Faces da Violência https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br O que está por trás dos números da segurança pública Tue, 23 Nov 2021 18:56:47 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Efeito Contágio: o papel da mídia na repetição de assassinatos em massa https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/05/14/efeito-contagio-o-papel-da-midia-na-repeticao-de-assassinatos-em-massa/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/05/14/efeito-contagio-o-papel-da-midia-na-repeticao-de-assassinatos-em-massa/#respond Fri, 14 May 2021 22:04:40 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/Back-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1772 Ampla divulgação de massacres pode contribuir para a ocorrência de casos semelhantes. Jornalistas devem evitar citar o nome dos perpetradores e não publicar suas fotos

 

Caroline Back*

Mais um caso de assassinato em massa chocou o país no dia 04/05: um rapaz de 18 anos invadiu uma creche no interior de Santa Catarina e matou a golpes de facão três crianças e duas professoras, tentando em seguida cometer suicídio. A ocorrência de mais essa tragédia evidencia uma preocupação: há algo que se possa fazer para tentar evitar casos como esses?

Nesse sentido, este artigo busca trazer reflexões acerca da cobertura midiática dessas ocorrências e a possível influência em novos casos, o chamado “efeito contágio”. Além disso, oferece orientações para direcionar a cobertura de tais eventos de forma a minimizar esse efeito.

Cobertura midiática e o efeito contágio

Há muito tempo, teóricos da psicologia e sociologia sabem que comportamentos tendem a ser imitados com base nas suas consequências e esse efeito pode ser particularmente devastador no caso de comportamentos violentos.

Exemplo disso é o chamado “efeito Werther”, termo proposto pelo sociólogo David Phillips, em 1974, para descrever a influência da divulgação de atos suicidas na ocorrência de outros casos. O fenômeno foi observado na Alemanha, no final do século XVIII, após uma onda de suicídios ter sido relacionada ao trágico desfecho do personagem Werther – da célebre obra de Johann Von Goethe, publicada em 1774.

Acredita-se que o mesmo fenômeno esteja relacionado aos casos de assassinatos em massa, o chamado “efeito contágio”, indicando que a ampla divulgação dos massacres possui o efeito de gerar outros casos semelhantes, de indivíduos que buscam imitar os ataques e receber a mesma atenção.

Esse fenômeno pode ser explicado, em parte, pela ampla publicidade que se dá a tais eventos. Por exemplo, um levantamento mostrou que os autores de sete assassinatos em massa entre 2013 e 2017 receberam aproximadamente US$ 75 milhões em menções de mídia gratuitas. Esse tipo de publicidade gratuita pode ter o mesmo efeito de publicidades pagas, aumentando o número de interessados no assunto e inspirando a prática de novos casos.

Além disso, já foi demonstrada correlação positiva entre o número de vítimas e a publicidade obtida pelo agressor. Um estudo que analisou assassinos em massa entre os anos de 1976 e 1999 descobriu que aqueles que mataram e feriram mais vítimas tinham uma probabilidade significativamente maior de aparecer no jornal The New York Times em comparação aos casos em que houve menos derramamento de sangue. Ou seja, a maior atenção recebida pode ser um incentivo a mais para o criminoso matar o maior número de vítimas possível.

Tal fato tem uma explicação psicológica: acredita-se que uma das características frequentes em assassinos em massa é a presença de um traço narcísico, que os leva a querer chamar a atenção da sociedade para seus atos “grandiosos” e até mesmo uma espécie de “competição” com outros ofensores para fazerem o maior número de vítimas.

Nesse sentido, Lankford documentou 24 exemplos de perpetradores que admitiram abertamente buscar fama e citou casos adicionais em que há fortes evidências comportamentais que indicam essa intenção. Alguns desses indivíduos estavam inclusive competindo com outros para se tornar o assassino em massa mais famoso da história.

Cobertura midiática e a influência em novos casos: dados assustadores

Para compreender melhor esse fenômeno, estudos buscaram identificar a influência da divulgação midiática na ocorrência de novos ataques. A maior parte deles foi feita com base em tiroteios em massa, que é reconhecidamente a forma mais comum desses ataques. Os dados são assustadores: um estudo realizado em 2015 estimou que cada evento possa incitar pelo menos 0,30 novos casos.

Outro propôs uma metodologia para estabelecer uma relação de causa e efeito entre os eventos. Ao analisar casos entre 2013 e 2016, nos EUA, concluiu que nada menos do que 58% de todos os tiroteios em massa podiam ser explicados pela cobertura de notícias. Os estudos ainda apontam um período de quatro dias a duas semanas em que essa influência estaria presente.

Recomendações

Assim, as principais recomendações para a cobertura desses eventos na mídia são simples e práticas, mas podem ser muito efetivas:

1. Não citar o nome do perpetrador nem sua foto;

2. Em vez disso, usar o ano, local do ataque e uma palavra como “perpetrador” ou “suspeito”;

3. Não usar nomes, fotos ou imagens de perpetradores anteriores;

4. Evitar retratar o indivíduo como “competente” no seu intuito homicida;

5. Evitar retratá-lo como “agressivo” ou “perigoso”, pois pode ser uma espécie de recompensa ou atributo a ser imitado;

6. Relatar todo o restante sobre o caso, com a quantidade de detalhes desejada.

Quando o assunto for a cobertura dos assassinatos em massa: “não os nomeie, não os mostre, mas relate todo o resto”.

 

*Psicóloga na Secretaria de Segurança Pública (GMSJP – PR); Especialização em Segurança Pública; Cursando Pós-Graduação em Neurociência Criminal e Comunicação não-verbal; Graduação em Psicologia (PUCPR); Cursando Graduação em Direito (FESPPR); Membro do Conselho Comunitário de Execuções Penais de São José dos Pinhais (CCEP-SJP).

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Na edição desta semana, leia também “Rio de Janeiro e o desgoverno da segurança” e “Ministério Público e o controle da atividade policial“.

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O papel da perícia no caso Henry Borel https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/04/23/o-papel-da-pericia-no-caso-henry-borel/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/04/23/o-papel-da-pericia-no-caso-henry-borel/#respond Fri, 23 Apr 2021 17:20:00 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/faces-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1726 Discussão que envolve o estabelecimento a estimativa do momento da morte de Henry será um ponto crucial na investigação. O caso aponta para um provável indiciamento dos dois envolvidos e certamente ainda vai ocupar o noticiário

Cássio Thyone Almeida de Rosa*

 

No último dia 09 de abril, a mãe de Henry Borel Medeiros e o seu então namorado, o vereador da cidade do Rio de Janeiro conhecido como Dr. Jairinho, foram presos e o caso da morte do garoto, que já vinha movimentando a mídia, ganhou ainda mais repercussão. Novos detalhes surgiram e laudos foram divulgados. Agora pretendemos avançar nas análises de alguns aspectos desse quebra-cabeças, em especial no que se refere a questões de ordem pericial.

Entre as novas informações divulgadas, consta a perícia das câmeras do circuito interno do condomínio onde o fato aconteceu. A imagem obtida junto à câmera do interior do elevador que mostra o casal deixando o apartamento para levar Henry ao hospital foi importante em diversas análises. Na imagem, a mãe carrega a criança no colo, tendo o seu namorado ao lado. O laudo indica o horário de 4h09min do dia 08 de março. O documento, segundo revelaram os veículos de comunicação, afirma que as lesões foram cometidas entre as 23h30min do dia 7 e as 3h30min do dia 8, momento em que o casal diz ter encontrado o menino morto. O casal teria, portanto, aguardado 39 minutos antes de tomar a atitude de transportar o menino até um hospital.

Com o resultado dos exames de reprodução simulada – que em verdade tecnicamente acabaram não ocorrendo, já que a mãe e o padrasto simplesmente decidiram não colaborar, e, consequentemente, não apresentaram versões a serem confrontadas, princípio básico de uma reprodução simulada de fatos – a polícia optou por realizar diversos exames complementares (simulações). Ao confrontar dados dos depoimentos apresentados e checá-los in loco, os elementos passíveis de serem analisados, como por exemplo a busca por detalhes, acabaram por demonstrar o quanto é remota a possibilidade de que a criança tenha sofrido qualquer queda no interior do quarto onde estivera nos momentos que antecederam a sua morte. Dentre outros, segundo divulgado, havia no quarto móveis que incluíam uma cama, uma poltrona e uma estante, esta última aquela com a maior altura, da ordem de 1,20m.

O novo laudo apresentou ainda uma discussão que foi referenciada como “Evolução da Cronotanatognose”. Para esclarecer esse ponto, começamos pela própria definição da palavra Cronotanatognose, cuja etimologia nos remete a radicais gregos: crono (kronos) = tempo, tanato (thanatos) = morte e gnose (gnosis) = conhecimento.

Desta forma a Cronotanatognose nada mais é que o estudo (conhecimento) do tempo de morte. Fundamenta-se nos chamados fenômenos cadavéricos, os quais implantam-se após o evento morte. A análise serve para conhecermos todos os fenômenos (divididos entre imediatos, consecutivos e tardios). Constituem exemplos de fenômenos cadavéricos imediatos: a perda da consciência, a imobilidade, o relaxamento muscular, o relaxamento dos esfíncteres, a parada cardíaca, a ausência de pulso, a parada respiratória e a insensibilidade. Como exemplos de fenômenos cadavéricos consecutivos, podemos citar o resfriamento do corpo (Algidez Cadavérica); a rigidez cadavérica (Rigor Mortis); livores hipostáticos e desidratação cadavérica. Já como fenômenos cadavéricos tardios, podemos relacionar a mancha verde abdominal, a circulação póstuma de Brouardel e os demais processos que se instalam na putrefação em seus diversos estágios (fase gasosa ou colorimétrica, fase enfisematosa, fase coliquativa e fase de esqueletização).

