoas ligadas ao sequestrador que eventualmente pudessem querer vingança e/ou sem se dar conta que seu gesto atropelou toda uma cadeia de comando, supervisão e controle.

Um Sniper só atira após receber comando autorizando-o a neutralizar o seu alvo. E, se há um disparo, ele é fruto de uma decisão tática de comando da própria polícia, nunca do governador. Não existe decisão política, pois ela deve ficar no plano tático-operacional. E, nesses casos, por ser uma decisão de comando, o policial já está salvaguardado pela legislação e conta com proteção jurídica para que não seja responsabilizado individualmente, ao contrário do discurso fácil e diversionista que se instalou no Brasil sobre excludente de ilicitude.

Além disso, as operações antiterrorismo no mundo todo nos ensinam que medidas extremas de neutralização exigem que existam “regras de engajamento” muito claras e, sobretudo, que os policiais da ponta tenham suas identidades preservadas durante a obrigatória investigação dos fatos. Se Witzel quiser, ele pode assumir o ônus jurídico de publicar a regra de engajamento que acha mais adequada e dar guarida à atividade policial. Mas, mais uma vez, a sofreguidão colocou os policiais em risco.

E desse primeiro ato falho deriva o segundo e mais grave deles. A declaração do governador após o episódio, em que ele afirma que pretende consultar o STF (Supremo Tribunal Federal) sobre em que possibilidades os policiais podem matar suspeitos de cometer um crime revela que o discurso de guerra do governador é minuciosamente calculado para, de um lado, conquistar corações e mentes da população em pânico e dos policiais.

Porém, por outro lado, se a “guerra” resultar em “danos colaterais” politicamente ou legalmente altos demais e cobranças chegarem, a atitude de questionar o Supremo mostra tão somente que as mãos serão lavadas e que a responsabilidade de comando desaparecerá para dar lugar à imputação de erros e culpas individuais dos policiais da ponta.

Na dúvida, a autoridade se blinda e toca a vida fazendo um discurso de ordem vago e leniente, enquanto policiais e população se digladiam em um vórtice interminável de violência, medo e ressentimento; enquanto ficamos reféns e no meio do fogo cruzado que sequestra a vida cotidiana de milhões de pessoas.

Por trás da “dúvida” legal disseminada por Witzel esconde-se o temor em tomar decisões que dariam segurança jurídica ao modelo de enfrentamento por eles defendido e, consequentemente, dariam a tão explorada politicamente proteção aos policiais. Mas, como ex-juiz, Wilson Witzel sabe que decisões têm consequências.

Por todos esses fatos, é fundamental olharmos para a segurança pública sem o ranço miliciano e contagiante da intolerância e convidarmos as polícias [e mesmo as Forças Armadas] a refletirem sobre a forma como estão sendo usadas eleitoralmente pelos governantes. Uma democracia forte não depende apenas do voto, mas de instituições de Estado que acreditem no Estado Democrático de Direito e o coloque todos os dias em prática sem o diversionismo ideológico que marca nossa Era.

 

 

 

 

 

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