Faces da Violência https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br O que está por trás dos números da segurança pública Tue, 23 Nov 2021 18:56:47 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 As milícias, os ataques no Ceará e as fronteiras do terror no Brasil https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/01/23/as-milicias-os-ataques-no-ceara-e-as-fronteiras-do-terror-no-brasil/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/01/23/as-milicias-os-ataques-no-ceara-e-as-fronteiras-do-terror-no-brasil/#respond Wed, 23 Jan 2019 23:22:41 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/01/10259357-150x150.jpeg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=581 Este começo de 2019 me fez lembrar de alguns artigos de opinião que publiquei entre 2010 e 2015 e que, de modo sintético, alertavam para o fato de que, em nome de combater o medo e a violência, estávamos vendo o crescimento de opiniões que advogavam autorização para revogar direitos e restringir liberdades; alertavam para o discurso fácil e perigoso de tipificar como terrorismo muitas das graves crises na segurança pública que recorrentemente nos atingem todo começo de ano.

Na atualidade dos argumentos daqueles textos, ressalto alguns dos dilemas que nos ajudam a compreender a sequência dos acontecimentos que contribuíram para a eleição de um governo com forte apelo populista, mimetizando processos que veem ocorrendo nos EUA, na Turquia, na Hungria, na Itália, entre outros países.

O primeiro destes dilemas é que infelizmente os números sobre a tragédia do país na segurança pública e os alertas de vários setores da sociedade não foram ouvidos e o Brasil vive estupefato e exausto o seu “eterno presente”. A história não existe para aqueles que vivem do imediatismo das redes sociais e somos dragados pelo redemoinho de ódio e ressentimento que retroalimenta posturas autoritárias e nefastas para o exercício da cidadania.

Nos textos, destaco que, em países como o Brasil, de resiliente tradição autoritária, instituições como as polícias são historicamente estimuladas a garantir a “ordem” a qualquer custo.

Em nome de um Estado “forte”, o Brasil sufocou os canais de participação existentes. A imprensa brasileira foi sendo atingida por ameaças reais à integridade física de seus profissionais e parcelas das Universidades ficaram numa confortável zona da crítica pela crítica, sem nenhum compromisso com políticas públicas mais efetivas.

Nesse movimento, a esquerda focou por demais nas macro-narrativas e se afastou do povo. Já a direita surfou no medo e na insegurança que têm dado o sentido e a direção da vida cotidiana de milhões de brasileiros e brasileiras.

Como resultado, a sociedade civil organizada foi sendo paulatinamente enfraquecida e criminalizada nas últimas duas décadas. O país acostumou-se a um pêndulo de forças que antagoniza defensores de Direitos Humanos e o clamor popular por mais segurança e justiça, muitas vezes saciado em ações policiais que envolvem violência e mortes. Mas esse é um falso antagonismo e que precisa ser superado.

Ainda mais se pensarmos que o Brasil convive com um quadro de violência institucional e com um oneroso sistema de justiça criminal e de segurança pública há muito em seu limite de atuação. E, pior, um sistema que fica paralisado por disputas de competência, fragmentação de políticas, jogos corporativos, baixos salários e precárias condições de trabalho aos mais de 700 mil policiais do país.

Cabe à sociedade civil navegar contra a corrente e investir na superação de antagonismos e aproximar diferentes segmentos envolvidos com o tema. Sem isso, corremos o risco de aceitarmos imagens de pessoas mortas nas ruas como algo natural; como cenas da pretensa vontade do povo.

Até porque a violência, mesmo vitimando proporcionalmente mais jovens, negros e pobres, é aclamada por significativos segmentos da população como uma “legítima defesa da sociedade”, na ineficiência dos mecanismos públicos de resolução pacífica de conflitos. Ela é, como propõe o sociólogo Luiz Antônio Machado da Silva, forte evidência de uma ordem social fraturada, desigual e extremamente hierarquizada.

Por certo ainda temos muitos dirigentes públicos que, quando o Estado precisa reagir às ameaças, declaram-se impotentes frente à ”frouxidão” da legislação, mas nosso problema é muito mais profundo e não circunscrito às leis.

Basta vermos o exemplo de diversas autoridades defendendo o enquadramento de movimentos sociais como grupos terroristas e, ato contínuo, desconsideram suas demandas. Também há aqueles que advogam o enquadramento dos ataques recentes no Ceará como atentados terroristas mas não percebem que ali estamos presenciando uma complexa teia de acontecimentos e atores que visa gerar pânico e enfrentar o Estado.