No caso do menino Henry, a análise das imagens dele sendo carregado dentro do elevador permitiu observar indícios pela cor da pele, cor dos lábios, rigidez do corpo, detalhes nos olhos, dentre outros, que sugerem que a criança poderia já estar morta quando a imagem foi captada.

Conforme se noticiou na mídia, a certa altura, no laudo, assim teriam os perito se expressado sobre a questão das lesões encontradas na criança e a possibilidade de que elas estivessem relacionadas a uma queda: “A quantidade de lesões externas não pode ser proveniente de uma queda livre”.

Em termos periciais, a discussão que envolve o estabelecimento ou mesmo a estimativa do momento da morte de Henry será um ponto crucial. Certamente ainda surgirão novos elementos investigativos e também relativos a exames periciais. O caso aponta para um provável indiciamento dos dois envolvidos e certamente ainda vai ocupar o noticiário. Resta-nos acompanhar, com uma sensação que mescla incredulidade e indignação.

*Graduado em Geologia pela UNB, com especialização em Geologia Econômica. Perito Criminal Aposentado (PCDF). Professor da Academia de Polícia Civil do Distrito Federal, da Academia Nacional de Polícia da Polícia Federal e do Centro de Formação de Praças da Polícia Militar do Distrito Federal. Ex-Presidente e atual membro do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

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Na edição desta semana, leia também “Indicador de eficiência para avaliação e monitoramento de operações policiais no RJ” e “Patriotismo e direitos nas denúncias internacionais da violência no Brasil”.

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Amadores e profissionais no roubo a bancos https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/12/11/amadores-e-profissionais-no-roubo-a-bancos/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/12/11/amadores-e-profissionais-no-roubo-a-bancos/#respond Fri, 11 Dec 2020 22:42:53 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/banco-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1619 Assaltos recentes a bancos revelam a criatividade dos criminosos para levantar grandes quantias de dinheiro. Em ambos os casos, porém, a polícia demonstrou preparo para investigar e enfrentar membros das grandes quadrilhas.

 

Guaracy Mingardi*

 

Os roubos ocorridos semana passada em Criciúma (SC) e Cametá (PA) chamaram a atenção não apenas pela semelhança, mas também pelo curto espaço de tempo entre os dois. São crimes de vulto, com grandes efetivos e armamento pesado. Mas a semelhança fica por aí. Ao que tudo indica, o crime ocorrido na cidade catarinense foi mais profissional que o do Pará. Inclusive por um fato bem instigante. Apesar de aterrorizarem uma cidade, atacar a polícia, provocar uma morte e movimentar o noticiário de todo o país, os ladrões não levaram nada do banco em Cametá. Ou pelo menos foi isso que afirmou o governador do estado. Teriam errado o cofre a ser explodido.

Essa quase simultaneidade de casos mostra como esse crime está se popularizando. Só esse ano ocorreram dois em cidades médias de São Paulo. O tipo criminal, portanto, está se tornando rotina, apesar dos alvos já não serem tão rentáveis como no início. Sucessor direto do crime conhecido como Novo Cangaço, os roubos cinematográficos de transportadoras de valores tiveram início há cerca de cinco anos. Desde os primeiros, já havia um modus operandi estruturado, pronto para ser utilizado nas cidades médias e grandes, em áreas muito urbanizadas, onde as rotas de fuga são complicadas. Santos e Campinas, as duas primeiras cidades onde o novo modelo foi testado, são cidades grandes, parte de manchas urbanas de mais de um milhão de habitantes. O caso mais rumoroso foi em 2017, quando uma quadrilha brasileira subtraiu mais de R$ 11 milhões de uma transportadora de valores no Paraguai.

Nos primeiros casos, as quantias roubadas foram milionárias e pegaram a polícia e as transportadoras de valores de surpresa. Ocorreram num momento de inflexão dos roubos a banco comuns, quando as medidas de segurança teriam diminuído as chances de serem bem-sucedidos. Além das portas giratórias, alarmes e câmeras no interior e fora dos bancos, o grande empecilho eram os cofres com temporizadores, que só permitem a abertura num horário determinado de antemão. Com esse sistema, os ladrões não conseguiam obrigar o gerente a abrir o cofre, portanto tinham acesso somente ao dinheiro dos caixas, o que era um espólio pequeno, tendo em vista o risco do assalto. Ou seja, o benefício do roubo a banco tradicional não compensava o risco da prisão.

O mundo do crime é muito criativo. Com os roubos a banco entrando em desuso e as outras modalidades rendendo pouco, os mais criativos dos antigos ladrões de banco arquitetaram os megarroubos. Na verdade, o início não foi simples, exigiu a conjugação de alguns fatores. Talvez o mais importante foi que em 2006 o Primeiro Comando da Capital (PCC) ganhou o controle dos presídios e das ruas em São Paulo. E a partir daí criou uma estrutura que permitiu imiscuir-se no tráfico e aos poucos controlar boa parte dessa atividade no estado. Ao mesmo tempo a organização expandiu-se no país, arregimentando todo tipo de criminoso, ou seja, não apenas traficantes. A estrutura quase empresarial do PCC sempre visou, além do controle dos presídios, facilitar a vida dos “irmãos”, como como são chamados os membros. Inclusive está escrito em vários de seus estatutos que eles são vítimas da opressão, portanto têm direito de cometer qualquer crime para sobreviver. E nem só de tráfico vive a criminalidade.

Com o crescimento da estrutura, passaram a apoiar vários empreendimentos dos membros, em troca de uma fração do lucro. Por conta dessa atividade terceirizada, e não para proteção das “biqueiras”, compraram armamento pesado, principalmente fuzis e algumas metralhadoras .50, que são armas essenciais para os mega-assaltos. Lembrando que em seu principal mercado, São Paulo, não existe qualquer organização criminosa que possa competir com o Primeiro Comando. Portanto, não é (ou não era) necessário o uso de armamento pesado para proteger os locais de venda de drogas, as “biqueiras”. Outro ativo oferecido pela organização são os especialistas em explosivos, imprescindíveis para abrir caminho ou explodir cofres nos grandes roubos.

A junção desses três fatores – dificuldade nos roubos a banco, ladrões profissionais subutilizados e uma forte organização de apoio – resultou na criação do atual modelo. Em vez de quatro ou cinco homens, número habitual, assaltarem um banco, quarenta pessoas, bem organizadas e armadas, roubam cinquenta, cem vezes mais do que nos roubos comuns. E com dois ou três golpes desses o participante, mesmo de baixo escalão, tem dinheiro para se manter por um ano ou mais. Já os líderes ficam com capital suficiente para uma aposentadoria parcial.

A questão é que o adversário, no caso a polícia, não ficou parado nesse tempo. Se adaptou aos poucos ao novo crime e apreendeu a investigá-lo. Tanto que já começou a prender suspeitos do assalto de Criciúma. O caminho para chegar aos autores foram alguns fragmentos de impressões digitais, achados pela polícia catarinense nos carros usados na fuga. Eles foram encaminhados para São Paulo, onde a Polícia Civil conseguiu identificar alguns dos criminosos. Até agora foram presos suspeitos em ao menos três estados: São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, graças ao esforço conjunto das polícias.

O profissionalismo, portanto, não está apenas de um lado da mesa. Essa mesa, que é triangular, tem profissionais dos três lados. De um, estão os criminosos que praticam esses roubos, e de outro alguns policiais especializados o suficiente para enfrentar as grandes quadrilhas. E, no terceiro, estão os bancos, que aprenderam que não é bom deixar tanto dinheiro em um só lugar. E como são dois contra um, daqui um tempo esse crime, que chama muita atenção, passará a minguar, devido ao desbalanceamento do custo/benefício.

Os grandes ladrões, porém, não ficarão de braços cruzados nem optarão por uma vida honesta, afinal são profissionais do crime. Vão inventar uma nova modalidade que causará manchetes indignadas. E terão sucesso até que o estado, representado pelas polícias, aprenda a investigar o novo crime. E então o ciclo reiniciará.

 

* Guaracy Mingardi é analista criminal e associado ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

 

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Na edição desta semana, leia também “Criciúma e Cametá: saiba o que mudou nos roubos a bancos nas últimas décadas” e “O policial tem que ter coragem até para não aceitar ordens que violem direitos humanos”, diz Charles Ramsey”.

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Homicídios no Brasil: um desastre aéreo por dia https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/09/01/homicidios-no-brasil-um-desastre-aereo-por-dia/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/09/01/homicidios-no-brasil-um-desastre-aereo-por-dia/#respond Tue, 01 Sep 2020 21:29:15 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/09/15786460715e183a3725591_1578646071_3x2_rt-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1516 A média diária de assassinatos no país equivale, em números, às mortes ocasionadas pela queda de um avião comercial com cerca de 160 passageiros.

Por Pablo Lira*

O Atlas da Violência, publicado na última semana, revelou que em 2018 foram registrados aproximadamente 58 mil homicídios no Brasil. A média diária de assassinatos no Brasil equivale, em números, às mortes ocasionadas pela queda de um avião comercial com cerca de 160 passageiros. São seis homicídios cometidos a cada hora. Com base nesse diagnóstico inicial, o país se destaca como a nação mais violenta do mundo.

Com uma taxa de 27,8 assassinatos por 100 mil habitantes, o Brasil também ostenta as primeiras posições no triste ranking da violência. Na comparação entre os anos de 2017 e 2018, o índice nacional reduziu em -12,0%. Todavia, a taxa brasileira evidenciou aumento de 4,0% entre 2008 e 2018. Nesse período, foram mais de 628 mil pessoas assassinadas.

Do total de homicídios computados em 2018, 91,8% das pessoas mortas eram do sexo masculino. No recorte de faixa etária, 53,3% das vítimas eram jovens com idades de 15 a 29 anos. A desigualdade racial da violência é corroborada quando se constata que 75,7% das vítimas de homicídio em 2018 eram negras. Entre 2008 e 2018 ocorreu aumento de 11,5% nos assassinatos de negros. No mesmo intervalo de tempo, houve redução -12,9% das mortes dos não negros. Para cada não negro assassinado, 2,7 pessoas negras são vítimas de homicídios. Sobre o instrumento empregado para cometer as violências, cabe ressaltar que 71,1% dos assassinatos foram praticados com armas de fogo.

Em síntese, o perfil demográfico destaca que as principais vítimas são homens jovens, negros, mortos por armas de fogo. Estudos no campo da segurança pública indicam que tais características são muito semelhantes ao perfil dos agressores. A condição de uma baixa escolaridade configura outra característica comum a esses dois grupos. No conjunto de vítimas do sexo masculino, 74,3% dos indivíduos tinham alcançado no máximo 7 anos de estudo, o que equivale no melhor dos cenários ao ensino fundamental incompleto. Na porção das vítimas do sexo feminino, esse percentual foi de 66,2%.

Em relação à violência de gênero, insta salientar que 4.519 mulheres foram assassinadas em 2018, ou seja, uma mulher é morta violentamente a cada duas horas no Brasil. Com 4,3 mortes por 100 mil mulheres, o país destaca uma das taxas mais elevadas do mundo. Sobre as violências psicológica, física, tortura e outros tipos praticados contra pessoas LGBTQI+, cabe destacar que em 2018 foram registradas 9.223 notificações no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) do Ministério da Saúde. Esse número foi 19,8% superior em comparação ao valor observado no ano anterior.

O Atlas da Violência é uma das principais ferramentas que garante amplo acesso às informações e análises sobre perspectivas da segurança pública. Ele é produzido em parceria pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Se caracteriza como uma ferramenta essencial para lançar luz sobre o quadro da violência brasileira e possibilitar, por meio dos diagnósticos estabelecidos, o desenvolvimento e aprimoramento de políticas públicas de prevenção e repressão qualificada.

 

*Doutor em Geografia, Mestre em Arquitetura e Urbanismo, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), pesquisador do Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN) e professor da Universidade Vila Velha (UVV)

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Brasil, uma nação de mortos-vivos https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/08/23/brasil-uma-nacao-de-mortos-vivos/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/08/23/brasil-uma-nacao-de-mortos-vivos/#respond Sun, 23 Aug 2020 14:32:28 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/A-noite-dos-mortos-vivos-320x213.gif https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1507 Vinicius Torres Freire na Folha, hoje (23), foi perfeito em sua coluna sobre o momento em que o Brasil vive e sobre a capacidade do presidente Jair Bolsonaro em se revigorar no caos criado a partir de sua eleição. Freire afirma que diante de todas as adversidades, o presidente tem conseguido vitórias e se fortalecido. E, ao final, ele diz que, o mais provável para o país, é que “o Brasil voltará a sua rotina de violência aberrante, com uma causa mortis a mais, apenas. A indiferença ao morticínio é uma vitória da mentalidade bolsonariana”.

Peço licença a Vinicius Torres Freire para aproveitar suas figuras de linguagem, pois, a meu ver, o seu argumento é irretocável, exceto por um certo otimismo em achar que o país “voltará” à sua rotina de violência e indiferença. Pelos dados disponíveis, o Brasil nunca abandonou tal rotina e, o que ocorre agora, é que o bolsonarismo foi promovido à condição de políticas de governo. Mas a mentalidade ‘bolsonariana’ esteve e está presente entre nós faz décadas. A mão do “morto-vivo que rebrota da terra na madrugada do cemitério nevoento” está na verdade viva e se faz de morta para puxar o gatilho que continua a vitimar milhares de vítimas de homicídios e para apunhalar a democracia e a cidadania.

E isso fica ainda mais evidente quando constatamos que, mesmo em uma pandemia, os homicídios cresceram cerca de 6% no primeiro semestre de 2020, em relação ao mesmo período de 2019. E, talvez o mais significativo, é que já são nove meses de crescimento ininterrupto dos homicídios, segundo dados do Monitor da Violência recentemente divulgados. Os homicídios cresceram em 17 estados do país, incluindo São Paulo, que vinha de 20 anos de reduções sucessivas dos homicídios. Houve, em São Paulo, um aumento de 4,7% no mesmo período.

E isso sem contar as Mortes Decorrentes de Intervenção Policial, que, somente no estado, cresceram mais de 20% no primeiro semestre deste ano. A mesma coisa se repete com a violência contra a mulher, que segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública aumentou durante a Pandemia, mas já vinha de um longo ciclo de crescimento anual. Aliás, o FBSP alerta, faz 14 anos, para a falência do modelo de organização da segurança pública brasileira, e nos próximos dias deverá lançar a edição 2020 do Atlas da Violência, uma parceria com o IPEA, com dados que, mais uma vez, explicitará as recorrentes indiferença política e a naturalização da violência contra negros, mulheres, jovens, população LGBTQI+.

Indiferença que naturaliza, por sinal, o fato de 54% dos registros de estupros no Brasil serem de casos com vítimas com até 13 anos de idade. Crianças sem infância e reféns de uma cultura do estupro são criminalizadas por defensores dos bons costumes e da moral conservadora quando buscam seus direitos, como a menina que foi autorizada a fazer um aborto legal no Espírito Santo, sem que, no entanto, lembremos que a violência está presente no nosso cotidiano como uma das nossas marcas históricas mais perversas.

Violência que aceita a brutalidade policial nas periferias, em geral contra pardos e pretos, quase todos pobres, como na sequência de casos envolvendo a Polícia Militar de São Paulo, que a massificação das câmeras de celulares permitiu que chegasse ao conhecimento da opinião pública mas que não é novidade nenhuma nas “quebradas” paulistanas, nas favelas cariocas e/ou nas várias denominações dos bairros pobres das cidades brasileiras. Violência tão naturalizada que nos faz indiferentes ao fato dos jovens negros terem 2,5 vezes mais chances de serem assassinados e, em uma expressão carioca, ao fim e ao cabo, terem como horizonte de vida a convivência cotidiana com o temor de serem presos ou mortos em operações policiais (operações que, por sinal, colocam os próprios policiais em risco e cujos comandantes, quando questionadas, se eximem de responsabilidade e deixam o policial da ponta com o ônus exclusivo de justificar a sua conduta individual).

Violência que dizima indígenas em nome do combate ao tráfico de drogas ou que é perpetrada na defesa de um modelo de agronegócio predador, que desconsidera inclusive os avanços tecnológicos que um segmento mais moderno e consciente desenvolveu para o uso social, econômica e ambientalmente responsável de terras; incentiva a desregulação e desmonta a já precária capacidade fiscalização ambiental das instituições públicas. O caráter estratégico da Amazônia vira sinônimo de paranoia e não de planejamento responsável e análise geopolítica e ambiental de riscos efetiva, sem cabrestos ideológicos.

Violência que produz situações bizarras como mais de 30 anos de domínio cruel de territórios com milhões de brasileiros e brasileiras por facções de base prisional ou de milícias e, ao mesmo tempo, petições do Governo do Rio de Janeiro e do Ministério da Justiça e Segurança Pública contra a proibição de operações policiais em comunidades do Rio durante a pandemia que se utilizam de argumentos que beiram o surrealismo, na medida em que são tão exatos para dimensionar ameaças que justificariam tais operações como vagos para explicar as razões pelas quais outros padrões de policiamento, menos violentos e baseados na inteligência, não são adotados.

Inteligência que, nos escaninhos do poder, deu guarida à produção do dossiê contra ex-secretários e policiais antifascistas pela SEOPI (Secretaria de Operações Integradas) e que foi considerada irregular pelo STF, enquanto não há conhecimento acumulado para se compreender as causas dos homicídios e que faz com que, eternamente, fiquemos em uma disputa narrativa entre aqueles que acreditam no peso do crime organizado e os que defendem que as tendências criminais são resultado ou de políticas públicas ou de macrocausas econômicas e demográficas.

Indiferença que torna a violência cotidiana e já visível para milhões de brasileiros em algo intangível e invisível às instituições, que se preocupam mais com seus interesses corporativistas do que com a mudança do cenário de crime e violência – isso para não dizer no liberou geral das armas de fogo em curso no país. Indiferença que se fortalece nas tentações autoritárias de uma sociedade acostumada com a ideia de inimigos internos e cujas preferências antidemocráticas estavam dadas muito antes do Governo Bolsonaro.