No Ceará, nas centenas de ataques feitos até agora, não há nenhuma vítima envolvida. Isso mostra que, ao que tudo indica, o foco dos criminosos é enfrentar o Poder Público e mostrar capacidade de mobilização. Mas este enfrentamento está sendo cuidadosamente planejado para não cruzar uma fronteira que poderia colocar a população contra as facções e/ou revelar todos os interesses em jogo. Não é tipificando tais atos como terroristas que iremos resolvê-los. Temos que rastrear a cadeia de comando, identificar e retomar o controle da situação.

O problema é que é muito mais simples [e perverso] reproduzir a lógica do pânico e oportunisticamente pegar carona nos temores e anseios da população por justiça. Se o discurso do terror fosse coerente, as milícias seriam igualmente tratadas como grupos terroristas, ao sequestrarem violentamente a liberdade de milhares de pessoas nas periferias e favelas brasileiras. Mas há quem acredite que elas sejam uma barreira ao crime organizado de base prisional.

No fundo, há quem prefira ter bandido de estimação…

]]>
0
Somos todos, sociedade e Estado, sócios do crime organizado https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/01/15/somos-todos-sociedade-e-estado-socios-do-crime-organizado/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/01/15/somos-todos-sociedade-e-estado-socios-do-crime-organizado/#respond Tue, 15 Jan 2019 10:48:50 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/01/15173423215a70ce7191940_1517342321_3x2_rt-150x150.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=567 Por Raul Jungmann. Ex-titular dos ministérios da Segurança Pública e da Defesa do Brasil.

Somos todos, sociedade e Estado, sócios do crime organizado. Nós, sociedade, por interditarmos todo e qualquer debate sobre a questão prisional e, não sendo possível a eliminação pura e simples dos bandidos, exigirmos a prisão de todos, indistintamente e para sempre.

Já o Estado, ao não garantir a vida dos apenados no interior das prisões, tão pouco assegurar o que a lei determina, as condições da sua ressocialização, permite o controle do sistema prisional pelas facções criminosas e sua reprodução desde dentro do sistema, comandando daí a criminalidade nas ruas.

A construção desse paradoxo se dá, faticamente, por termos a terceira população carcerária do mundo, com mais de 720 mil apenados, que cresce na ordem de 8.3% ao ano – será uma Porto Alegre em 2025, algo como 1,5 milhão de pessoas -, constituída de jovens de 18 a 29 anos, que representam hoje 75% dos presos. Aos quais a apenas 12% se oferece educação e trabalho a 15% deles.

Esse grave quadro se deteriora ainda mais quando se verifica que o sistema prisional tem um déficit de 358 mil vagas, já que conta com apenas 368 mil vagas disponíveis, e que os mandados de prisão em aberto já somam mais de meio milhão e crescem geometricamente.

Para que se tenha ideia dos custos necessários para cobrir o déficit do sistema e seu crescimento anual mais sua manutenção, seriam necessários algo em torno de R$ 50 bilhões, o que, diga-se, é insustentável tanto econômica, quanto fiscal ou orçamentariamente.

Pois bem, nada disso é parte do debate nacional sobre a segurança pública. Neste, em todos os níveis, os atores e agentes públicos e políticos, debruçam-se sobre a violência nas ruas, com as exceções de praxe.

Sem negar a urgência e a importância de soluções para a violência cotidiana – os assaltos, homicídios, sequestros, balas perdidas etc. Tão pouco minimizar as medidas legislativas, materiais e operacionais para enfrentá-la, resta cristalino que as ruas e o sistema prisional são faces complementares de um só problema.

Porém, esse diagnóstico é interditado por dois motivos:

O primeiro deles é que uma população com crônico déficit de segurança, exposta à violência e indefesa, por um lado deseja que tirem os bandidos das ruas por quaisquer meios e, de outro, execra e mesmo se dispõe a linchar midiática e politicamente quem propuser trazer a questão prisional a debate. Quem o fizer, será sancionado duramente como associado ou defensor de bandidos.

O segundo motivo, é que o poder público, premido pela escassez de recursos e por imensas demandas sociais reprimidas, inclusive por mais e melhor segurança nas ruas, subdimensiona, quando não colapsa, o orçamento e a manutenção das prisões, ao ponto de transformá-las em depósitos de presos.