O bolsonarismo do presente não é algo exclusivo à figura de Jair Bolsonaro. É, infelizmente, um modo de ser e de pensar que tem a adesão de milhões de pessoas e que nos faz refletir sobre quanto anos serão necessários, na melhor das hipóteses, para que a cidadania e a vida sejam valores que refundariam uma nação tão perversamente dócil com a violência e o caos. Os mortos-vivos seríamos nós e não a mão descrita de Vinicius Torres Freire.

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30 anos do ECA, Covid-19 e o Sistema Socioeducativo https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/07/15/30-anos-do-eca-covid-19-e-o-sistema-socioeducativo/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/07/15/30-anos-do-eca-covid-19-e-o-sistema-socioeducativo/#respond Wed, 15 Jul 2020 19:10:14 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/07/ECA-Gajop.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1465 Nesta semana, na última segunda, 13, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completou 30 anos. E esta marca foi alcançada bem no meio da maior crise sanitária e institucional em muitos anos.

Com Ana Claudia CifaliMariana Chies Santos*

O ECA é um marco histórico construído a várias mãos, com intensa participação da sociedade civil, instituições estatais e das próprias crianças e adolescentes. Com ele, passamos a contar com uma legislação própria que reconhece esse público como sujeitos de direito, demandando medidas em respeito à sua condição peculiar de desenvolvimento. Se, por um lado, temos que comemorar a edição desse marco legal de proteção às crianças e aos adolescentes, por outro ainda temos muito trabalho para a efetivação dos direitos dessa parcela da população brasileira.

O Altas da Violência dá conta de que 51,8% dos óbitos de adolescentes e jovens entre 15 e 19 anos se deu por homicídio, em sua grande maioria, jovens pretos e pardos, moradores de comunidades vulneráveis e com pouca escolaridade[1]. Esses dados têm uma relação direta com o tráfico de drogas e as “guerras” que se dão tanto no enfrentamento com a polícia como entre os próprios grupos criminais. Ainda nos atentando aos dados, é importante ressaltar que São Paulo tem reduzido a taxa de homicídios da população em geral, principalmente se olharmos para os dados entre 2008 e 2017.

Contudo, nesse mesmo período, a taxa de homicídios de adolescentes de 15 a 19 anos oscilou de 19,1 para 19,6, ou seja, significa dizer que mais de 6.800 adolescentes entre 15 e 19 anos foram vítimas de homicídios entre 2008 a 2017. E, apenas no ano de 2017, 623 adolescentes e jovens de 15 a 19 anos foram assassinados no estado de São Paulo. Mas esse número não é distribuído de forma igualitária: o risco de ser assassinado aumenta entre os adolescentes pretos e pardos. A taxa de homicídios de adolescentes negros era de 23,5 mortes, enquanto a taxa de homicídios de adolescentes brancos era de 13,4 mortes por 100 mil. Isso significa que a probabilidade de um adolescente negro ser vítima de homicídio era 75% maior do que a de um adolescente branco no ano de 2017.

Ao que se refere à pandemia causada pelo vírus SARS-COV-2, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou documento recomendado aos juízes e juízas e aos tribunais de justiça que se atentassem para o que a doença poderia causar nos sistemas de privação de liberdade. A Recomendação nº 62 do CNJ, publicada em março deste ano, foi uma medida importante para que os atores do sistema de justiça abrissem os olhos para a gravidade do impacto que o coronavírus poderia trazer às pessoas privadas de liberdade e aos/às servidores/as que gestionam o sistema privativo de liberdade no Brasil.

No âmbito do sistema socioeducativo, as atividades socioeducativas, entre elas a escolarização, foram suspensas, esvaziando sobremaneira o conteúdo pedagógico que deve permear o cumprimento das medidas socioeducativas. As visitas foram suspensas, assim como as fiscalizações dos órgãos externos, reduzindo-se o controle social sobre o que acontece no interior das unidades de internação. Elevam-se o número de óbitos e contágios, especialmente entre profissionais do sistema socioeducativo, motivo pelo qual é fundamental que sejam tomadas medidas para conter o avanço do contágio no interior das unidades de atendimento, inclusive adotando-se medidas para reduzir a superlotação das unidades de atendimento, como já havia decidido em sede de liminar o Ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, no âmbito do HC nº 143.988.

Todavia, poucas medidas concretas foram adotadas de maneira sistemática por todos os estados da federação, e isso se comprova se olharmos para os dados disponibilizados pelo próprio CNJ. Os dados apontam que, até 06 de julho, foram registrados 1.815 casos confirmados de COVID-19 no Sistema Socioeducativo: 437 adolescentes e 1.378 servidores/as. Em 30 dias, houve um aumento de 139,1% dos casos. Foram confirmados, ainda, 14 óbitos de profissionais que atuavam no sistema.

No dia 09 de julho de 2020, nove Deputados Federais de diferentes partidos  (Alexandre Padilha – PT/SP; Carmen Zanotto – CIDADANIA/SC; Eduardo Barbosa – PSDB/MG; Leandre – PV/PR; Marcelo Freixo – PSOL/RJ; Tabata Amaral – PDT/SP; Valmir Assunção – PT/BA; Fábio Trad – PSD/MS; João H. Campos – PSB/PE), apresentaram o Projeto de Lei 3.668/2020, que regulamenta a manutenção do conjunto de princípios que envolvem o Sistema Socioeducativo durante o período da grave crise sanitária causada pela Covid-19.

Entre as medidas para fazer frente a esses problemas, estão a) a criação de Planos Emergenciais e a adoção de medidas de higiene; b) a reavaliação de medidas de internação (que, geralmente, ocorre de 6 em 6 meses) de jovens vulneráveis ao contágio e aqueles a quem se atribua atos infracionais cometidos sem violência ou grave ameaça, com a finalidade de reduzir-se a superlotação; c) a suspensão de medidas em meio aberto que demandem deslocamentos, contrários ao distanciamento social, mas garantindo a manutenção do vínculo entre técnicos e adolescentes por outros meios de comunicação; d) a adoção de Centrais da Vagas para regular a entrada e saída de adolescentes, como forma de combate à superlotação; e) a reorganização das atividades socioeducativas, especialmente as de educação; f) a manutenção das fiscalizações externas, sobretudo no caso de denúncias de violação de direitos.

Nesse contexto, o Projeto de Lei 3668/2020 é de extrema relevância ao indicar ações de contingência e medidas de saúde preventivas a serem adotadas no Sistema Socioeducativo para que o vírus não se propague e atinja ainda mais adolescentes, jovens e trabalhadores, considerando-se, ainda, que é papel do Estado zelar pela vida e integridade física de tais pessoas. Ademais, importante que sejam pensadas medidas relativas ao retorno das atividades educativas, tendo em vista os objetivos das próprias medidas socioeducativas, as quais, sem o conteúdo pedagógico, transformam-se em puras e simples medidas privativas de liberdade. E não é isso que queremos para o futuro do Brasil.

Nesse sentido, também é urgente o desenvolvimento de políticas públicas, especialmente nos territórios de maior vulnerabilidade, que previnam a evasão escolar e o envolvimento da juventude com o tráfico de drogas, com destinação orçamentária privilegiada para garantir os direitos dessa parcela da população, conforme preconiza a regra da prioridade absoluta prevista no artigo 227 da Constituição brasileira, a base normativa para o desenvolvimento do ECA.

[1] IPEA; FBSP. Atlas da Violência 2019. Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/190605_atlas_da_violencia_2019.pdf>.

*Ana Claudia Cifali, Doutora em Ciências Criminais pela PUCRS, é Advogada do Programa Prioridade Absoluta do Instituto Alana;

Mariana Chies Santos, pesquidadora de pós-doutorado do NEV-USP e Coordenadora do Departamento de Infância e Juventude do IBCCRIM

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Os rumos da segurança pública na era Bolsonaro https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/07/08/os-rumos-da-seguranca-publica-na-era-bolsonaro/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/07/08/os-rumos-da-seguranca-publica-na-era-bolsonaro/#respond Wed, 08 Jul 2020 18:16:59 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/06/manifestações.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1458 Ao longo dos últimos meses o tema segurança teve, como era esperado, forte destaque no debate público. Porém, mesmo em evidência, a área ganhou esse destaque mais pelas questões político-institucionais a elas associadas do que em função de uma discussão sobre redução da violência, do medo e do crime. Para entender as razões dessa dissonância, este texto aproveita reflexão feita para o Boletim Fonte Segura, mantido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública para fazer um retrato panorâmico de alguns dos principais temas da agenda da área.

E o resultado é bastante preocupante e fonte de inquietudes, na medida em que percebemos que evidências foram mobilizadas e vários alertas foram emitidos mas poucas mudanças efetivas ocorreram. A começar pelo fato de o país não conseguir superar um cenário que tem se repetido nos últimos 30 anos, ou seja, um cenário que faz com que as políticas de segurança pública sejam formuladas e implementadas como que inseridas em um eterno pêndulo entre aqueles que acreditam segurança é efeito de macrocausas sociais e econômicas e os que preferem reduzir todos os problemas da área à eficácia do direito penal e do processual penal. Não construímos uma ética pública capaz de interditar a violência e guiar o país em direção a um modelo mais eficiente de controle do crime e garantia de cidadania.