A degradação do sistema chega a tal ponto que os governos estaduais responsáveis pelo sistema, para evitar explosões e crises, fazem um pacto não escrito com o crime, entregando, na prática, as unidades prisionais às facções. Fruto dessa “aliança”, o sistema prisional, que é estatal, se aliena da sua responsabilidade pelas unidades e vida dos apenados, é ´capturado e se torna sócio do crime organizado… E aqui chegamos ao coração das trevas.

Indefesa, a sociedade cobrará do Estado que trate o criminoso como não detentor de quaisquer direitos, dignidade ou humanidade – ainda que residuais. Já o Estado, em contrapartida, se subtrairá das responsabilidades para com apenados e o sistema prisional, cedendo o seu controle ao crime organizado sob a forma das facções de base prisional.

Nesse ponto, opera-se uma transformação funcional de todo o sistema, e por extensão da própria justiça penal, dado que de parte administrativa desta e locus da ressocialização dos delituosos, o sistema prisional passa a ser parte da reprodução ampliada do crime organizado e, em decorrência, da violência e da insegurança gerais- inclusive das ruas.

Aos incrédulos, cito dois exemplos. Em 33 vistorias realizadas em sete estados pelas Forças Armadas, em 2017, foram encontradas 11 mil armas para um total de 22 mil presos, portanto, um em cada dois dispunham de armas brancas, quase sempre. Ora, como isso seria possível sem a anuência dos que controlam o sistema? Além das armas, foram encontrados rádios-base, celulares, drogas, duchas, televisores e o que mais se imaginar, evidenciando o descontrole e a corrupção existentes.

Segundo exemplo: a atual crise por que passa o Ceará. Transformado em hub ou corredor de tráfico de drogas para o Caribe por via marítima, o estado viu e permitiu crescerem as facções, tanto nacionais como locais que, como sempre, de dentro das prisões passaram a controlar o crime nas ruas. Quando o atual governo estadual decidiu iniciar a retomada do controle dos presídios, cadeias e penitenciárias, de dentro destas partiu o salve (ordem) para o confronto com o Estado, via atos de terrorismo.

Tem sido assim pelo menos desde 2006, quando o PCC paralisou São Paulo por conta da transferência do seu comando para a penitenciária de Presidente Venceslau, sem poupar praticamente nenhum estado; seja em espasmos de violência interna, as chacinas ou atos de externos de confronto com o poder público, quando os interesses estratégicos do crime organizado de base prisional são atingidos ou ameaçados.

Este estado de coisas levou o STF, em 2015, a uma decisão inédita. A de declarar o sistema prisional brasileiro em estado de inconstitucionalidade, pelo descumprimento reiterado da Constituição, a exemplo do inciso XLIX do artigo 5o, que assegura ao preso a sua incolumidade física e moral, idem a Lei de Execução Penal.

Enfrentar e mudar esse estado de coisas exige visão estratégica, planejamento e coordenação. Entendo que, sem ser exaustivo, são quatro os eixos de uma política consequente para o sistema prisional: prevenção social dirigida a juventude, em especial na faixa dos 15 aos 24 anos; repressão qualificada; reforma do sistema prisional e da política de drogas; e mudanças na orientação para o encarceramento.

Está na juventude, sobretudo das periferias, o motor da nossa tragédia de violência e insegurança. E isso é fácil de constatar: aproximadamente três em cada quatro dos que estão nas cadeias e penitenciárias são jovens, negros ou pardos, com pouca escolaridade, baixa renda e família desestruturada. Dai que é incontornável a coordenação de ações de educação, cultura, esportes, saúde, qualificação e assistência social focadas nesse grupo social.

A repressão qualificada atua com base sobretudo com base na inteligencia policial, voltada para o crime organizado, seus líderes e circuitos financeiros, que ditam a dinâmica da criminalidade e da violência nas ruas.

A reforma do sistema prisional, passa pela revisão da legislação que rege a construção, gestão e manutenção dos presídios e penitenciárias. Qualificação do pessoal especializado na sua operação e ampliação das unidades do semiaberto, da monitoração eletrônica e das centrais de penas alternativas. Imprescindível, é a organização de atividades educativas e laborais com cobertura universal, sem o que a função ressocialização do sistema simplesmente não existe. Por fim, uma política de reinserção dos egressos, pois sem ela a taxa de recaída no crime e reincidência permanecerá alta – entre 40 e 70% segundo pesquisas acadêmicas.

Na questão das drogas, é urgente a definição de um claro limite quantitativo que estabeleça uma distinção segura entre o traficante e o usuário. Essa definição, que se encontra nas mãos do STF, irá minimizar o envio massivo de jovens usuários de drogas para o regime fechado pelos juízes das varas penais, onde, para não morrer, eles terão que jurar fidelidade as facções, tornando-se parte do seu exército.

É necessário, ainda, dar prioridade no regime fechado aos delitos de maior impacto, a exemplo dos tráfico de drogas, homicídios, outros crimes hediondos, crime organizado e similares. Já os demais, de baixo impacto, devem ser objeto de medidas cautelares, privativas de direitos, regime semiaberto, monitoramento ou domiciliar. Sem essa priorização, continuaremos prendendo muito e prendendo mal, no dizer o ministro Alexandre Moraes.

Da nossa parte, nos dez meses de existência do Ministério da Segurança Pública, colocamos em prática diversas medidas na direção das política e ações acima propostas. A exemplo de uma política nacional de trabalho e renda para egressos do sistema prisional, dos convênios com o Ministério da Educação e do Trabalho para levar o ensino de jovens e adultos e iniciação laboral às prisões. Procuramos ainda enfrentar o déficit de vagas nas penitenciárias via inovadora parceria com a ONU produtos e serviços; o lançamento de edital dirigido as ONGs, igrejas e entidades de ensino para a proposição de ações e projetos voltados para egressos e apenados; além da criação do SUSP – Sistema Único de Segurança Pública, e de uma Política e um Plano Nacional de Segurança.

Com o Conselho Nacional de Justiça e o STF, desenvolvemos três ações cruciais para retirar o sistema prisional da desordem e obscuridade em que se encontra imerso. Transferimos para o Conselho um total de 90 milhões de reais para realizar a biometria de toda a população carcerária existente, a digitalização e informatização de todos os processos de execução penal do pais – mais de 2 milhões. E a instalação, funcionamento e/ou fortalecimento das centrais de penas alternativas.

Porém há muito mais a se fazer para que o sistema prisional brasileiro, hoje nas mãos e sob o controle das facções, deixe de ser a oficina do diabo que leva medo, terror, violência e morte as ruas de nossas cidades. Uma sociedade indefesa rumo a barbárie ameaça, no limite, a própria democracia.

]]>
0
A cruzada brasileira rumo à Jerusalém https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/12/07/a-cruzada-brasileira-rumo-a-jerusalem/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/12/07/a-cruzada-brasileira-rumo-a-jerusalem/#respond Fri, 07 Dec 2018 02:24:46 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/12/08128175-150x150.gif https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=486 Esta semana, o Instituto para Economia e Paz, com sede em Sydney, Austrália, divulgou a edição 2018 do Índice Global de Terrorismo – IGT (ver a íntegra aqui, na versão em inglês). Segundo este índice, as mortes por terrorismo diminuíram 27% no mundo entre 2016 a 2017 e, neste último ano, alcançaram 18.814 pessoas mortas.

No ranking geral, composto por 138 países e liderado pelo Iraque, o Brasil ocupa a 90ª posição, mais bem colocado que países da Europa e do que os EUA (20º). Se tomarmos apenas os 11 países avaliados da América do Sul, o Brasil ficou em 7º, sendo que, na Região, a nação com mais atentados terroristas em 2017 foi a Colômbia (27º.), seguida do Peru (66º).

Independentemente da posição brasileira ser relativamente boa, estes números são a evidência de que o terrorismo está longe de ser um problema menor no mundo e que as nações precisam estar preparadas para lidar com os riscos a ele associados. O terrorismo é uma das mais antigas e poderosas armas de imposição sectária e autoritária do medo e da violência.

E, para combate-lo, a prevenção e o investimento pesado em informação e inteligência são as estratégias mais eficazes. No fundo, contra a barbárie da violência política e/ou religiosa, principal combustível para o terrorismo, a vigilância constante é a forma de evitarmos ataques e anteciparmos problemas.

E é isso que analistas indicam que o presidente eleito Jair Bolsonaro parece que não está considerando ao anunciar a transferência da embaixada brasileira em Israel para Jerusalém, cidade que é cenário central da geopolítica mundial que antagoniza nações e, por vezes, retroalimenta o fogo do caldeirão fervente do Oriente Médio.

O fato é que, pretensamente querendo agradar o segmento religioso neopentecostal, o governo Bolsonaro está colocando o Brasil no mapa de risco do terrorismo mundial.

Em termos objetivos, enquanto o Brasil hoje é visto como país neutro em termos da geopolítica do terror, Israel tem um índice de terrorismo 3,4 vezes superior ao brasileiro e, ao nos alinharmos aos EUA e transferirmos a embaixada para Jerusalém, estaremos trazendo este problema para o nosso colo. Estamos assumindo um risco muito grande.