Só mais recentemente começamos a falar de governança da segurança; de mudanças de gestão e de regras do jogo que pudessem criar condições para um ambiente de prevenção da violência, redução do medo e repressão qualificada do crime. Afinal, o Brasil possui um modelo de organização da segurança pública que gera, como tenho chamado atenção em outros artigos, diversos ruídos federativos e republicanos. Temos quase 1400 organizações públicas cujas atividades impactam diretamente na qualidade da segurança pública e não temos mecanismos robustos de coordenação de esforços entre órgãos de Estado, Poderes e esferas de governo. Ao contrário do SUS, na Saúde, a União não tem atribuição legal para coordenar o sistema de segurança como um todo.

Isso faz com que as Polícias Militares, por exemplo, atendam cerca de 150 milhões de ocorrências todos os anos no país e, em um looping sem fim, tenham que encaminhar para as Polícias Civis, Ministério Público e Poder Judiciário algo como 10 milhões desses atendimentos a cada ano. Temos números gigantescos e quase nenhuma articulação sobre como lidar com tal magnitude de casos, sendo quase tudo tratado da mesma forma – de um furto de um shampoo ao roubo de um carro forte, passando pela detenção de pessoas com pequenas quantidades de drogas. É quase impossível não saturar o sistema de justiça criminal, ainda mais quando cada instituição ou Poder define qual suas metas e planos de ação.

E, mesmo quando metas e planos existem, eles ficam dependentes de prioridades e lideranças políticas e/ou são fruto de articulação de organismos internacionais como o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), que buscam influenciar o rumo e o sentido de políticas públicas como contrapartida à liberação de operações de empréstimos e assistência técnica oferecida por eles. Documento  obtido pela CNN Brasil, da Secretaria de Assuntos Econômicos Internacionais – SAIN, do Ministério da Economia, revela, por exemplo, negociação com a União em torno de 180 milhões de dólares para o financiamento de “Programa Federativo para Segurança Pública Inteligente”, com USD 45 mi desse valor destinado à “qualificação da gestão e da governança da segurança pública”; outros USD 45 mi para “implementação de programas de prevenção social e situacional da violência”; USD 72 milhões para a “modernização das organizações policiais”; e, por fim, USD 18 milhões para a “qualificação do sistema prisional e dos programas de ressocialização”.

O problema é que, em geral, tais projetos não mudam culturas organizacionais gestadas antes da Constituição de 1988, não obstante eles seguirem recomendações e boas práticas internacionais, conforme indica estudo elaborado pelo FBSP a pedido do Governo do Ceará quando da construção do Programa Ceará Pacífico (ver aqui), em 2018. Em não poucos casos, diante da possibilidade de novos recursos oferecida pelos Organismos Internacionais, gestores estaduais e federais agregam projetos de seus interesses já em curso à proposta conceitual formulada pelos bancos, sem necessariamente os componentes de cada projeto guardarem relação entre si e a unidade contratante ter mandato para implementar todas as atividades previstas. Essa é a forma burocrática que as Unidades da Federação, que com exceção de São Paulo, dependem de recursos federais de transferências voluntárias para fazerem investimentos em equipamentos e processos na segurança, aceitam interferências externas sem, contudo, mudar suas práticas. Ao fim e ao cabo, as operações de crédito internacional repetem as tentativas dos diversos planos nacionais de segurança pública durante os Governos Collor, FHC, Lula, Dilma, Temer e Bolsonaro de vincular a liberação de recursos condicionando-os à aceitação de ações e programas específicos, mas possuem baixa capacidade de incidência e mudança.

Não há garantia de que os programas propostos terão a mesma eficácia e efetividade daqueles que os inspiraram no mundo mas, em contexto de restrição orçamentária, os recursos dos organismos internacionais mitigam a crise fiscal e a não observância, por parte do Governo Federal, das novas regras do SUSP (Sistema Único de Segurança Pública), que torna obrigatório o repasse de recursos das loterias para as Unidades da Federação. Importante destacar que o Governo Bolsonaro está tentando, na prática, bloquear o repasse de recursos de novas fontes de receita oriundas das loterias para oferecer às Unidades da Federação o aval à contratação de empréstimos internacionais, o que chama ainda mais atenção pela narrativa “antiglobalista” que o atual governo assume para si. Esse é um movimento temerário para as finanças públicas estaduais, pois troca recursos financeiros livres de encargos estimados, quando da promulgação do SUSP, em R$ 800 milhões em 2018; R$ 1,7 bilhão em 2019; e R$ 4,3 bilhões em 2022 por empréstimos que precisarão ser pagos. A contratação de operações de empréstimos internacionais seria um fator de maior transparência, qualidade do gasto e governança se viesse acompanhada pela execução dos recursos já disponíveis e mais baratos.

O mesmo governo que negocia, por intermédio do Ministério da Economia, a contratação de empréstimos internacionais para a segurança pública nos estados e DF é o Governo que, no Ministério da Justiça e Segurança Pública, deixa de executar a Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social prevista no SUSP, em especial, como já analisado na edição 41 do Fonte Segura, a estruturação dos programas de Valorização Profissional dos Policiais e do SINAPED, sistema de avaliação e monitoramento que tem como função padronizar métricas e indicadores comuns a todos os integrantes do Sistema Único de Segurança Pública. O fato é que, apesar das reformas recentes com a criação do Sistema Único de Segurança Pública (2018) e a alteração da lei do Fundo Nacional de Segurança Pública com previsão dos recursos das loterias, gastos e ações no setor por parte do governo federal continuam inexpressivas (ver balanço da atuação de Sergio Moro à frente do Ministério da Justiça e Segurança Pública aqui).

Como pano de fundo, há dissonância entre a legislação infraconstitucional e os comandos da Carta Magna, sendo que praticamente toda a legislação que ainda hoje regula a segurança é anterior à Constituição de 1988 e os legisladores não regulamentaram o significado prático do ser e fazer polícia no contexto democrático; no contexto da ordem social inaugurada em 1988. As Polícias Judiciárias (Civil, Federal, Militar para crimes militares) se baseiam no instituto de inquérito policial, criado em 1871, e nos Códigos Penal e Processual Penal (Civil e Militar), da primeira metade do Século XX. As prisões são geridas com base em legislação de 1994 e as Polícias Militares ainda funcionam de acordo com os pressupostos do decreto Lei 317, de 13 de março de 1967, mantidos quase que intactos pelo R200 (Decreto  88.777, de 1983), que ainda está em vigor e que fala de “segurança interna” e não de “segurança pública”– legislação que, a priori, vai contra a Constituição na medida em que o seu Artigo 144  diz que as PM são gerenciadas pelos Governadores, enquanto o Artigo 3º. Do Decreto 88.777/83 diz que elas são “coordenadas” pelo Exército.

O resultado prático desta situação é que, ao ter dois chefes, as polícias militares foram se tornando excessivamente autônomas e hoje decidem quase sem questionamentos quem obedecer e quais seus padrões operacionais e o escopo de suas ações. E, considerando que o padrão de policiamento valorizado social e politicamente, independentemente de a polícia ser Civil ou Militar, é aquele que aceita a ideia de inimigo interno e que “bandido bom é bandido morto”, não é de se surpreender que tenhamos tantas mortes decorrentes de intervenção policiais. A investigação e o trabalho de inteligência cedem espaço para o enfrentamento bélico na percepção de como o controle do crime deve ser feito no Brasil, estimulando que as PM, que são as fiadoras da ordem pública, adotem padrões de uso da força que seriam inaceitáveis em democracias consolidadas no mundo.

A questão não é apenas a do abuso individual do policial mas de valorização do combate ao inimigo, mesmo que outros padrões de policiamento pudessem gerar melhores resultados na redução da violência e controle do crime. Esse fato justifica que tenhamos cerca de 6 mil mortes decorrentes de intervenção policial por ano no Brasil, número que, em termos comparativos, é 6 (seis) vezes superior ao dos Estados Unidos. Além disso, o clima de enfrentamento constante e as péssimas condições de trabalho dos policiais brasileiros estão entre os fatores que fizeram com que o número de policiais que cometeram suicídio no Brasil em 2018 (104 casos) fosse maior do que a quantidade que morreu em decorrência de confronto em serviço nas ruas (87).

Mas a responsabilidade não é exclusiva das Polícias Militares. Quando vemos os discursos políticos, por exemplo, de Jair Bolsonaro, Wilson Witzel e Joao Doria, quando de suas eleições, percebemos o estímulo à estratégia “mirar na cabecinha” e de ampliação de unidades especiais de polícia (que a mídia trata incorretamente como “tropas de elite”, o que faz com que os policiais que não fazem parte desta unidade pensem que elas são a referência do ser policial e adotem os mesmos padrões e subculturas) que funcionem no padrão “Rota” e que tirou policiais da Força Tática e do Patrulhamento Territorial por imposição do governador.  Não surpreende o crescimento dos casos de violência policial quando os governantes, por razões eleitorais, defendem polícias mais duras contra o crime.

O Ministério Público, por sua vez, que tem a prerrogativa constitucional do controle externo da atividades policial, tem enorme dificuldade em fiscalizar as Polícias para além do controle concentrado de cada inquérito policial instaurado e, em geral, foca na legalidade da ação individual de cada policial. Não há controle em matéria de tutela coletiva de padrões e procedimentos institucionais das polícias, mesmo após a Resolução CNMP nº 201/2019, que alterou as Resoluções nº 129/2015 e nº 181/2017, ambas do CNMP, com o objetivo de adequá-las às disposições do Direito Internacional dos Direitos Humanos, especialmente à decisão do caso Favela Nova Brasília vs. Brasil, da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Enquanto isso, as Polícias Civis, acabam dependentes do volume de casos de flagrantes enviado pelas Polícias Militares e têm dificuldades para investigar e esclarecer a autoria de crimes, com especial ênfase a de homicídios de autoria desconhecida que demandam a observância de práticas comuns às polícias (isolamento do local do crime, colheita de evidências, custódia de provas técnicas, entre outros). Sem parâmetros comuns ou controle de tutela coletiva por parte do MP, tais crimes têm suas investigações afetadas pela baixa articulação interinstitucional na ponta da linha e pela falta de um projeto institucional para as polícias civis, que como consequência vão sendo sucateadas e relegadas pelos governantes. E o mais grave, o movimento da criminalidade fica, em muitos estados, mais suscetível à cena do crime organizado do que às políticas públicas de segurança. Governos costumam reivindicar méritos pela redução de tais crimes (quem não se lembra dos diversos tuítes de Sergio Moro vangloriando-se da queda dos crimes em 2019 sem, no entanto, apontar o que foi feito e/ou o seu silêncio após a retomada do crescimento dos índices), mas, quando eles sobem, como nos últimos 6 meses (Gráfico 1), as polícias são cobradas sem, no entanto, avançarmos na mitigação dos dilemas de governança impostos pelo pacto federativo e republicano vigente no país.

 

Elaboração do autor

Ao mesmo tempo, diante das pressões e das fragilidades institucionais, uma das expressões mais cruéis e invisibilizadas do racismo brasileiro se manifesta nos números da violência: 75% das vítimas da violenta letal no Brasil são negras. Jovens negros morrem mais do que jovens brancos; policiais negros, embora constituam 37% do efetivo das polícias são 51,7% dos policiais assassinados; mulheres negras morrem mais assassinadas e sofrem mais assédio do que as brancas. Os dados são do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Da mesma forma, faz 3 anos que estamos observando o crescimento dos crimes sexuais, agressões e feminicídios. E, com a Pandemia de Covid-19, há um agravamento da violência doméstica e crescimento ainda maior dos feminicídios. E esse crescimento não se reflete nos registros de ocorrências nas delegacias de Polícia, já que o isolamento social dificulta o deslocamento das vítimas, e coloca a necessidade de criação de novos canais de denúncia e acolhimento para mulheres em situação de violência.

E, para tornar o quadro ainda mais complexo, não há um índice nacional de esclarecimentos de homicídios que balize o planejamento integrado de ações. Levantamento realizado em 2018 pelo Monitor da Violência, parceria entre o Portal G1 com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Núcleo de Estudos da Violência indicou que apenas 24,7% dos homicídios, em média, são esclarecidos e encaminhados para o Ministério Público no país, com Unidades da Federação apresentando percentuais ainda mais baixos e indicativos da completa falência da ideia de responsabilização de autores de crimes e violências, conforme gráfico 1. As instituições de segurança pública ficam pressionadas pelo congestionamento de casos na etapa inicial do trabalho policial, quase sempre fruto dos flagrantes em torno de crimes relacionados às drogas, uma vez que a legislação sobre o assunto (lei 11.343/2006), acabou por agravar o quadro de inequidades e falta de métricas que governa a segurança brasileira.

Elaboração do autor

E por falar em lei de drogas, um dos seus mais visíveis efeitos é a explosão da população prisional do país, que em 2019, segundo do DEPEN/MJSP, contava com cerca de 760 mil presos (em mais uma evidência da baixa coordenação e governança da área aqui também não há consenso entre os Poderes Executivo e Judiciário e o Ministério Público, com cada um apresentando um número diferente de presos). Cerca de 1/3 desses presos encontram-se em situação provisória, que é quando ainda não foram julgados ou quando aguardam a decisão sobre eventuais recursos interpostos.  Na impossibilidade de garantir condições mínimas de subsistência aos presos, o Estado, como um efeito colateral perverso da política criminal e penitenciária, acabou por fortalecer as mais de 70 facções de base prisional existentes no país, sendo as mais conhecidas o PCC e o Comando Vermelho, que entraram em guerra em 2016 e fizeram disparar as taxas de mortes violentas em vários estados. Este conflito assume contornos diferentes em cada UF, a depender das parcerias com facções locais, mas provoca um quadro de insegurança e incerteza muito grande.

Mais recentemente, as transferências de lideranças paulistas do PCC realizadas em 2019 e prisão de Fuminho, um dos maiores atacadistas de drogas da América do Sul, em 2020, pela Polícia Federal, parecem indicar uma mudança geracional dentro do PCC e que pode alterar a equação de forças entre as facções de base prisional. Facções estas que tiveram seus negócios afetados pela pandemia e precisaram encontrar novas fontes de financiamento e “capital de giro” para manterem seus pontos de venda de drogas (o tráfico internacional, em um exemplo, foi afetado pela diminuição de voos e pela redução da chegada e saída de mercadorias nos principais portos do país, chegando a faltar maconha para atender algumas grandes cidades como São Paulo).

No plano conjuntural, o sistema prisional brasileiro também tem sido pressionado pela pandemia de Covid-19. Dados do Prision Insider e do Global Prison Trends 2020 revelam que o Brasil encarcera cerca de 7% dos presos do mundo, enquanto registra aproximadamente 5% dos casos de Covid-19 e 4,2% das mortes de presos do planeta. Estes números fazem com que o país tenha o segundo sistema prisional mais afetado pela Covid-19 entre todos os países analisados. O Brasil só perde para os EUA, que respondem por 20,9% da população prisional mundial porém registram 74,4% dos casos de Covid-19 entre presos e 44,3% das mortes de presos do mundo.

Mas o que em tese seria uma notícia positiva pelo fato do país ter, proporcionalmente, taxas de contágio e mortalidade por Covid-19 dentro das prisões inferiores em relação à sua proporção de presos do mundo, tem-se perdido energias de prevenção e controle no debate político, aumentando riscos de rebeliões e reforçando o diagnóstico da baixa integração e articulação entre os diferentes atores e instituições cujas ações impactam diretamente a segurança pública. Ao longo da pandemia, o Departamento Penitenciário Nacional – DEPEN tentou implantar um modelo que, no começo da década de 2000, no Espírito Santo, ficou conhecido como “prisões de lata” e cujos efeitos deletérios são muito maiores do que os benefícios anunciados de separação e isolamento de presos. Da mesma forma, a sensação que o Judiciário estava abrindo as celas das prisões e libertando criminosos perigosos com a aprovação da Recomendação nº 62/2020, do CNJ. Porém, dados compilados pelo próprio CNJ indicaram que a taxa média nacional estimada de pessoas que voltaram a ser presas após deixarem os presídios em razão da pandemia do novo coronavírus e cometerem novos delitos foi inferior a 2,5%.

Em paralelo, o crescimento do poder das Milícias, sobretudo no Rio de Janeiro e no Pará, preocupa pelo fato de elas sinalizarem para a ideia de controle político dos territórios e das populações que neles residem ao mesmo tempo de serem compostas por muitos integrantes e ex-integrantes de forças policiais. Sem controle, as milícias representam um novo e perigoso patamar de violência política e que pouco tem merecido a atenção de autoridades do Poder Executivo e das Polícias. O temor é que, com o noticiário político expondo as ligações dos ex-policiais Fabricio Queiroz e Adriano da Nóbrega, morto pela Polícia da Bahia em circunstâncias ainda não totalmente esclarecidas para a população e acusado de ser o líder de uma das principais milícias do Rio de Janeiro, o “Escritório do Crime”, com a família do presidente Jair Bolsonaro, novas denúncias possam desestabilizar o cenário político-institucional do país.

E por falar em política, outro fator que pressiona os números da segurança pública é a excessiva politização das forças policiais do país. Ao contrário dos integrantes do Ministério Público ou do Poder Judiciário que, caso queiram se candidatar, precisam abrir mão de suas carreiras nestas instituições, a legislação brasileira tem brechas que fizeram com que, entre 2010 e 2018, 7.168 PM disputassem eleições em todo o Brasil sem a necessidade de saírem de suas carreiras – um em cada 58 policiais nas ruas tem ambições políticas —levando em conta que, ao final de 2018, as PMs tinham um efetivo de 417.451 homens e mulheres na ativa). Só se eleitos é que eles precisam se afastar. Do contrário, voltam para as corporações. O problema é que uma vez na política, dificilmente uma pessoa volta disposta a acatar ordens sem maiores questionamentos. Polícia e Política são duas esferas fundamentais da vida pública de uma nação democrática, mas elas não podem ser confundidas ou uma se apropriar da outra para a consecução de seus objetivos.

Um exemplo que demonstra o grau de politização das polícias e os riscos postos por ele é o motim da Polícia Militar do Ceará, em fevereiro, quando em meio a uma negociação salarial, uma entidade liderada por um apoiador do governo Bolsonaro colocou-se contra o acordo acertado entre as demais associações e o governo estadual, do PT, e fez com que, naquele período, cenas de terror e violência tomassem conta daquele estado. E, naquele mês, o Ceará registrou o recorde de 456 homicídios, que ajudou a reverter a tendência de queda nos índices deste crime que estavam sendo observadas entre 2018 e 2019. O levante só terminou após o envio, relutante, de tropas federais pelo Governo Federal e a aprovação, pela Assembleia Legislativa do Ceará, de projeto de lei do governador que proíbe anistias a policiais amotinados.