Mas sabendo que o governo Bolsonaro é composto por muitos altos oficiais da reserva das Forças Armadas, que são instituições que prezam pelo cultivo do pensamento estratégico e da análise de cenários, a pergunta que fica é por quê assumir tais riscos, ainda mais que eles historicamente não são nossos?

Como não há almoço grátis, segundo o ditado norte-americano, talvez o governo Bolsonaro esteja achando que os riscos da decisão sejam menores do que os benefícios de um alinhamento radical com os governos de Israel e EUA, grandes fornecedores de tecnologia militar e na área de energia.

Uma outra possibilidade é que o cálculo seja econômico, na crença de que eventuais perdas no comércio internacional advindas de potenciais sanções dos países árabes seriam compensadas por Israel e, sobretudo, pelos EUA. Ou ainda, de que o custo da violência oriundo da criminalidade comum é mais alto (R$ 258 bilhões) do que o impacto do terrorismo (US$ 52 bilhões ou cerca de R$ 201,5 bilhões) e, nessa direção, uma reconfiguração das respostas públicas frente ao crime, à violência e ao medo não encontraria grandes obstáculos políticos e legais junto ao Congresso e ao Judiciário.

E, nesse processo de reconfiguração, talvez o cálculo seja de natureza tática, já que eventuais atentados terroristas que ocorreriam no Brasil seriam argumentos simbólicos fundamentais para um projeto de poder de restrição de direitos por dentro da institucionalidade democrática, tal como ocorre hoje na Turquia, na Rússia, na Hungria e nas Filipinas (país cujo presidente, Rodrigo Duterte, tem um discurso muito parecido com o de Bolsonaro e que registrou, segundo o IGT, o maior número de mortes por terrorismo em mais de uma década no ano passado).

Talvez ainda o governo e a família de Jair Bolsonaro estejam pensando que, em termos práticos, nada mudaria, já que, na segurança, o total de mortes por atentados terroristas no mundo é cerca de 3,5 vezes menor do que as 63.880 mortes violentas intencionais registradas apenas no Brasil (ver dados para 2017 aqui) e que um aumento de mortes por atos terroristas seria diluído no trágico patamar de violência do país. O custo político seria pequeno mesmo que a um custo alto em vidas.

Dito de outro modo, se a violência criminal brasileira é muito maior do que a soma de todas as vítimas juntas dos atentados terroristas no mundo, o risco desses últimos crescerem internamente pode servir como justificativa para a aprovação mais fácil da criminalização de movimentos sociais e de manifestações por direitos fundamentais. O terrorismo é um problema global e que politicamente mobiliza muito mais do que a violência contra jovens negros das periferias do país.

Não deixa, portanto, de ser politicamente potente, na perspectiva do próximo governo, tratar a violência como um problema de defesa nacional, já que medidas de exceção poderiam ser acionadas. Isso autorizaria e aceleraria reformas legais e mobilizaria ainda mais a sociedade em torno de uma renovada agenda de endurecimento penal e institucional. Cruelmente, a possibilidade do terrorismo passaria a ser o turnpoint ideológico para a reconversão política-ideológica do Brasil propugnada pela gestão do presidente eleito. Mas não de modo direto. É necessário embala-la como fruto da ação “corajosa” e altruísta; de respeito à soberania de uma grande nação amiga.

Significa dizer que, para além de justificativas retóricas em torno da autodeterminação das nações, o anúncio de transferência da embaixada brasileira em Israel para Jerusalém não é um ato de inocência política ou um gesto para agradar os neopentecostais ou os EUA/Israel apenas. A meu ver, este anúncio parece ser uma estratégia sofisticada de reenquadramento institucional e simbólico mais afeita aos prestidigitadores políticos, que provocam debates sobre determinados assuntos para poderem esconder suas reais intenções e atingirem seus objetivos de modo mais rápido e com menos oposição.

A guerra cultural contra a agenda de direitos civis já começou! O drama é que, com isso, o Brasil corre o sério perigo de se tornar ainda mais violento, desigual e segregacionista.