Demandas legítimas por melhores condições de vida, trabalho e salário dos policiais foram sendo apropriadas por projetos políticos partidários. Porém, em uma evidência de que tais processos sociais não são unidirecionais ou absolutos, o Governo Bolsonaro, que conta com a adesão de parcelas significativas de integrantes das polícias, tem avançado muito pouco na implementação de medidas concretas que favoreçam o todo das corporações policiais e tem preferido evitar concorrências internas ao bolsonarismo, como no caso do desconvite ao Coronel PM Araújo Gomes, que presidia o Conselho Nacional de Comandantes Gerais das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, para assumir a SENASP. A Secretaria Nacional de Segurança Pública foi dividida e o Cel Araújo Gomes foi preterido em favor de um outro oficial PM mais ligado ao núcleo de confiança do presidente e com muito menos exposição e ascendência juntos às Polícias Militares estaduais. Isso permite ao Governo manter o controle da narrativa de apoio aos policiais e foi, na minha avaliação, uma forma de evitar o fortalecimento de lideranças que não do presidente, como os ex-ministros Sergio Mouro e Luiz Henrique Mandetta.

 

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Pedro Malasartes e a espiral do medo que nos governa https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/03/29/pedro-malasartes-e-a-espiral-do-medo-que-nos-governa/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/03/29/pedro-malasartes-e-a-espiral-do-medo-que-nos-governa/#respond Sun, 29 Mar 2020 15:37:40 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/03/Pronunciamento1.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1350 A crise do Covid-19 escancarou que a energia vital da gestão de Jair Bolsonaro depende do medo e do pânico para não se esvair e reter Poder. O medo é potencializado por teorias da conspiração e por exércitos de zumbis virtuais que parecem, para ficar na analogia médica, acometidos de um surto de “Catarata”, que é a doença que compromete o cristalino dos olhos e torna a visão opaca e embaçada.

Manejando habilmente fluxos de informação e narrativas político-ideológicas a seu favor, Jair Bolsonaro soube até aqui explorar muito bem o ditado popular em “terra de cego quem tem um olho é Rei”. Muitos brasileiros acreditam em seu discurso pretensamente redentor e antisistêmico, independentemente das evidências e das ações concretas. Não importam dados, evidências ou conhecimento acadêmico e científico. O foco é a destruição narcísica de tudo o que não é espelho ou que não esteja subjugado pelos interesses de seu clã.

Sua gestão é a mais completa tradução do lendário Pedro Malasartes, personagem tradicional da cultura portuguesa. Nos contos populares, este personagem é descrito como exemplo de “burlão invencível, astucioso, cínico, inesgotável de expedientes e de enganos, sem escrúpulos e sem remorsos”. Visto desta perspectiva, o atual ocupante do cargo de Presidente da República nada mais seria do que uma caricatura grosseira das mazelas históricas, morais e políticas do país.

Mas reduzir todas essas mazelas à figura do atual presidente não é correto. Não podemos esquecer de significativas parcelas da sociedade que pegam carona nos arautos da insensatez (talvez Abraham Weintraub e Ernesto Araújo sejam os dois mais proeminentes, mas também Paulo Guedes e Sergio Moro, que aceitam fazer parte de um governo disruptivo) e dão sustentação a um projeto de poder aético e que pouco se preocupa com a vida.

E aqui um ponto central. Mesmo após incontáveis declarações e ameaças veladas à quebra da institucionalidade, o Governo Bolsonaro ainda conta com cerca de 30% de apoio entre a população. E isso pode ser constatado por três pesquisas de opinião divulgadas nos últimos dias com dados que avaliam a condução da “coronacrise” pela gestão Bolsonaro.

A primeira delas, encomendada pela XP Investimentos ao IPESPE, mostra que, no período de 16 a 18 de março, 30% dos investidores do mercado ouvidos pela corretora avaliaram a gestão como ótima e/ou boa (em fevereiro eram 34%). Já o Datafolha, que foi a campo entre 18 e 20 de março, constatou que a gestão da crise pela gestão Bolsonaro era aprovada por 35%  da população adulta com mais de 16 anos de idade. Por fim, a terceira pesquisa, do Instituto Ideia Big Data, feita entre os dias 24 e 25 de março, mostra que 28% aprovam a gestão Bolsonaro.

Diante de tais dados, é possível supor que há milhões de brasileiros que estão dispostos a aceitar a violência como linguagem e a insegurança como regra, já que o Estado de Direito pressupõe limites que, o tempo todo, estão sendo ultrapassados. E, se é possível explicar tal fenômeno, o pânico gerado pelo medo e pela incerteza não pode ser desconsiderado.

Medo da violência; do desemprego; de uma depressão econômica; de ser vítima do coronavírus. E, entre as múltiplas faces da violência, vemos população e profissionais de linha de frente (médicos, enfermeiros, policiais, bombeiros, entre outros) abandonados à própria sorte e à tradicional e perversa letargia que caracteriza a burocracia pública do país. Tudo temperado pelo descaso para com a vida e com a garantia dos direitos civis da população.

Tanto é que, se for da conveniência política, muitos irão tecer duras críticas à medidas que, por exemplo, tentem mitigar os riscos em presídios e nada além de “preocupações” retóricas com o aumento da violência contra a mulher será implementado. Falta-nos coordenação, articulação e, em especial, falta-nos vontade política e institucional para enfrentar o aprofundamento das agudas desigualdades estruturais que caracterizam a sociedade brasileira.

Disso, é pouco provável que críticas em relação à incompostura e/ou falta de liturgia do presidente diante dos riscos tenham ressonância. Pela análise dos dados das pesquisas citadas, isso só deve mudar se ao menos 7% dos atuais apoiadores mudarem de opinião e, com isso, isolar o discurso negacionista de Jair Bolsonaro a um importante porém minoritário segmento da população.

Enquanto sua voz ecoar tão forte e for aceita por  ao menos 1/3 da sociedade, mesmo que na prática seu governo recue e adote medidas baseadas nas melhores recomendações e evidências, nós estaremos sob um cenário em que não só Bolsonaro é rei, mas, pior, nós seremos o personagem do conto “A terra dos cegos”, de H. G. Wells, que detentor de visão normal, tenta convencer os demais de que ele tinha um sentido do qual eles eram destituídos; fracassa e, como resultado, a população decide arrancar-lhe os olhos para curá-lo de sua ilusão.

 

 

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O Brasil diante de um dos mais difíceis testes de caráter da história https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/03/15/o-brasil-diante-de-um-dos-mais-dificeis-testes-de-carater-da-historia/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/03/15/o-brasil-diante-de-um-dos-mais-dificeis-testes-de-carater-da-historia/#respond Sun, 15 Mar 2020 18:13:53 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/03/Bolsonaro150320-320x213.png https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1331 A pandemia do Coranavírus está testando a capacidade da humanidade em lidar com um risco de escala global mas que, para ser mitigado, não depende apenas de ações de governos e nações. Depende do caráter dos governantes e dos indivíduos para que a ordem, a segurança e a saúde públicas sejam mantidas e preservadas.

E, no patriotismo de botequim, que vocifera contra as instituições mas que coloca todos em risco em nome do hedonismo egoísta que lota bares e manifestações goumert de tiozões em suas possantes motos e/ou jetskis (emblemático que as duas primeiras fotos compartilhadas pelo Twitter do Presidente Jair Bolsonaro sejam de motoqueiros de meia idade e pilotos de jetskis), a violência simbólica que toma conta do Brasil é de tal ordem que acaba por desconstruir por completo noções mínimos de cidadania e ética pública.

No mau caratismo de alguns, que se acham patriotas sem saberem ao certo o significado histórico deste conceito, o Congresso é atacado como inimigo do povo. O problema é que, por mais sujeito a criticas que esteja, poucos se deram conta que, neste momento de pandemia, Rodrigo Maia e David Alcolumbre têm agido exatamente como aliados da área econômica do governo e resistido a jogar por terra o projeto reformista de boa parcela do mercado financeiro e do setor privado que dá sustentação ao governo Bolsonaro. E por quê?

Como lembra o professor Arthur Trindade, da UNB, caso o Congresso determine o fechamento da Câmara e do Senado por mais de duas semanas em função do Coronavírus, já que mais de 20 mil pessoas circulam diariamente por lá, dificilmente alguma medida que exija alteração Constitucional deve ser aprovada este ano. Uma PEC, para ser aprovada, precisa passar por 40 sessões, independentemente do quórum. E, considerando que este ano é ano de eleições municipais, que deve suspender sessões em outubro, as reformas tributária e administrativa não teriam tempo hábil para serem aprovadas em 2020.

Mas, ao invés de buscar consensos e administrar os conflitos sociais, o governo aposta na capitulação e na submissão dos demais poderes. Adota uma postura tóxica de destruir tudo o que toca e se aproxima, na ideia de imputar aos outros o erro e o pecado, mas esquece-se que, no Estado de Direito Democrático, a fonte sagrada é a Constituição e não a lei do mais forte.

Bolsonaro investe contra um Congresso que tem sido bastante simpático às suas propostas de reformas econômicas. Parece querer o caos para poder justificar uma ruptura institucional que lhe permita governar sem os limites das leis.

Mas ele não está sozinho. Quase como que em uma crise de abstinência de protagonismo causada pela má condução do episódio do motim da polícia militar no Ceará e pelo Coronavírus, que trouxe destaque para o Ministro da Saúde, o Ministro Sergio Moro tentou ressurgir no noticiário divulgando que pretende autorizar nos próximos dias a internação compulsória de pessoas suspeitas de contaminação pelo Coronavírus.

Enquanto Bolsonaro passeia sem máscara no meio da manifestação em Brasília e não assume a coordenação do enfrentamento dos efeitos do Coronavírus, que não são só de saúde pública, vamos acumulando riscos e dilemas. O que era para ser uma discussão sobre ações coordenadas virou ação isolada e fragmentada de cada pasta e na linha da força, sem diálogo ou debate prévio.

Várias Unidades da Federação estão tendo que pensar estratégias para conter a transmissão do vírus no sistema prisional e evitar mortes e rebeliões – considerando a taxa de letalidade anunciada de 3,74%, temos que mais de 26,5 mil presos podem morrer nos presídios nos próximos meses casos a pandemia tomasse todo o sistema (o mais factível é que Cadeias Públicas, superlotadas, sejam as mais afetadas e atinjam, só em São Paulo, cerca de 500 mortes).

Mas não só, a PMERJ contraria recomendação do Governo estadual e não dispersa manifestação de apoio ao Governo Bolsonaro, Gustavo Bebianno morre e, ao invés de afastar qualquer dúvida em relação ao motivo da morte, o corpo é enterrado sem nenhuma informação sobre autópsia, a morte de Marielle Franco e Anderson Gomes completa dois anos sem avanços sobre a identificação do mandante e da razão dos assassinatos, entre vários outros exemplos.

O mais angustiante é que, ao fim e ao cabo, a sociedade civil também tem dado exemplos de que Jair Bolsonaro e seu projeto populista não chegou de Marte e nos dominou.

Enquanto lotamos bares, praias, shoppings e, no máximo, estocamos papel higiênico, vemos Itália e Espanha, que adotaram duras medidas de contenção, reconhecendo e aplaudindo os profissionais de saúde pelos esforços em salvar vidas. O Brasil está diante de um dos mais difíceis testes de caráter aplicados pela história e temo que sejamos reprovados de forma avassaladora.

Afinal, Bolsonaro é só a tradução mais acabada do caráter de parcela significativa da população.

 

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No ES, violência cresce mais em cidade com projeto-piloto de Sergio Moro https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/02/29/no-es-violencia-cresce-mais-em-cidade-com-projeto-piloto-de-sergio-moro/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/02/29/no-es-violencia-cresce-mais-em-cidade-com-projeto-piloto-de-sergio-moro/#respond Sat, 29 Feb 2020 15:00:44 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/02/Moro-Papuda-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1323 Análise inédita do economista Daniel Cerqueira* mostra que nos  quatro meses após o início do “Programa Em Frente Brasil”, de Sergio Moro, o número de homicídios em Cariacica (ES) não apenas não diminuiu, como aumentou mais do que no resto do estado.

Fonte: Governo do Espírito Santo

O projeto-piloto “Em Frente, Brasil” (PEFB), de enfrentamento à criminalidade violenta foi lançado em 29 de agosto do ano passado pelo Governo Federal. Naquele momento, cinco municípios foram escolhidos para a sua implantação inicial, sendo eles: Ananindeua (PA); Paulista (PE); Cariacica (ES); São José dos Pinhais (PR); e Goiânia (GO).

Desde então várias autoridades e veículos de comunicação alinhados ao governo têm louvado e feito panegíricos à tão esperada política pública de segurança, finalmente implementada e que teria sido responsável por fazer diminuir o número de homicídios nas cidades escolhidas. Naturalmente, um total exagero, mesmo porque não há como avaliar o sucesso ou o fracasso de qualquer programa em lapso de tempo tão curto.

No entanto, podemos apontar aqui alguns aspectos positivos e limitações do programa, bem como analisar alguns poucos dados.

O PEFB possui algumas virtudes, que precisam ser exaltadas. Em primeiro lugar, ele abandona a retórica do enfrentamento, da ênfase no aparato repressivo e no endurecimento penal (que nunca funcionou), para uma abordagem de prevenção ao crime, por aliar um trabalho de repressão policial qualificada com inteligência e ações intersetoriais, que envolve educação, esportes, saúde, entre outras dimensões.

Em segundo lugar, o programa seria focalizado nos territórios mais violentos com ações voltadas para a juventude. Em terceiro lugar, a implementação do PEFB seria precedida por um planejamento baseado em um diagnóstico prévio das dinâmicas criminais e sociais locais. Ou seja, a abordagem do programa segue em linha ao que vários estudiosos no campo da segurança pública têm preceituado há vários anos, inclusive ao que o Ipea e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública recomendaram explicitamente no “Atlas da Violência 2018 – Políticas Públicas e Retratos dos Municípios Brasileiros.

No entanto, além de boas cartas náuticas, para se alcançar um porto seguro é necessário construir navios que permitam superar um mar revolto. Em outras palavras, além de estabelecer a direção da política é fundamental fazer um planejamento que contemple a construção de uma arquitetura institucional que alinhe incentivos dos atores e proveja os mecanismos de governança da política. Nesse ponto reside a maior fragilidade do PEFB.

A condução de políticas intersetoriais e o alinhamento de interesses e objetivos dentro de um governo é sempre uma tarefa árdua e difícil, que exige planejamento acurado, mecanismos de incentivos e a coordenação e envolvimento da principal autoridade política local. A condução de políticas intersetoriais que envolva diferentes níveis de governos federativos é mais complexa ainda.

No caso, da implementação do PEFB em Cariacica, por exemplo, enquanto um breve diagnóstico foi entregue pelo Instituto Federal do Espírito Santo em finais de setembro e início de outubro (ou seja, dois meses depois de iniciado o programa), não consta que tenha havido nenhum planejamento, com o estabelecimento de metas intermediárias por ação, responsabilidades, objetivos e meios institucionais, conforme o jornalista Vitor Vogas, da Gazeta, depreendeu da entrevista com o ministro Sérgio Moro em 31/10/2019, quando resumiu: “Tudo em aberto: Nada muito determinado”.

Uma segunda limitação do projeto diz respeito à questão orçamentária que, segundo consta, seria de R$ 4 milhões para cada município. Para se ter uma ideia, o Programa Estado Presente do Espírito Santo, um dos mais exitosos programas de segurança pública do país, implementado em 30 aglomerados territoriais no estado, consumiu R$ 523 milhões em quatro anos.

Sem uma definição de prazos e de metas intermediárias por ação fica inviável calcular qual seria o orçamento mínimo necessário, mas R$ 4 milhões é claramente um orçamento insuficiente para a consecução de um programa de prevenção ao crime, mesmo se considerar que, na base do voluntarismo, outras pastas ministeriais aloquem um orçamento para o projeto, a despeito de qualquer planejamento prévio.

Ainda a respeito dos recursos, 100 homens da Força Nacional foram enviados a Cariacica, para ajudar no patrulhamento da cidade. Isso significa que, por turno de trabalho, o Governo Federal enviou um contingente de 25 policiais para patrulhar 28 bairros, o que, obviamente, é um quantitativo residual, ainda mais que tais profissionais desconhecem o território e suas dinâmicas criminais [1] .

Um último ponto, levado a cabo pelo Governo Federal, diz respeito ao liberou geral das armas de fogo, um gol contra qualquer aspiração de um programa efetivo de prevenção ao crime.

Para finalizar, no gráfico do início deste texto analisamos os registros oficiais de homicídios dolosos em Cariacica nos quatro meses após a implementação do PEFB e nos quatro meses antes. Olhamos também a evolução dos mesmos indicadores para a Região Metropolitana de Vitória e para o estado do Espírito Santo, excluindo Cariacica.

Como resultado, constatamos que, ao contrário do que diz a propaganda oficial, enquanto as trajetórias dos índices de homicídio são parecidas, verificamos que o número de homicídio em Cariacica aumentou 22,2% após a implementação do PEFB, ao passo que na Região Metropolitana e no Estado, o número cresceu 17,2%. Ou seja, nos quatro meses após o início do PEFB não apenas o número de homicídios em Cariacica não diminuiu, como aumentou 5% mais do que no resto do estado.

* Doutor em economia, autor de “Causas e Consequências do Crime no Brasil” e membro do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

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[1] Nota do Blog: em texto publicado aqui em 5 de janeiro, destacamos que esse dado destacado por Daniel Cerqueira é ainda mais emblemático na medida em que o Programa Em Frente Brasil demandou, sozinho, o uso de 15% do efetivo da Força Nacional de Segurança Pública, revelando as dificuldades que o Governo teria para ampliá-lo.

Nota 2 do Blog: A discussão de modelos de monitoramento e avaliação de projetos proposta no texto de Daniel Cerqueira, acima, é ainda mais importante quando vemos que, quando foram publicados os números que dão conta da redução de cerca de 19% nos homicídios dolosos no Brasil (Ceará representando 20% desta queda), o Ministro mostrou-se bastante ativo nas redes para assumir protagonismo e paternidade pela realidade. Agora, com crise nas polícias e vários governadores tendo dificuldades em gerir as demandas das polícias civis e militares, o Governo Federal mudou o tom e fica ausente, não assumindo suas responsabilidades estruturais.

 

 

 

 

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