]]>
0
Violência no Brasil gerou 3,5 vezes mais mortes do que todos os ataques terroristas no mundo em 2017 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/08/24/violencia-no-brasil-gerou-35-vezes-mais-mortes-do-que-todos-os-ataques-terroristas-no-mundo-em-2017/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/08/24/violencia-no-brasil-gerou-35-vezes-mais-mortes-do-que-todos-os-ataques-terroristas-no-mundo-em-2017/#respond Sat, 25 Aug 2018 01:39:40 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/08/16157236-150x150.jpeg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=233 Enquanto vários políticos surfam na onda do pânico da população e defendem violência e vingança como fórmula para reduzir o crime, o Brasil vai batendo recordes e mais recordes de violência e dá provas que está em acelerado processo de desconsolidação democrática e civilizatória.

Não estamos sendo capazes de compreender a urgência de uma ampla coalização em torno de um projeto de redução da violência letal no país. E, nesta toada, tornamo-nos insensíveis ao sofrimento provocado pela violência do crime e pela insensatez violenta das políticas públicas.

A maior evidência do fracasso do Brasil em prevenir a violência e controlar o medo e o crime em seu território é a cifra de casos de mortes violentas intencionais registrada em 2017: 63.880 casos.

Para se ter uma ideia da magnitude deste número, ele é três vezes e meia maior do que o total de mortes provocadas por todos os atos terroristas ocorridos no mesmo ano no mundo, segundo dados do Jane`s Terrorism and Insurgency Center. Em 2017, o mundo teve 18.475 pessoas assassinadas em ataques terroristas.

Se estes números parecem exagerados, aqueles observados para o período 2014-2017, são ainda mais emblemáticos, pois reforçam, a ideia de que vivemos em um permanente estado de exceção. Em 4 anos, o mundo registrou 124.382 vítimas fatais do terrorismo. E, no Brasil, foram mortas 243.545 pessoas de modo intencionalmente violento no mesmo período.

Porém, se desde 2001, quando dos ataques às Torres Gêmeas, em Nova Iorque, o mundo foi forçado a aprender, a um custo abominável de vidas e de dor, sobre os riscos e a perversidade do terrorismo contemporâneo, o Brasil teima em acreditar em promessas vazias e em salvadores da pátria e não se mobiliza.

O mundo mudou completamente a partir do 11 de setembro de 2001, mas nós ainda ficamos à espera da procissão de milagres narrada por Sérgio Buarque no livro Visão do Paraíso, de 1959.

Enquanto vemos o tempo passar, o país não parece muito preocupado com a vida de milhões de jovens, em sua maioria pobres e negros, que são mortos todos os anos. E, se a violência é uma das marcas mais profundas da nossa história, o momento atual a traz à tona de modo muito intenso e inédito em razão das novas configurações do crime organizado em torno de drogas e armas e da forma como o Estado, em suas múltiplas instâncias e poderes, tem insistido em tratá-las.

Reportagem de Flávio Costa e Luís Adorno, no UOL, mostra que o território nacional está tomado por uma guerra entre as várias organizações criminais existentes e que, a partir da disputa pela hegemonia no mundo do crime, o PCC (Primeiro Comando da Capital), tem usado as prisões como plataforma de invasão e dominação de territórios.

Há uma guerra entre facções que mimetiza técnicas do terrorismo político e religioso e, como se fosse algo quase que “naturalizado”, vemos cenas de decapitações sem maior indignação e ação por parte das autoridades.

Mas o mais surreal é ver que os políticos que assumem a valentia retórica da violência como melhor resposta para o crime, esquecem-se que os principais líderes do PCC e das demais grandes facções criminosas estão presos. O problema, portanto, não é prender, mas sufocar a capacidade das organizações criminosas em se financiarem.

Nenhum desses falsos profetas disse o que pretende fazer para achar e bloquear o dinheiro que move o crime organizado no país. É mais pop defender invasões bélicas às comunidades tomadas pelo tráfico, mesmo que ao custo de mortes de todos os lados, como os 3 militares do Exército Brasileiro e os 8 moradores, vítimas do confronto no Complexo do Alemão, na semana última.

Estamos banalizando a morte e estamos nos tornando insensíveis à dor e ao sofrimento da população que vive sob o fogo cruzado da tirania do crime organizado e da completa incapacidade do Poder Público em unir esforços em torno de um projeto de nação verdadeiramente democrático e informado pela nossa Constituição Cidadã.

Demagogos denunciam a agenda de direitos como excessiva ou de “esquerda”, mas são estes mesmos que, ao proporem jogar direitos na “latrina”, escondem que estão protegidos por coletes à prova de bala e por seguranças fortemente armados. É fácil explorar o medo e denunciar direitos quando se é político profissional e o sofrimento alheio é visto como mera oportunidade de angariar votos.

]]>
0